artigo |
O Estado de S. Paulo |
7/2/2008 |
O carnaval que passou mostrou uma novidade. Ao lado dos tradicionais desfiles nos sambódromos, com autoridades nos camarotes, houve também outro espetáculo. Neste, excelências ou simplesmente senhorias, todas de gabarito federal, desfilaram de outra forma, num cartódromo competentemente montado pelos jornais, onde nesses dias momescos encontrei várias notícias a respeito dos cartões utilizados por essas autoridades em gastos por conta do governo. Nesse desfile, elas mostraram números e figurações de suas despesas "a serviço", pagas com os tais cartões corporativos, copiados dos que empresas outorgam a uns poucos de seus dirigentes e principais executivos, para alguns gastos das próprias empresas ou realizados pessoalmente a seu serviço. Nessa versão, em que lhes cabe mais adequadamente o nome de cartões governativos, tudo indica que seu uso foi "democratizado". Há notícias de que milhares foram distribuídos, alcançando autoridades de primeiro escalão a "otoridades" dos enésimos degraus inferiores da burocracia governamental. Nos gastos há uma mistura que inclui de censitários a suntuários, na qual há pratos de tapioca, refeições sofisticadas, compras em loja "duty free", aparelhos de ginástica, autopeças e aluguéis de carros com motoristas. Dos realizados com saques de dinheiro em espécie e dos cobertos por sigilo pouco ou nada se sabe. Outras autoridades, do Tribunal de Contas da União (TCU) e da Controladoria-Geral da União (CGU), de olho no desfile, apontaram as irregularidades mais evidentes. Entre elas, a de que alugar os referidos carros de forma recorrente seria uma burla à legislação de licitações. Outras compras também deveriam cumpri-la, e há também indícios de desvio de finalidade. Aparentemente, pelos carros alugados de forma rotineira, a ministra Matilde Ribeiro levou um cartão vermelho, disfarçado por atendido apelo de "pede pra sair". Quando, na juventude no interior de Minas, acompanhava jogos de futebol em alambrados muito próximos do gramado, no qual a poucos metros passavam freqüentemente um ponta de um time e um lateral do outro, esse apelo de torcedores era uma ofensa que parecia incomodar mais os jogadores do que as referências tradicionais à sua masculinidade ou a determinada figura de suas famílias. Já o ministro Orlando Silva, que no desfile se destacou pelo lado gastronômico, por homonímia sempre me lembra outro personagem então famoso, conhecido como o "cantor das multidões", as quais empolgava com clássicos como Lábios que Beijei. Nas suas explicações, nosso ministro parece cantarolar Contas que Lancei. De sua autoria, como diziam os apresentadores de programas de rádio daquela época. Em todo esse imbróglio, é fato que os cartões governativos de fato ampliam a transparência de determinados gastos realizados por agentes do governo, se comparados às formas de comprovação mais tradicionais, como relatórios e amontoados de notas fiscais e outros comprovantes, cujo acesso aos interessados e controle nos seus detalhes é difícil. Tanto assim é que com o acesso eletrônico pela mídia vieram à tona todas essas notícias sobre os cartões. Quando baixar a espuma dessa onda, acredito que boa parte do noticiário será esclarecida pelo governo federal, mas tudo indica que várias irregularidades serão apontadas por órgãos como a CGU e o TCU, e pela comissão parlamentar de inquérito que talvez surja no Congresso para tratar do assunto. Se surgir, será outro espetáculo, que o governo vê como abjeto, mas, seja o que for, foi ele que baixou a guarda na emissão e no uso dos cartões. Tanto assim é que já criou algumas restrições em contrário. Mas é preciso ir mais longe. Quem já administrou o uso de cartões pessoais, familiares e corporativos sabe que o risco de descontrole é maior do que nos pagamentos com dinheiro ou cheque. O cartão é uma moeda virtual que, para alguns usuários, é visto com um poder de compra ampliado relativamente à capacidade de pagamento pessoal, a qual é ainda mais menosprezada quando a quitação é feita por outras pessoas e instituições. Nessas condições, o detentor de um cartão, diante, por exemplo, do apelo consumista de um shopping center, costuma fazer deste, conforme já ouvi num evento, o lugar onde se compra o desnecessário com o dinheiro que não se tem Assim, em qualquer governo o risco do mau uso é alto e é preciso restringir, e muito, o seu número, os seus limites e os gastos admitidos, além de ensinar claramente as regras de utilização, com punições rápidas e exemplares se não forem seguidas. Há gente demais com limitações de menos. Mas para que as altas autoridades do governo possam agir com eficácia e coerência será preciso que seus mais altos escalões sejam tomados por outra filosofia quanto aos gastos públicos. Um governo que se mostra alérgico a conter o conjunto deles, o qual vem tendo expansão contínua e forte, também será leniente nos detalhes do seu controle. É como nas famílias: as que têm muito dinheiro para gastar controlam menos os cartões de seus membros; nas que têm pouco, o controle se impõe como necessidade. E se a atual moda pega? Imagine-se, por exemplo, o Legislativo, com os parlamentares e seu enorme séquito de assessores nomeados sem concurso, espalhando-se por este país com o dinheiro alheio de plástico nas suas mãos... O desfile no cartódromo deve continuar depois do carnaval, e será bom que isso ocorra, pois o governo permanecerá pressionado a agir com mais vigor. A pior saída será um retorno a formas menos transparentes de gastos e a ampliação do uso dos cartões em condições de sigilo até aqui frouxamente justificadas. |
Entrevista:O Estado inteligente
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O governo no cartódromo- Roberto Macedo
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