Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, fevereiro 29, 2008

Luiz Garcia - Fígado, e também tutano




O Globo
29/2/2008

Casos de corrupção no quintal federal devem ser tratados com menos fígado e mais racionalidade. São palavras da ministra Dilma Roussef. Não sei bem o que ela entende de corrupção, mas alguém deveria lhe explicar que "fígado", quando não designa o órgão, significa coragem, bravura, intrepidez. Está lá no Houaiss.

Talvez não seja justo pegar no pé de d. Dilma por imprecisões vocabulares. E com certeza não falta coragem a essa dama gaúcha: ela é carente apenas de dicionário. Pode ser que sofra também de baixo grau de premonição - a assaz louvada premonição feminina - e tenha por isso demorado a perceber que manter o pedetista Carlos Lupi no governo como ministro do Trabalho é risco muito mal calculado.

Mas, alvíssaras: parece que o Planalto começa a notar que o risco existe e não é pequeno. Não tem outra explicação terem mandado Lupi cancelar convênios malcheirosos com ONGs ligadas ao PDT, partido que ele mesmo preside.

Em outros tempos e outras repúblicas, um político de fígado altivo preferiria ir para casa a aceitar a humilhação. Mas o pedetista achou que limparia sua barra apenas anunciando o cancelamento como decisão espontânea, e insistindo que os convênios seriam legítimos. E Lupi ainda se permitiu a uma patética concessão: "Falaram que era para eu dar uma satisfação." Logo se verá se quem assim falou está mesmo satisfeito.

Não faz muito tempo, a Comissão de Ética da Presidência da República perdeu o seu presidente, Marcílio Marques Moreira, cansado de exigir que Lupi escolhesse entre os objetivos da pasta e as ambições do PDT. Ficou provado que Marcílio estava certo. Onde há dinheiro público existe sempre o risco de problemas como o dos convênios irregulares. E é evidente que o risco aumenta bastante quando a mesma cabeça comanda um ministério e um partido político.

A propósito, registre-se pequeno episódio anterior ao desenlace desta semana: Franklin Martins, ministro da Comunicação Social, procurou defender o governo com uma obviedade: "O fato de uma denúncia ser publicada no jornal não quer dizer que alguém é criminoso." Com o cancelamento dos convênios objeto das acusações, seria elegante que Franklin agradecesse à imprensa por informar sobre as irregularidades que provocaram esse desenlace. Ele agora concorda que algum "alguém" é criminoso? Quem, por favor?

As trapalhadas no Ministério do Trabalho provam que a Comissão de Ética trabalhava a favor do governo quando insistia que presidente de partido não pode ser simultaneamente ministro. E não há qualquer motivo para supor que Sepúlveda Pertence, substituto de Marcílio, seja menos zeloso que o antecessor na defesa do bem público.

O Planalto está demorando a perceber que pouco adianta fingir que a comissão não existe, nem imaginar que ela não dê voz ao que pensa uma considerável parcela da opinião pública.

É bom respeitar o fígado - a propósito, também o tutano - dos defensores da ética e dos bons costumes nos negócios do Estado.

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