Entrevista:O Estado inteligente

domingo, setembro 30, 2007

Miriam Leitão Usos e costumes

O portão 28 indicava que o vôo era para Vitória, mas o som avisava que o embarque para Vitória seria no portão 22. No 28 estavam dando embarque, com atraso, aos passageiros que iam para Brasília.
Passamos pelo portão e engarrafamos no finger. É a hora em que os passageiros filosofam. O assunto era o troca-troca de políticos e o toma-lá-dá-cá dos cargos pela aprovação da CPMF.

Os passageiros riem. Já nem se preocupam com os incômodos do aeroporto. Já nem se revoltam com os usos e costumes políticos do Brasil. Apenas registram.
Naquele dia, digno de registro o espetáculo do crescimento da bancada do PR, agora até com a adesão de Clodovil.

Anestesiados, falavam do Brasil como se fosse uma abstração, curiosidades que não lhes diziam respeito diretamente. Os políticos, figuras excêntricas e previsíveis. Nenhum dos 11% dos brasileiros que disseram confiar nos políticos estava presente naquela fila do avião.
Tudo parece um filme revisto.

E é. O PR que recebe caudalosas adesões é o mesmo PL que recebeu caudalosas adesões na legislatura do mensalão. É aquele partido de Valdemar da Costa Neto, que saiu das urnas de 2002 com 26 deputados e chegou a 47 no auge do escândalo. Agora viveu a mesma história: o PR elegeu 23 e já contava na semana passada 42. Em vez de Valdemar, quem aparece é o deputado Luciano Castro.

Aquele que diz que está indo para o céu com as nomeações que está esperando, como, por exemplo, com as Units, órgãos estaduais das estradas. Entre as que falta nomear, está a Unit mais gorda: a de São Paulo. Vai pavimentar seu caminho para o céu com a nomeação para o órgão federal, o Dnit. Dizem no governo que o nome está enrolado e que a base está reticente, entre outras razões, porque o escolhido tem o dom da ubiqüidade: tinha cargo em Brasília e em Mato Grosso e, durante quatro anos, registrou presença nos dois.

Na festa da filiação de Clodovil no PR, uma das estrelas foi o deputado Inocêncio Oliveira, que se definiu como um liberal-social.

Em questões sociais, de fato, ele é bem liberal. Foi condenado em duas instâncias por um flagrante de trabalho escravo em uma de suas fazendas.

A bancada dos que apóiam esse tipo de, digamos, “liberalismo social” só faz crescer, e recentemente vários senadores se dispuseram a ir ao Pará para dar apoio a fazendeiros de uma usina de açúcar e de álcool em apuros. Parlamentares foram ao ministro Carlos Lupi para protestar contra o flagrante. Antes disso, o senador Flexa Ribeiro, em pleno momento do flagrante, baixou na fazenda a bordo de um avião para defender os fazendeiros. Depois disso, os atos de solidariedade se multiplicaram.

A senadora Kátia Abreu sustenta que os fiscais são uns exagerados.
Tudo repetiu o padrão do apoio político recebido pela Usina Gameleira em Tocantins, quatro vezes flagrada pelos fiscais do grupo móvel contra o trabalho escravo.
A Gameleira teve a defesa do memorável Severino Cavalcanti.

Claro que a breve conversa com os passageiros foi só sobre os aspectos mais visíveis do cotidiano político do Brasil. Eu é que fiquei pensando e enveredei por esse outro caminho por achar que há uma relação entre todos esses maus usos e péssimos costumes dos políticos brasileiros.

Li o relatório dos fiscais que foram à Fazenda Pagrisa. Recomendo a leitura.
O que me impressionou foi a coerência do Brasil.

O país não muda. O remédio vendido na farmácia da fazenda a preços duas, três vezes maior do que o cobrado em Marabá, os descontos nos salários sem explicação, as ameaças a quem adoecesse, o banho tomado na mesma represa onde entrava um esgoto, a jornada excessiva, as promessas não cumpridas, tudo tão século XIX! Quanto ao grupo móvel do Ministério do Trabalho, melhor que fique imóvel, na prescrição de alguns políticos.

Todos os roteiros são velhos no Brasil. Em toda legislatura há o intenso trocatroca de partido, que começa no momento seguinte à contagem dos votos. Nossos inconstantes deputados e senadores às vezes mudam de idéia assim que são eleitos. Depois engrossam as ondas migratórias perto dos prazos fatais e das votações decisivas. O governo já não se preocupa com as outras etapas da votação da CPMF como se preocupava antes, noves fora o susto com o longo prazo.

É que os políticos já estão de mudança para partidos fiéis como o PR, ex-PL.
E lá, o deputado Luciano, que gosta de parcerias voluptuosas, já prometeu fidelidade total.

— A bancada tem 39 votos, e os 39 votaram com o governo — disse ele, dias antes de a bancada engordar para 42.

A causa da onda migratória dos deputados e senadores é justíssima. Estão imbuídos da missão de ampliar o conceito de provisório: se prorrogada, a CPMF, que nasceu provisória, chegará aos 17 anos.

Para políticos, permanentes defensores do provisório, nada mais coerente que não permaneçam nos partidos pelos quais os eleitores os escolheram.
Ora, os eleitores! Eles são passageiros! Afinal, a crise aérea acabou, acabou a crise política.

Renan venceu. O governo distribui cargos às mãoscheias, as posses são sempre festa no céu, principalmente se forem na Petrobras, os ministros convocam rede nacional para garantir que a carga tributária não cresceu, que devemos comer peixe e esperar o PAC nosso de cada dia. Tudo é passageiro, tudo é provisório: nada muda.
Saio hoje de férias. Débora Thomé, cujo talento leitores e leitoras já conhecem, assume a coluna pelas próximas semanas.

Merval Pereira - Bolsa 2.0

Partindo do princípio de que o objetivo de longo prazo de políticas sociais é “permitir aos indivíduos realizarem seu potencial produtivo”, o economista Marcelo Néri, da Fundação Getulio Vargas no Rio, diz que essas políticas públicas deveriam fornecer portas de saída para a pobreza “através da abertura de caminhos e plataformas de acesso aos mercados”. O Bolsa Família seria, nessa avaliação, “uma plataforma de acesso aos pobres que o Brasil nunca teve, mas por enquanto, é só uma plataforma. Ainda não tem uma pista para as pessoas decolarem”. Segundo Marcelo Néri, os principais elementos hoje perseguidos no desenho de inovações das intervenções sociais podem ser sintetizados nos conceitos de “incentivos”, “informação” e “infância”.Ele fala principalmente em uma Bolsa Família 2.0, que teria “incentivos à demanda por acumulação de capital humano combinada à melhora da oferta da qualidade das políticas estruturais tradicionais associadas, onde saúde e educação ocupam lugar de destaque”. Como exemplos nessa direção, Marcelo Néri cita o PAC de educação e uma nova agenda que desponta na área de saúde, “a começar por unanimidades como a provisão de saneamento básico, passando a áreas mais polêmicas como controle de natalidade, e chegando a campanhas antitabagistas e contra acidentes de trânsito, pragas da saúde pública” .

Os aprimoramentos desejados do Bolsa Família, teriam, segundo Néri, como prioridade “buscar uma focalização cada vez mais eficaz do programa e combater alternativas menos focalizadas e mais permanentes como os reajustes do salário-mínimo e a universalização incondicional da renda mínima ” .
Em segundo lugar está a melhoria das condicionalidades do programa.
Ele diz que o Bolsa Família “parece ser um bom programa de transferência de renda ‘que dá o peixe’, mas não um programa educacional revolucionário que ensina a pescar”.
Um ponto crucial é o da melhora na qualidade da educação, cujo centro de atenções não deve ser a freqüência nem mesmo estar matriculado na escola, mas “ qualidade da educação, que é baixíssima no Brasil”.
Marcelo Néri propõe usar “incentivos pecuniários” para que as crianças fiquem mais tempo nas escolas e se motivem a melhorar o aprendizado. Com os resultados da Prova Brasil, avaliação de proficiência representativa de cada escola pública, Néri sugere criar “sistemas de metas e de fornecimento de crédito social baseados no desempenho auferido”. Ele ressalta que os incentivos devem ser para que as crianças “melhorem de nota”, e não estabelecer “o nível das notas”.
Seria necessário também atuar na pré-escola e mesmo em creches, na faixa de 0 a 6 anos, e “integrar estes incentivos de demanda com elementos de oferta de educação como os discutidos no âmbito do Fundeb e agora do chamado PAC educacional”, o que poderia ser mais eficiente do que o Bolsa Família como está, que só cobra a vacinação das crianças.
E na fase posterior de atuação do Bolsa Família, Néri sugere “criar não incentivo ao primeiro emprego mas, através de uma segunda Bolsa Família, melhorar os baixos níveis educacionais observados em todas as partes do Brasil”. Por fim, ele aponta como medida crucial “melhorar o acesso a mercados de bens e financeiros, estendendo a fronteira creditícia até onde ela nunca foi antes: aos pobres e informais”, através do uso colateral dos benefícios sociais. Néri cita o economista e banqueiro de Bangladesh Muhammod Iunus, que em 2006 ganhou o Prêmio Nobel da Paz. O chamado “banqueiro dos pobres” pretende acabar com a pobreza através do Grameen Bank, que oferece microcrédito para milhões de famílias. De acordo com Muhammad Yunus, o pobre deve entrar no mercado, o que seria, segundo Néri, “uma espécie de choque de capitalismo nos pobres”.
Os fluxos de caixa prospectivos dos programas sociais “constituem potenciais garantias creditícias, e o Estado pode se valer desses canais para expandir a oferta de crédito dos mais pobres”, avalia Néri. Segundo ele, “o efeito colateral das políticas redistributivas hoje em difusão no país é aumentar o potencial de garantias dos pobres”. O fato de essas bolsas levarem ao setor informal “dinheiro e tecnologia informacional através de cartões eletrônicos de entidades com tradição creditícia cria oportunidade ímpar de alavancagem do colateral de empréstimos dos pobres”, ressalta.
Segundo Marcelo Néri, “a colateralização das bolsas de programas sociais, assim como a regularização fundiária, são maneiras de democratizar o acesso ao crédito no país através do reconhecimento de direitos mais amplos de propriedade por parte dos seus detentores, no caso o direito do indivíduo de usar ativos como garantia de empréstimos”.

A associação do acesso a crédito ao Bolsa Família “é possível e é muito mais barato, pois existem instituições creditícias, como a Caixa Econômica Federal, que têm o cadastro dos beneficiários do Bolsa Família e todos os custos fixos para executar boa parte deles já foram incorporados na própria instituição do programa”, lembra o economista Marcelo Néri, da Fundação Getulio Vargas no Rio.

DANUZA LEÃO A tal da carência


Amor é bom, mas se jogamos no outro a responsabilidade por nossa vida e nossa felicidade, o peso fica grande

RECEBI carta de um leitor me fazendo a célebre pergunta: "Afinal, o que querem as mulheres?" Ele e seu grupo de amigos têm em torno de 40 anos, trabalham, são simpáticos, separados das mulheres, alguns com filhos, outros sem, mas não conseguem uma namorada; estão achando que o que as mulheres querem é um homem bonito, de sucesso, rico, apaixonado e fiel. Será?
Não, leitor, você não tem razão. As mulheres, para começar, são todas diferentes umas das outras, não existem duas iguais. Uma é capaz de gostar de um homem feio, pobre e sem emprego, casado, com filhos, além de tudo infiel (até a você), e se apaixonar perdidamente. Aliás, o que faz uma pessoa se apaixonar por outra? Vai saber. Este é um dos grandes mistérios da vida.
Pelas qualidades não é; pela disponibilidade não é; pela capacidade de serem fiéis também não. O interesse por alguém bate ou não bate; quantas vezes homens lindos e charmosos chegam perto de uma mulher, cheios de amor pra dar, e nada, porque não bateu? E quantas outras vezes uma mulher viu um homem lá no fundo da sala sozinho, totalmente desligado, e dá aquela curiosidade de saber o que ele está pensando, já que não está rindo e dizendo bobagens ou coisas inteligentíssimas, sozinho com ele mesmo, e parecendo não precisar de nada nem de ninguém porque não precisa de ninguém para existir? Algumas mulheres gostam de ter sua curiosidade despertada, de um certo desafio, para poderem testar seu poder de sedução e conquista. Porque dizem que são os machos que caçam, mas algumas fêmeas também adoram caçar.
Talvez meu leitor esteja agindo de maneira óbvia demais, ao tentar ganhar uma mulher. Mulher é um bicho complicado, e se sentir que a parada está ganha, perde o interesse. Assim como fica muito evidente, quando uma mulher está desesperadamente procurando um homem -e dessas eles fogem como o diabo da cruz; quando eles estão querendo muito uma mulher, elas também sentem e não se interessam, a não ser que o interesse seja especificamente nela. E sabe por quê? Porque fica claro que eles e elas não estão querendo aquele homem ou aquela mulher, mas qualquer um, qualquer uma, para suprir sua carência. E não há nada pior do que uma pessoa declaradamente carente. São os que estão sempre prontos para ver o filme que o outro quer, ir ao restaurante que o outro quer, que está sempre de acordo com suas opiniões, e antes de decidir qualquer coisa, procura saber primeiro o que o outro acha.
Quem entrar numa dessas vai se arrepender do dia em que nasceu. Porque os carentes jogam todas as suas fichas no outro; não têm vida própria, não têm prazeres pessoais, que seja ler um livro, jogar paciência ou ver vitrines, e é como se dependesse do outro para respirar. Amor é bom, mas se jogamos em cima do parceiro/a a responsabilidade por nossa vida e nossa felicidade, convenhamos, o peso fica muito grande.
Por isso, meu querido leitor, não fique procurando uma mulher para uma relação, digamos assim. Faça como Zeca Pagodinho: deixe a vida te levar e um dia, quando estiver distraído, ela vai aparecer, de mansinho, como quem não quer nada. Porque, percebendo que você não precisa dela para ser feliz, ela vai, quem sabe, até se apaixonar.
E não é isso que você quer?

João Ubaldo Ribeiro O golpe já começou (2)


Quando escrevi, há dois domingos, uma coluna com este mesmo título, não imaginava que iria, pelo menos tão cedo, abordar o assunto novamente. Peço desculpas a quem não leu o primeiro ''''capítulo'''', pois é claro que não posso repeti-lo. Mas não tem importância, porque ele, em última análise, procurava apenas lembrar como o Senado e a Câmara de Deputados são hoje, de modo geral, malvistos ou mesmo abominados pela maior parte do povo, e uma das conseqüências é a extinção do primeiro já ser amplamente sugerida, o que abre um caminho talvez tortuoso, mas claro, para a extinção da segunda.

Enfatizei o papel alarmante que ambas as Casas vêm desempenhando nesse processo. Com o caso Renan, o Senado parece estar à frente na competição pela impopularidade, mas isso, acredito eu, é temporário. A Câmara continua a também ser detestada, tida como mera fonte de corrupção, ineficiência e irresponsabilidade. Isso acaba se estendendo aos políticos e às atividades políticas de qualquer espécie. Para generalizar, admito que um pouco grosseiramente, o povo acha que político e ladrão, ou patife, são sinônimos. E parece que as duas instituições, com exceções individuais aqui e ali, que não afetam significativamente o quadro mais amplo, ainda não avaliaram com suficiente seriedade a contribuição decisiva que vêm dando a essa situação.

Quando e se isso acontecer, talvez já seja tarde demais e a ''''saída natural'''' certamente não será a democracia precária em que vivemos, apesar de ela ter sua robustez amiúde louvada, quase sempre da boca para fora e levianamente. Ela não é robusta coisa nenhuma e, sem o Congresso, desaparecerá. A ''''saída natural'''', com praticamente toda a certeza, será um ''''governo de salvação nacional'''', uma ''''frente avançada pelo bem do Brasil'''', uma ''''união nacional patriótica'''', uma ''''aliança democrático-progressista'''', ou qualquer rótulo bem soante desse tipo, dos quais há vasto repertório entre ditaduras e governos autocráticos. Ou seja, repetindo uma afirmação em que, também alarmantemente, cada vez menos se acredita: se com o Congresso estamos mal, sem ele estaremos pior.

Há os cínicos, primários, ignorantes e afins que sustentam que a repulsa à maneira, digamos, nojentinha, com que os políticos se têm conduzido reflete simplesmente o desconhecimento popular da famosa ''''governabilidade''''. O país assiste a um jogo de distribuição de cargos e vantagens aos partidos da chamada base governista e, quando alguém estranha a maneira despudorada, indecente e danosa aos interesses do país (pois dificilmente a aptidão para o cargo ou mesmo a necessidade dele é levada em conta), com que isso se faz, é taxado de ingênuo e até antidemocrata. Em qualquer país do mundo, a governabilidade é garantida por esse loteamento do poder - pontificam com o ar cansado do sábio que pela décima vez tenta ensinar algo ao néscio. É que nós somos atrasados e não temos maturidade para perceber isso.

Mas temos, sim, porque, se é verdade que a governabilidade nesses tais outros países é quase sempre obtida por meio de de negociações políticas, esta não é feita para a distribuição imoral de ''''gente nossa'''' onde couber, não importando a qualificação dessa gente, ou mesmo a inexistência de necessidade administrativa para ela. É feita com partidos de perfil definido, em torno de programas, filosofias de ação, políticas concretas e não de empreguismo desenfreado e descarado. A negociação é normal e necessária. A safadeza política, o clientelismo e o quero-o-meu não são. É isso que aqui choca, desaponta e murcha a esperança. E continuam a persistir na noção de que somos todos burros e ninguém está enxergando nada. Burros são eles, que, de tão sabidos, é que vão dar com os ditos burros n''''água, se persistirem nessa insensatez e na convicção de que podem continuar a nos impingir o que bem entendem.

Como também disse no capítulo um, não acredito na existência séria de golpismo no Brasil de agora. ''''Fora Lula'''' é uma palavra de ordem golpista, sim, que deve ser fortemente repelida por quem se quer democrata. Contudo, é mais um berro sem muito eco do que uma tendência política a ser levada em conta. E o governo tampouco dá indícios de que é golpista. Mas aí é que está o ponto G (G de ''''golpe''''): não é preciso, está tudo correndo no automático, o serviço está sendo feito pelo Congresso, pelos partidos e pela repercussão de seus atos junto ao povo.

Resta a polissilábica e sonorosa discussão dos especialistas sobre se o governo que viria seria de direita ou de esquerda. Besteira, desperdício de papel, erudição mal-digerida, comprometimento quase religioso com alguns princípios ou dogmas e muito pensamento voluntarista. Independentemente de discussões sobre o que é direita e o que é esquerda, os fatos têm de ser levados em conta. E um dos fatos principais é que, nem com essa valiosíssima ou imprescindível colaboração do Congresso e a desmoralização dos políticos, o partido do governo não tem nomes, nem de muitíssimo longe, que sirvam de alternativa para Lula. Ele não pode passar sem Lula, e Lula pode perfeitamente passar sem ele, como, aliás, já tem dado a entender, na minha opinião. Não só sem ele como sem qualquer outro partido, porque os outros se desfazem na sua inoperância e irrelevância para o homem comum. Só restou, visível e forte, o lulismo. Portanto, podem os muitos que assim desejam continuar a ficar discutindo os rumos ideológicos que o país tomará, se a crise política continuar e chegar a um ponto insustentável. Ao presidente nunca interessou muito esse negócio de esquerda ou direita. Agora com mais razão, pois tanto fizeram e deixaram fazer, que só dá ele. E ele brinca nas onze, todo mundo sabe, é só informarem para que lado ele chuta.

DANIEL PISA

Folhetim tropical


Quando soube que havia sido dado como morto, o escritor e humorista americano Mark Twain comentou com a ironia habitual: ''''Os boatos sobre minha morte são precipitados.'''' O mesmo vale sobre as telenovelas brasileiras. É um gênero que volta e meia é dado como acabado, mas eis que aparece uma que põe fim ao boato. Ele se integrou à nossa cultura - no sentido mais amplo, antropológico - de tal forma que muitas vezes é o próprio público que não o deixa morrer. Apesar do desdém de pseudo-intelectuais e da chatice de alguns teóricos, as novelas continuam dando o que as mais diversas pessoas esperam, em alguns casos talvez até mais. No mínimo, portanto, não podem ser ignoradas.

É claro que há muitos problemas. Um deles, porém, é seu maior trunfo: a sensação de que as novelas se arrastam. Essa mesma redundância é o que permite que eu, por exemplo, tenha acompanhado Paraíso Tropical sem ter assistido mais que à metade de seus capítulos. Mas uma das qualidades dessa novela de Gilberto Braga e Ricardo Linhares, que terminou anteontem (escrevo na quinta à tarde, sem ter visto os dois últimos capítulos), foi ser pouco arrastada, dosando boas reviravoltas na trama sem perder o fio e deixando apenas para os dois últimos meses a charada do ''''Quem matou?''''. E olhe que em minha opinião um dos principais respiros de qualquer história, o núcleo cômico, não funcionou bem neste caso; as seqüências do condomínio, com aquelas brigas de síndico, não me divertiam nada. No entanto, a novela teve muito humor.

Me refiro, claro, ao elenco de vilões. É por eles que Paraíso Tropical será lembrada. O casal feito por Wagner Moura e Camila Pitanga ofuscou o de Fábio Assunção e Alessandra Negrini, antes de mais nada pelas qualidades dos atores. Bebel se tornou popular, com seus bordões e roupas e sua mistura de malícia com ternura, mas para mim a grande atuação foi a de Moura como Olavo. A passagem calibradíssima do puxa-saquismo para a intimidação, do cinismo para o desarme, e o gestual próprio, como aquele levantar de ombros quando saía caminhando com arrogância, impressionaram, mesmo a quem já o admirava. Que ator! Como não bastasse, Chico Diaz (Jader) fez ótimo cafetão, Tony Ramos (Antenor) encarnou tão bem seu empresário que apagou a lembrança de papéis anteriores, Vera Holtz (Marion) brilhou como parasita da ''''high society''''.

Isso não levanta um problema, até de ordem moral? O casal bonzinho precisava ser tão xarope, tão caricato, tão unidimensional? Aqui e ali os autores tentavam dar consistência para eles, como quando deram a Daniel uma fala em que dizia para a gêmea má, Taís, que uma pessoa pode ser correta e esperta ao mesmo tempo e que nem todo trambiqueiro é inteligente. Mas ele e sua mulher não pareciam nada espertos; os vilões se divertiram mais, tiveram uma temporada bem mais intensa e arriscada. Essa diferença não foi exclusiva de Paraíso Tropical, claro. Vilões sempre puxam a audiência, como as recentes de Fernanda Montenegro em Belíssima, Renata Sorrah em Senhora do Destino e Cláudia Abreu em Celebridade; e basta pensar no Lineu da Grande Família (o excelente Marco Nanini) para confirmar a praxe de que o sujeito de bem é sem graça, burocrático, bege como sua camisa. Desde que folhetins existem é assim. Mas desta vez a assimetria extrapolou.

Apesar disso, a novela sobreviveu a todos os problemas - além do início hesitante, logo corrigido - porque levantava as questões certas. Embora sedutores, não havia dúvida sobre quem eram os vilões, nas mais diversas graduações, desde a vilã por falta de alternativa Bebel até o vilão por falta de caráter Olavo, passando pelo vilão por falta de amor Antenor. Atribuo a essas graduações o sucesso da novela. Numa época em que o Brasil lamenta e debate tantas nuances éticas, o encaixe foi enriquecedor. Sim, novela não se sustenta apenas nisso; precisa combinar divertimento, ação e romance, além de muita conversa fiada, a qual ajuda a dar para ela um ritmo parecido ao do nosso cotidiano. Mas o que dá grandeza é a maneira como traduz seu tempo - e não por acaso Roque Santeiro e Vale Tudo são até hoje eleitas como as melhores da história, justamente porque é impossível entender o Brasil da abertura democrática sem a primeira e o Brasil da decepção democrática sem a segunda. Faltou pouco para Paraíso Tropical chegar a esse patamar.

Outra prova de que novelas se amarram a suas épocas - até porque desenvolvidas de acordo com pesquisas - é a observação de que nos últimos anos a Globo abandonou a velha alternância entre uma novela rural (ou litorânea) e uma novela urbana. Todas as últimas foram urbanas. Se houvesse crítica cultural no Brasil, ela estaria refletindo sobre o motivo dessa mudança. A nação quer se ver nas novelas, e essa nação está em transformação acentuada dos anos 90 para cá; a vila de província dominada por coronel fazendeiro e padre paroquial ainda existe, mas fala a poucos; as metrópoles com periferias crescentes estão no foco. O que tudo isso mostra, claro, é que o Brasil já não é - se é que foi um dia e se é que não é melhor assim - nenhum paraíso tropical.

DE LA MUSIQUE

É um exercício interessante comparar a versão de Roberta Sá e a de Maria Rita para a mesma canção, Novo Amor, de Edu Krieger, em seus CDs recém-lançados. Até a faixa tem o mesmo número, 11. A de Roberta Sá tem um arranjo excelente, com Hamilton de Holanda ao bandolim, e sua interpretação é ao mesmo tempo mais lenta e mais luminosa. A de Maria Rita, com predomínio do cavaquinho, é mais acelerada, mas também mais plana. Seu timbre é lindo, sua afinação perfeita, e ela está mais contida nos trejeitos que tanto lembravam a mãe. Mas o samba que canta - seguindo a atual tendência de gravar o gênero - não parece descontraído.

Hamilton de Holanda, por sinal, está lançando dois belos CDs: Íntimo, em que toca clássicos como Beatriz, de Chico Buarque e Edu Lobo, e O Bem do Mar, de Dorival Caymmi; e, em parceria com o grande pianista André Mehmari, Contínua Amizade, em que, além de Cartola e Pixinguinha, eles dialogam em composições próprias, de Egberto Gismonti e de Guinga. São novos testemunhos do grande momento por que passa a música instrumental brasileira.

RODAPÉ

Lanço amanhã, a partir das 18h30, na Livraria Cultura da Avenida Paulista, meu novo livro, Contemporâneo de Mim (Bertrand Brasil), uma coletânea de dez anos desta coluna. Estão todos convidados.

POR QUE NÃO ME UFANO (1)

Por falar em nuances éticas, escrevi no blog, a pretexto de Tropa de Elite, que acho absurda a pirataria que feriu os direitos de todos que criaram, produziram e distribuiriam o filme. Não é que a maioria dos internautas defendeu a pirataria? Eles dizem que roubo é cobrar R$ 40 por um DVD, CD ou livro e que o governo não garante o acesso à cultura como prescreve a Constituição. Eis onde fomos parar. Uma coisa é dizer que os direitos de propriedade intelectual estão sendo rediscutidos em função da internet, e que hoje existem máquinas copiadoras que transferem porcentual ao autor. Outra é celebrar a pirataria como ''''atitude''''. Quem vive de pirataria não cria, não paga impostos e não zela pela qualidade; só por isso pode cobrar preço abaixo do custo e ser premiado pelo descaso geral com a lei, o que só faz encarecer o produto original. Isso sem mencionar que muitos poderiam sim pagar pelo ingresso de cinema ou pelo aluguel do filme - ou pelo livro de que tiram xerox nas universidades. O pior são os argumentos ''''laterais'''', digamos: quem é contra pirataria é por ser burguês, purista ou elitista...

POR QUE NÃO ME UFANO (2)

Com as novas revelações da Polícia Federal a respeito do valerioduto mineiro, tramado na campanha de Eduardo Azeredo para o governo estadual, tucanos e petistas ficam sem saída. Os tucanos se comportam da mesma maneira que Lula - dizendo que foi ''''apenas'''' caixa 2 - ou então comparam um esquema com outro, já que no caso federal houve o mensalão, o pagamento a políticos aliados nos bancos de Marcos Valério, mas nada garante que não aconteceria o mesmo se Azeredo tivesse vencido a eleição. Os petistas, por sua vez, não podem insistir na tese de que não houve dinheiro público, pois o esquema mineiro deixa mais uma vez evidente que Valério vivia dele e só dele, por meio de licitações e outros canais. Se FHC disse que o esquema petista mostrava um tipo ''''sistêmico'''' de corrupção, agora o PT pode dizer o mesmo sobre o tucano. Acontece que, aí, estaria confessando: ''''Somos todos iguais, afundados na mesma lama.'''' O cidadão, esse não pode imaginar outra coisa.

Alberto Tamer

Com petróleo a US$ 83, etanol é inevitável


E agora? O preço do barril de petróleo passou de US$ 83 na sexta-feira, um aumento de mais de 36% só neste ano. A tendência é de alta e tudo indica que o piso de US$ 80 parece ter vindo para ficar. E agora? Agora é que, para livrar-se da dependência perigosa do petróleo que mantém o mundo refém da Opep, não há outra saída senão o uso intensivo de etanol e outros biocombustíveis. Tudo o mais são teses engenhosas mas insustentáveis.

GASOLINA É SÓ 45%

Há, sem dúvida, uma campanha contra o bicombustível, alimentada pelos produtores e pelas companhias de petróleo.

A única exceção altamente louvável é a da Petrobrás, que aderiu ao etanol e está investindo pesadamente na construção de alcoodutos para atender o mercado interno e exportar. Ela sabe que o álcool substitui apenas um derivado do petróleo, a gasolina, e ela representa, em média, variando com o tipo de petróleo, cerca de 45% de um barril quando refinado.

Sei que os países da Opep têm muito a perder com os biocombustíveis, mas continuarão ainda lucrando muito com um preço que eles querem nos impor de US$ 85 e - por que não? - até US$ 100 o barril, que os especialistas prevêem para os próximos anos. Afinal, extraem a um custo irrisório de US$ 14 em média. Um lucro fantástico! E o resto do mundo que se dane.

MAS NÃO HÁ INFLAÇÃO!

Sim, a explosão do preço do petróleo ainda não está pressionando a inflação - afinal é coisa de alguns meses -, mas isso só nos países desenvolvidos, onde é alto índice de produtividade. EUA, Europa e Japão podem resistir ainda um pouco, mas os países menos desenvolvidos, os emergentes, como o Brasil, não! Aí está a inflação na China a 6,5% ao ano, a Índia, a Indonésia e o Paquistão, 6,5%, o Brasil apontando para 4%. Os ricos agüentam. Os menos desenvolvidos, não. E nem estou falando dos miseráveis da África e de alguns países asiáticos, que simplesmente se afundam ainda mais no drama da sua miséria.

O DILEMA QUE NÃO EXISTE

E aqui, surge o dilema que não existe entre etanol, o biodiesel e alimento. A cana está roubando áreas para plantio de grãos! Em conseqüência, os preços dos alimentos sobem vertiginosamente sem limite! É o que falsamente proclamam os arautos da fome, agora escorados em relatório nada convincentes da ONU. É mentira! Pura mentida. O que está causando uma alta de 40% nos preços do commodities agrícolas não é a queda na produção, que, ao contrário, aumentou, mas o aumento exacerbado do consumo.

E aqui se desfaz o dilema: etanol ou alimento. A corrida por comida surgiu nos últimos anos porque entraram e ainda estão entrando no mercado cerca de 3 bilhões de novos consumidores beneficiados pela melhoria dos padrões de vidas provocada por um longo e raro período de mais de seis anos de crescimento econômico. É praticamente a metade da população mundial! Alan Greenspan, ele mesmo, ressalta o fato, relegado por muitos a um segundo plano, ao afirmar que este afluxo ao mercado está mudando o cenário da economia mundial. E, neste cenário, o petróleo a US$ 80 é um verdugo e o etanol a US$ 35, uma salvação.

TODOS OS PREÇOS EM ALTA

Mas os arautos da fome não se cansam, e apontam, com o dedo em riste: ''''O biodisel é o culpado!'''' Uma análise das estatísticas sobre o custo das commodities nos últimos 12 meses mostra que as commodities agrícolas tiveram uma alta de 40%, sim, mas aqueles senhores se esquecem de que a nafta, refinada do petróleo, teve um aumento expressivo de 16,2% e os fertilizantes intensamente utilizados na agricultura também se originam do petróleo, esse mesmo a mais de US$ 80. É fácil imaginar quanto esse aumento pesou no custo da produção agrícola. E, mesmo assim, o etanol de cana permaneceu estável em US$ 35.

Se os preços das commodities industriais e minerais não se fizeram sentir até agora na inflação é porque seu efeito só virá mais tarde, no decorrer de meses, embutidos em outros produtos; ao contrário, o impacto da alta dos alimentos pesa imediatamente sobre o custo de vida, no consumo de cada dia.

Mas ninguém quis lembrar disso nas suas críticas ao biodisel. Ele é o culpado! Para que lembrar aqueles fatos? Vamos esconde-los, pois enfraquecem os nossos argumentos de acusação.

HÁ DISTORÇÕES... DELES

Há também distorções que levam a conclusões erradas. Por exemplo, o governo americano continua estimulando o plantio de milho para produzir etanol, um absurdo, pois o custo é US$ 65 enquanto o do etanol de cana não passa de US$ 35. E, para proteger seus agricultores, ele impõe uma tarifa de US$ 0,45 sobre etanol importado. Com isso, num sinal de estultice monumental, eleva os preços pagos pelo consumidor interno.

Isso até passaria se se concentrasse em aumentar o preço do etanol importado. Mas, não. O governo americano subsidia também fortemente a produção de milho destinado a produzia etanol, gasta mais de U$ 4 bilhões por ano (!) e, com isso, desvia o agricultor da produção de grãos para alimentação.

É lógico que os preços de todos os alimentos sobem! E ele ainda vem acusar o etanol de roubar terras da agricultura de grãos e provocar o aumento dos preços dos alimentos! Mas, olha aí senhores, a culpa é de vocês, não é nossa!!!

HÁ MUITA TERRA, SIM

Há ainda áreas imensas e mal exploradas para cultivar, há montanhas enormes de grãos estocados, há toneladas de leite em pó sobrando. É alimento à espera de consumo. Não falta nem faltará comida no mundo se esses estoques ociosos puderem ser consumidos. Sei que, quanto mais aumentar o consumo, mais aumentarão também os preços.

Mas há uma solução para esse falso dilema: que os países ricos desenvolvam um trabalho de apoio aos mais pobres para que eles produzam mais e melhor; o aumento da renda dos agricultores beneficiados compensará em muito o reajuste dos preços dos produtos que eles passarão a consumir. E, assim, se alcançará a meta da ONU, de combate à pobreza. Ela deveria ser a primeira a defender os biocombustíveis, pois eles criam empregos, geram renda e afastam a necessidade da esmola improdutiva como caridade contra a fome.

Mailson da Nóbrega

Porque o crescimento se acelera


Se for feita uma pesquisa para indagar quem é o maior responsável pelo aumento do ritmo de crescimento do PIB, Lula provavelmente será o escolhido. Assim como a maioria crê que ele fez a estabilização, creditar-lhe-ia também os louros dessa outra melhoria, atribuindo-os ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

No futuro, estudos sérios apontarão outra conclusão. Lula terá sua contribuição reconhecida, não pelo PAC, mas essencialmente pela coragem de abandonar idéias erradas sobre a política econômica.

O PAC prova a capacidade de marketing do governo. A idéia pegou. Lula transformou a sigla numa espécie de remédio caseiro que serve para tudo. Agora tem PAC da educação, da saúde, da segurança, do saneamento, dos índios...

O PAC tem foco certo: a infra-estrutura. Para geri-lo, adota-se modelo de administração do período FHC (''''Avança Brasil''''), uma grande melhora em um governo marcado pela pobreza de gestão, pelo escandaloso loteamento de cargos e pelo aparelhamento do Estado. Segundo informou Gaudêncio Torquato, 45% da cúpula do governo é sindicalizada (Estado, 23/9/2007).

O PAC não é nem será a causa da aceleração recente do crescimento. Se todos os projetos financiados pelo Orçamento da União forem executados (o que não está sendo o caso), o investimento anual será de menos de 1% do PIB, nível semelhante ao observado nos últimos anos. Os relativos às empresas estatais existiriam com ou sem PAC.

A aceleração se deve basicamente a duas causas: 1) a preservação da estabilidade macroeconômica, em razão da continuidade e melhoria da política econômica herdada de FHC; 2) o desempenho da economia mundial, que a partir de 2003 ingressou em seu melhor período desde a segunda metade dos anos 1970.

Antes da nova metodologia de cálculo do PIB, que o ampliou, se dizia que maior ritmo de expansão dependia de grandes reformas - previdenciária, tributária, trabalhista -, necessárias à elevação dos investimentos e da produtividade, que são as fontes básicas do crescimento. Essas reformas continuam necessárias, mas por que a melhora veio sem elas?

A explicação se deve ao amadurecimento das reformas microeconômicas dos últimos 20 anos e da estabilidade. A Tendências fez um levantamento dessas reformas e achou uma lista impressionante. O governo Lula contribuiu com a Lei de Falências, o crédito consignado, o ''''patrimônio de afetação'''', a obrigatoriedade do pagamento da parcela incontroversa de dívidas e medidas que asseguraram o uso da alienação fiduciária de imóveis. As três últimas beneficiaram particularmente o crédito imobiliário.

A estabilidade é, de longe, a principal causa. No fim do governo Lula, teremos completado 16 anos de mesma direção de política econômica, um feito inédito na história recente. Se a estabilidade for percebida como permanente, como é o caso, forma-se um ambiente de previsibilidade e se criam incentivos que dinamizam o crédito - que vem expandindo-se a dois dígitos por ano desde 2003 - e a atividade econômica.

Lula contribuiu para afastar o medo derivado de sua eleição, mantendo a autonomia operacional do Banco Central, que não sofreu aparelhamento e por isso compôs sua diretoria à base exclusivamente do mérito. O aumento do superávit primário, ainda que à custa de elevação da carga tributária, foi outra medida fundamental.

A gestão macroeconômica responsável do governo Lula reduziu substancialmente o risco político. Avalia-se que os futuros presidentes dificilmente poderão promover e manter retrocessos nessa área, uma realidade que se incorporou ao modo de pensar das empresas brasileiras. As multinacionais identificaram novas oportunidades, o que explica os inéditos níveis de investimento estrangeiro, que devem bater este ano o recorde de US 32,8 bilhões de 2000, agora sem privatizações.

A estabilidade e a previsibilidade têm gerado incentivos ao investimento e acarretado ganhos de produtividade. Viabilizam um novo ciclo de crédito imobiliário, que será mais amplo e duradouro do que o do antigo Sistema Financeiro da Habitação. O efeito desse ciclo no crescimento e no bem-estar será considerável.

Essas transformações pouco ou nada terão a ver com o PAC, mas não será surpresa se Lula reivindicar o respectivo mérito, nem se a opinião pública acreditar na sua fala.

A Petrobrás invadida Suely Caldas


Ao justificar nomeações políticas - a sua inclusive - para cargos de direção na Petrobrás, o novo presidente da BR Distribuidora, José Eduardo Dutra, disse que as indicações são políticas, mas os escolhidos são técnicos competentes. Trata-se de uma meia verdade, que, melhor seria, fosse inteira mentira. Ele próprio, Dutra, não se encaixa nem na meia verdade porque se tornou presidente da Petrobrás em 2003 sem nenhuma experiência que comprovasse competência técnica para o cargo. Saiu em 2005 e voltou na terça-feira, desta vez para a presidência da BR, escolhido por três critérios: 1) Perdeu eleição em Sergipe; 2) é militante do PT; e 3) é amigo do presidente Lula.

E como funciona a meia verdade de Dutra? Por que a mentira seria melhor? Desde que Lula e o ex-ministro José Dirceu institucionalizaram a chantagem e o toma-lá, dá-cá nas relações com os partidos aliados, funcionários da Petrobrás passaram a ser assediados por políticos, com promessas de cargos de direção ou promoção em troca de serviços prestados na estatal em favor do partido que assedia. É uma forma de aliciamento com o objetivo de extrair, do poder da Petrobrás de gerar obras e negócios milionários, certos favores e dinheiro extra para o partido. Alguns que não aceitaram o assédio ou ouviram confidências de aliciados contam como funciona o esquema.

O parlamentar procura o funcionário da Petrobrás com o pretexto de explicar a operação de seu interesse, antes rejeitada pela empresa. Na verdade, ele atua como intermediário de um promissor doador de campanha. Um aumento da cota de gasolina para uma distribuidora, rapidez na liberação de dinheiro para obra tocada por determinada empreiteira, enfim, uma infinidade de negócios cotidianos que uma empresa do porte da Petrobrás é capaz de gerar e por onde transita muito, mas muito dinheiro.

Se o funcionário resiste, o político insiste, diz que tem influência, acesso direto a ministros que decidem com Lula e pode ajudá-lo a ser promovido, fazê-lo diretor de uma subsidiária ou da própria Petrobrás. Este é um primeiro contato e também o primeiro teste de lealdade aplicado ao funcionário. Assédio aceito, acerta-se a aprovação da operação em questão e as conversas prosseguem. No encontro seguinte o político pede a lista das empresas que mantêm negócios com aquele setor da Petrobrás. Para quê? Para vender facilidades a outros promissores doadores de dinheiro ao partido. Sacramentado o aliciamento, o político leva o nome do leal funcionário para o partido barganhá-lo numa próxima votação no Congresso de importante matéria de interesse do governo. O funcionário acredita - afinal, assim funciona o governo Lula - ser este o único caminho para ele ascender na empresa ou até manter-se no cargo, livrar-se de retaliação política. E alguns têm cedido.

Por isso José Eduardo Dutra argumenta que os escolhidos têm preparo técnico. Óbvio, mesmo sem brilho, talento ou capacidade gerencial são pessoas com conhecimento e experiência na empresa. Porém a serviço do partido que o indicou, um prestador de favores, facilitador de negócios em favor de amigos generosos do partido aliado de Lula. Por isso Dutra fala uma meia verdade que melhor seria fosse uma mentira inteira. Afinal, aliciar para esse tipo de finalidade é uma prática que desmoraliza a Petrobrás, humilha o aliciado. E extinguir a meritocracia como critério de ascensão profissional - como ocorre hoje - desmotiva os que recusaram o assédio e compromete o desempenho da companhia.

E se Lula decidisse de repente abolir a nomeação política e partidária para a Petrobrás, como fez em 2003 ao fechar as casas de bingo? O que aconteceria? Claro, rebelião sem controle e mais retaliação do PMDB no Congresso. Chantagem é assim mesmo, se o chantagista é bem-sucedido na primeira vez vai em frente, quer sempre mais e mais.

Haveria, no entanto, uma saída se essa fosse mesmo a disposição de Lula: demitir todos os diretores com vinculação partidária, inclusive (e principalmente) os indicados pelo PT, substitui-los por funcionários de carreira, escolhidos por critérios de mérito e competência e fechar definitivamente as portas da Petrobrás para laranjas de políticos e seus partidos.

Como isso jamais vai acontecer, caro leitor, porque não interessa a Lula e muito menos ao PT (como eles gostam de cargo público!), a maior empresa do País, uma história de sucesso que tanto orgulha os brasileiros, continuará sujeita à invasão de aventureiros e aproveitadores. Pelo menos enquanto durar o governo Lula.

Celso Ming

Afundando


Quando o mercado fechou na sexta-feira, o dólar valia R$ 1,834, a cotação mais baixa desde setembro de 2000.

Neste ano já recuou 14,1%. Apenas em setembro foi um tombo de 7,1%. O exportador já se aflige antecipadamente com o dólar a R$ 1,80. E, pior, isso pode acontecer mais cedo do que se esperava há apenas um mês, quando a crise corria solta lá fora e puxava o dólar para cima.

Até dia 13 de agosto, o Banco Central ainda operava como comprador cativo. De lá para cá, está apenas espiando o movimento porque tem duas razões para se manter de fora. A primeira: as reservas externas já são de bom tamanho. Estão a US$ 162,5 bilhões, pagam toda a dívida externa pública não financeira e ainda deixam uma sobra de US$ 91,3 bilhões. Comprar mais dólares num momento de desvalorização da moeda americana em relação a quase todos os ativos importantes e, ainda, sacrificando recursos, começa a ser visto como queima de patrimônio público.

A outra razão é mais importante. A inflação voltou a mostrar a cara. O IGP-M de setembro foi uma pancada: avanço de 1,3%. O Banco Central passou o recado pelo seu último Relatório de Inflação de que vai ser preciso agir para conter o avanço dos preços dos alimentos. Isso pode significar que os juros tenham de parar de cair. Para que isso não ocorra e o Copom continue a usar sua tesoura, é preciso que outros mecanismos inibidores de inflação sejam acionados ou deixados soltos. Aí entra o papel do câmbio a serviço do controle da inflação.

Um dólar mais barato tende não só a derrubar os preços das mercadorias importadas, como também a desestimular o ímpeto remarcador dos produtores nacionais. Para continuar a derrubar os juros ou para não voltar a aumentá-los, o Banco Central pode deixar que o dólar seja abandonado à sua própria sorte.

Exportadores e industriais temem que isso aconteça e já pressionam o Banco Central para que volte às compras. Tentam demonstrar que está em curso forte desindustrialização e que determinados setores estão à beira da quebra porque já não conseguem competir nem no mercado externo nem no interno.

São argumentos pouco convincentes, na medida em que o consumo cresce quase 10% e a indústria, 6,5% em 12 meses. O setor de veículos, por exemplo, vai colocando nas ruas 27% mais unidades do que em 2006. O emprego formal está crescendo e não há notícia de grandes quebras, como as lideranças da indústria vêm sustentando.

Alguns analistas reivindicam instituições de controle do fluxo de capitais de maneira a impedir que enormes entradas de recursos desabem sobre o câmbio e derrubem ainda mais o dólar.

Esse controle seria um tiro no pé. Só a entrada líquida de Investimentos Estrangeiros Diretos (IED) neste ano deverá ficar muito próxima (ou até ultrapassar) dos US$ 40 bilhões. Também acima dos US$ 40 bilhões deverá ser o saldo da balança comercial, onde são contabilizadas exportações e importações. Assim, em duas contas, o Brasil deve receber neste ano US$ 80 bilhões. Como ninguém pode pretender cortar investimentos estrangeiros ou exportações, fica difícil entender o que seria esse controle.

DORA KRAMER O Judiciário e a cooptação

Depois de balizar o comportamento dos políticos em relação ao foro especial, dizendo - ao acatar a denúncia dos 40 envolvidos no escândalo do mensalão - que a instância superior não necessariamente significa um privilégio de abrigo à impunidade, o Supremo Tribunal Federal dará, na quarta-feira, uma sentença que pode também alterar parâmetros nos usos e costumes da política brasileira.

O STF julgará dois mandados de segurança pedindo ao presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia, que siga a interpretação do Tribunal Superior Eleitoral de que os mandatos pertencem aos partidos e não aos parlamentares, e declare vagas as cadeiras ocupadas por deputados que foram eleitos por um partido na última eleição e, de lá para cá, se transferiram para outras legendas.

Até agora os chamados infiéis são quase meia centena, 46 em 513, 9% do colegiado.

Numa leitura mais superficial, na quarta-feira estará em exame só a fidelidade partidária e, em jogo, a tese de que, uma vez eleitos, deputados e vereadores (os mandados dizem respeito apenas a eleições proporcionais, excluindo, portanto, senadores, prefeitos, governadores e presidente da República) estão obrigatoriamente atrelados ao partido pelo qual obtiveram legenda para concorrer, horário de televisão para fazer propaganda e dinheiro para financiar suas campanhas.

Mas subjacente a isso está uma questão mais profunda: a cooptação de parlamentares de partidos da oposição para a base de apoio governista, mediante a promessa de vantagens financeiras ou políticas.

Se o Supremo votar a favor dos mandados, não dará um basta à cooptação, pois a venda de voto independe da mudança de partido. Mas estará criando um obstáculo à formação de maiorias parlamentares em função do inchaço artificial de legendas de ocasião.

E qual o placar mais provável dos votos dos 11 ministros do STF? Em princípio, todas as apostas são de sentença em favor dos mandados.

Três ministros - Marco Aurélio Mello, Cezar Peluso e Carlos Britto - já se pronunciaram no TSE, cuja decisão foi unânime, favoravelmente à posse dos mandatos pelos partidos. Celso de Mello também se pronunciou assim em 1989 e foi voto vencido.

Restam sete votos, dos quais os de Gilmar Mendes e Carlos Alberto Direito são tidos como tendências a favor, uma vez que sempre defendem posições contra a liberdade de ir e vir sem freios, por razões não doutrinárias, entre uma legenda e outra, a despeito do resultado das eleições.

Mas sempre pode haver surpresas. No entendimento de Marco Aurélio Mello, "o Supremo vem de uma decisão que a sociedade aplaudiu e terá de decidir se, nessa questão dos partidos, reclamada pela população, andará na direção contrária".

Para ele, os deputados que ignoraram a posição do TSE - cinco deles mudaram de partido na semana passada - estão "pagando para ver". O que verão não se sabe, mas o ministro torce para que vejam prevalecer o princípio de que, não existindo candidatura avulsa para disputar eleições, o mandato pertence ao partido.

O ministro Gilmar Mendes não revela o voto, mas acha que, se a sentença restringir as trocas, haverá "escaramuças" na área política. "Não sou ingênuo de imaginar que aceitarão sem reagir à decisão."

Na opinião dele, reagirão os partidos que perdem deputados, os deputados que perdem as vagas, a Mesa da Câmara que convalida o troca-troca e o governo que se beneficia dele.

Mas, terão instrumentos legais para se opor ao STF? Na opinião de Gilmar Mendes, podem apressar a aprovação de lei para mitigar a fidelidade e anistiar os infiéis. Na visão de Marco Aurélio, "só se fizerem uma revolução".

O protagonista

Não chega a ser persona non grata, mas o ministro Joaquim Barbosa, o relator da denúncia do mensalão, tem se tornado um chamativo fator de atrito no Supremo Tribunal Federal, por causa das brigas em que se envolve publicamente com os outros ministros.

O mais recente foi entre ele e Gilmar Mendes por causa de uma questão técnica que, no entendimento deste, justificaria a repetição de uma votação. Barbosa o acusou, durante a sessão, de optar pela velha prática do "jeitinho".

Antes, Barbosa já entrara em confronto público com os ministros Marco Aurélio, Eros Grau e com o ex-presidente da Corte Maurício Correa, a quem acusou - e depois de retratou - de fazer lobby.

No particular, alguns ministros falam cobras e lagartos sobre o temperamento e o preparo (falta de) técnico de Barbosa. Mas como não há nada a fazer a não ser conviver, em público amenizam, embora não abram mão de manifestar o desconforto.

Gilmar Mendes diz que ele será sempre tratado como aquele integrante "problemático" de uma família, com o qual se é obrigado a manter relações. Marco Aurélio Mello, acha que é preciso relevar, pois "ele acabará aprendendo que no tribunal há espaço para divergências jurídicas, mas não para ofensas pessoais".

ELIANE CANTANHÊDE Um ano depois



BRASÍLIA - Um jovem controlador de Brasília nem sabia que o plano de vôo previa três altitudes, e seu colega de São José dos Campos simplesmente repassou a autorização de 37 mil pés até o aeroporto Eduardo Gomes, em Manaus.
Dois experientes pilotos americanos sabiam pouco do Legacy, avião novo em folha, e menos ainda das normas aeronáuticas do país.
O Legacy sobrevoou Brasília na altitude errada e seguiu rumo ao Boeing, que voava todo dia em 41 mil pés, mas justamente naquele pediu para baixar para 37 mil. O Cindacta-1 não alertou o Legacy sobre o erro, os pilotos nada perguntaram. Era hora da troca de turno, e o controlador que chegou teve dúvidas, mas o que saía respondeu que estava tudo bem. Não estava.
Já com o transponder inoperante, mas não por isso, foram várias as tentativas de comunicação via rádio entre o controle e o Legacy, que sobrevoava a floresta. Falharam.
O primeiro controlador errou, o segundo errou, o terceiro errou. Os pilotos erraram. E ninguém corrigiu. Brasília não alertou Manaus. O Legacy não baixou para 29 mil pés nem digitou o código de falta de comunicação -o que, aliás, reativaria o fundamental transponder.
Os aviões se chocaram quando um saía do controle do Cindacta-1 para o do 4, e o outro, o inverso. O "winglet" do Legacy atingiu caprichosamente área vital do Boeing, a asa. Cortou-lhe quase 7 metros de asa. O piloto Décio Chaves não teve a mínima chance. O avião despencou e se desintegrou no ar.
Um ano depois, persistem dois mistérios: por que nem o rádio nem o transponder funcionaram? Um raspão do pé do piloto? Uma inserção errônea de códigos? "Mau contato" ou "pane intermitente"?
O acidente impossível deixou 154 mortos e, no rastro, uma crise aérea sem precedente e o clima propício para a explosão do Airbus, dez meses depois. Agora, o importante é saber e entender, para prevenir.

No caso de MG, empréstimos foram pagos; no esquema do PT, não

Ainda sobre o valerioduto mineiro, vale a pena ler reportagem de Rubens Valente na Folha deste domingo (ler abaixo), que expõe as diferentes entre o esquema mineiro e o federal. Uma é bastante relevante: “No caso petista, os R$ 55,9 milhões utilizados no mensalão não foram pagos até hoje. Os bancos Rural e BMG cobram na Justiça de Valério e do PT cerca de R$ 100 milhões, em valores atualizados em dezembro de 2005. O PT reconhece uma dívida de R$ 11,6 milhões com os dois.No episódio mineiro, os empréstimos de R$ 28,5 milhões utilizados no valerioduto para custear a campanha majoritária de Azeredo e aliados foram quitados em 1998 e 99. Segundo a PF, as dívidas bancárias foram pagas ou mediante outros empréstimos ou por meio de depósitos em espécie de origem não identificada.”

Pois bem. Isso reforça o que já se sabe: a tramóia mineira foi mesmo eleitoral — e foi crime também, é óbvio. No caso petista, tratava-se de movimentação de dinheiro, fora do período eleitoral, para comprar parlamentares. Os empréstimos em Minas aconteceram de fato e foram quitados. No caso petista, há a forte suspeita de que jamais tenham existido: eram só uma forma de levar a origem ilegal dos recursos.

Quitação de dívidas distingue valerioduto mineiro do mensalão Esquemas divergem também no tempo de duração dos repasses e no envio de recursos ao exterior; em comum, está a técnica utilizada por Marcos Valério

RUBENS VALENTE
DA REPORTAGEM LOCAL da Folha

A comparação entre o mensalão operado pelo PT a partir de 2003 e o valerioduto comandado pelo PSDB em Minas em 1998 resulta em pelo menos três diferenças, segundo revelam as investigações da Polícia Federal e da Procuradoria Geral da República sobre os dois esquemas. Há divergências quanto ao tempo de duração dos pagamentos, à quitação ou não dos empréstimos bancários para os repasses aos políticos aliados e a remessas ao exterior de parte dos recursos.
No esquema petista, os pagamentos feitos pelas empresas do publicitário Marcos Valério de Souza aos políticos, assessores e fornecedores das campanhas se prolongaram até muito depois da eleição de 2002 -o último repasse é datado de 1º de outubro de 2004, segundo a lista de pagamentos entregue ao Ministério Público por Valério.
Há indicativos de que só pararam ali porque o "Jornal do Brasil" divulgara, apenas uma semana antes, uma reportagem com suspeitas sobre a existência dos pagamentos, cuja investigação decorrente logo foi arquivada pela Câmara. Em junho de 2005, o ex-deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) denunciou o mensalão, em entrevista à Folha.
No caso de Minas, os repasses ocorreram sempre em 1998, durante ou logo após a campanha daquele ano. A diferença leva o ex-governador Eduardo Azeredo (PSDB) a dizer, por meio de sua assessoria, que não houve corrupção de deputados da Assembléia de Minas para aprovarem matérias de seu interesse. Contudo, as investigações federais têm como ponto de partida o ano de 1998, e não se sabe exatamente se algum esquema estava em operação antes das eleições.
O segundo ponto divergente entre os dois esquemas trata do pagamento dos empréstimos bancários usados para financiar os políticos. No caso petista, os R$ 55,9 milhões utilizados no mensalão não foram pagos até hoje. Os bancos Rural e BMG cobram na Justiça de Valério e do PT cerca de R$ 100 milhões, em valores atualizados em dezembro de 2005. O PT reconhece uma dívida de R$ 11,6 milhões com os dois.
No episódio mineiro, os empréstimos de R$ 28,5 milhões utilizados no valerioduto para custear a campanha majoritária de Azeredo e aliados foram quitados em 1998 e 99. Segundo a PF, as dívidas bancárias foram pagas ou mediante outros empréstimos ou por meio de depósitos em espécie de origem não identificada.
Há pelo menos uma dívida em aberto no valerioduto mineiro, mas está fora do sistema financeiro: o ministro das Relações Institucionais, Walfrido dos Mares Guia, deu R$ 511 mil para Azeredo, segundo ele, a fundo perdido, por amizade.
A divergência entre os casos levanta a suspeita de que, no caso petista, os empréstimos foram tomados com a intenção de não serem pagos, como concluiu a CPI dos Correios. O delegado da PF Luís Zampronha, que atuou nos dois inquéritos, levantou outra hipótese: no relatório do valerioduto, ele escreveu que talvez o esquema petista tenha apenas ficado "incompleto", por isso os empréstimos ficaram em aberto.
"Diferentemente do apurado no inquérito policial 2245-4/ 140-STF [do mensalão], no presente caso foi observado o ciclo completo do procedimento ilícito adotado, que somente pode ser alcançado após o pagamento dos empréstimos, momento em que se revela a verdadeira origem dos recursos disponibilizados pelas empresas de Marcos Valério (...) Fica evidente que tais empréstimos não passaram de adiantamentos que foram posteriormente cobertos com recursos públicos desviados ou com valores disponibilizados por empresários que possuem fortes interesses econômicos junto ao Estado", concluiu Zampronha.
O terceiro ponto divergente trata dos pagamentos ao exterior feitos ao marqueteiro da campanha presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva, Duda Mendonça. A partir de 2003, ele recebeu R$ 10,5 milhões numa conta bancária aberta nos Estados Unidos em nome da empresa Dusseldorf, sediada no paraíso fiscal das Bahamas. Esse tipo de operação com evasão de divisas não foi registrado no caso mineiro.
Duda também foi o marqueteiro da campanha de Azeredo. Sua empresa recebeu R$ 4,5 milhões, mas o valor declarado à Justiça Eleitoral foi de R$ 700 mil. Os pagamentos foram em espécie, em cheques emitidos pela SMPB, de Valério.

Convergência
O principal ponto de convergência entre os dois casos é a técnica utilizada por Valério e pelos operadores políticos. Como apontou Zampronha, nos dois casos foi adotado um sistema que misturava, no caixa das empresas de Valério, recursos lícitos (contratos publicitários) e ilícitos (desvios, doações eleitorais clandestinas).
"Essa técnica, conhecida como "commingling" ou "mescla", caracterizada por esquemas que procuram ocultar os recursos de origem criminosa dentro das atividades normais de estruturas empresariais, é a mais utilizada por organizações criminosas", escreveu Zampronha. "Valério acredita na infalibilidade da metodologia (...) para dissimular a origem e ocultar o destino dos recursos da campanha, desconhecendo que essa tipologia de lavagem de dinheiro já foi devidamente esquadrinhada ao longo dos anos pelos organismos de repressão ao crime organizado", apontou.

ler:Sobre denúncias e gomos de lingüiça

Gaspari erra feio na conta e na cota

Elio Gaspari relata em sua coluna de hoje o que considera uma experiência bem-sucedida de cotas raciais. Escreve: “Falta pouco para a formatura da primeira turma de administração da Unipalmares, criada em 2003. São 160 alunos, 140 dos quais negros. Em março realizarão seu baile de formatura, com traje a rigor, no Jóquei Clube de São Paulo. É uma história de sucesso na qual não entrou dinheiro da Viúva, da igreja ou dos sindicatos. Desde sua fundação, pela ONG Afrobrás, ela se dispõe a ter 50% de alunos negros. (Contra 1,3% em São Paulo e 2,3% no Brasil.) Todos os seus vestibulares têm cerca de 80% de candidatos negros, com três inscritos para cada vaga. Hoje a Unipalmares tem 2.000 alunos, mais uma faculdade de Direito. (São Paulo tem 368 desembargadores, nenhum negro.) A mensalidade custa R$ 260, e a instituição mantém um inédito programa de emprego.” (íntegra abaixo ).

Com números certos ou errados, sou contra cotas. No caso do texto de Gaspari, há números errados — o que é muito comum nesses casos. Explico. A Unipalmares considera “negros” todos aqueles chamados “afrodescendentes” — e isso inclui os mestiços, que compõem o segundo grupo mais numeroso do Brasil no que diz respeito à cor da pele: só perdem para os brancos, que são a maioria. Segundo Gaspari, a Unipalmares se dispõe a ter 50% de alunos negros. E compara para nos chocar: eles seriam apenas 1,3% em São Paulo e 2,3% no Brasil. Digamos que esses números estejam certos (tenho dúvidas), observem: ele não põe na conta os mestiços. Entenderam? Um pardo é “negro” na Unipalmares (e isso é bom para ela), mas não é negro na USP (e isso é ruim para a universidade). O discurso racialista vive dessas distorções. O mestiço é pau pra toda obra. Se entrou na universidade sem o auxílio de qualquer maracutaia bolsista, vira branco; se não conseguiu passar no vestibular, vira negro e excluído.


Elio Gaspari

ZUMBI VAI BEM, OBRIGADO, NA UNIPALMARES Falta pouco para a formatura da primeira turma de administração da Unipalmares, criada em 2003. São 160 alunos, 140 dos quais negros. Em março realizarão seu baile de formatura, com traje a rigor, no Jóquei Clube de São Paulo. É uma história de sucesso na qual não entrou dinheiro da Viúva, da igreja ou dos sindicatos.
Desde sua fundação, pela ONG Afrobrás, ela se dispõe a ter 50% de alunos negros. (Contra 1,3% em São Paulo e 2,3% no Brasil.) Todos os seus vestibulares têm cerca de 80% de candidatos negros, com três inscritos para cada vaga. Hoje a Unipalmares tem 2.000 alunos, mais uma faculdade de Direito. (São Paulo tem 368 desembargadores, nenhum negro.) A mensalidade custa R$ 260, e a instituição mantém um inédito programa de emprego. Oito em cada dez alunos estão no mercado de trabalho, a maioria deles nos grandes bancos, que adotam salas de aula, oferecem bolsas, estágios e posições. Fora do mercado financeiro, só a Camisaria Colombo, onde funciona um sistema que dá 20% dos postos de trabalho a afrodescendentes. As aulas de inglês da universidade são dadas pelo curso Alumni.
Para que não se pense que essa experiência é uma iniciativa destinada a passar pó de arroz em jovens negros, o nome completo da escola é Universidade da Cidadania Zumbi dos Palmares.

sábado, setembro 29, 2007

VEJA Carta ao leitor

O Che por detrás do mito

No dia 9 de outubro de 1967, o guerrilheiro esquerdista Che Guevara foi morto na Bolívia. Quarenta anos depois, apesar da ruína total do socialismo, sua figura permanece intocada no panteão dos mitos. Para a juventude que quer mudar o mundo, o Che congelado na fotografia tirada por Alberto Korda em 1960 – uma das imagens mais reproduzidas de todos os tempos – encarna os ideais de justiça e igualdade. Para os renitentes ideólogos do marxismo, o herói romântico Che é um instrumento facilitador da doutrinação que continuam a fazer em escolas e universidades. Mas quem era o homem a partir do qual se forjou o mito? Haveria uma correspondência exata entre o revolucionário de carne e osso e aquele perenizado em pôsteres e camisetas? A reportagem especial que começa na página 82 desta edição de VEJA responde a essas perguntas.

Nossos repórteres tiveram a rara oportunidade (talvez a última) de conversar com pessoas que conviveram com Che em diferentes etapas de sua trajetória. Eles entrevistaram um companheiro seu de guerrilha, um colega no governo cubano e o responsável pela ordem que deu cabo de sua vida. Além disso, foram ouvidos seis historiadores, especialistas em Che ou na história de Cuba. O trabalho foi completado com a leitura de três biografias e dos textos escritos pelo guerrilheiro, distribuídos em oito volumes. Desse mergulho, emergiram dados curiosos. Um deles é que não há registro de que a famosa frase que lhe foi atribuída – "Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás" – tenha saído de sua boca. Quanto às indagações que moveram a reportagem, conclui-se que o mito esconde uma verdade pouco palatável. Che era um visionário, decerto. Mas foi, sobretudo, um homem feroz, que enxergava na violência um fim em si, e não apenas um meio para atingir seus objetivos.

VEJA : Alain Ducasse

Nenhum chef é gênio

O maior de todos os chefs da atualidade diz que o
trabalho e a repetição são o que garante a excelência
dos restaurantes e dos pratos que eles servem


Antonio Ribeiro, de Paris

Eric Martins/Le Figaro

"Ninguém consegue subtrair
o que a história nos legou.
Os franceses codificaram,
criaram hierarquia e
acumularam conhecimentos
sobre o modo de preparar alimentos"

Há vários hotéis cinco-estrelas e restaurantes três-estrelas, mas apenas um cozinheiro catorze-estrelas. Ele se chama Alain Ducasse. Aos 51 anos, esse francês que cresceu numa fazenda entre galinhas, patos e gansos comanda um império gastronômico mundial. São 21 restaurantes em oito países, onde trabalham 1.400 pessoas. Do grupo Alain Ducasse, que faturou 25 milhões de euros no ano passado, fazem parte também uma cadeia de hotéis, um centro de formação e uma editora. Alguns especialistas podem ser reticentes em considerá-lo o melhor cozinheiro do mundo, mas é inegável que, entre seus pares, nenhum conseguiu tanto sucesso. Na próxima semana, Ducasse desembarca no Brasil para receber o título de doutor honoris causa da Universidade Estácio de Sá (com a qual mantém uma parceria), inaugurar um laboratório gastronômico com seu nome e entregar certificados internacionais a alunos brasileiros. Antes de iniciar uma volta ao mundo para visitar seus domínios, Alain Ducasse conversou com VEJA em seu restaurante do Hotel Plaza Athénée, em Paris.

Veja – Nos últimos 100 anos, a alimentação humana sofreu mudanças dramáticas. Qual é sua percepção do resultado?
Ducasse – No que diz respeito à gastronomia, passamos de uma cozinha que impunha seus pratos para uma que faz propostas aos consumidores. Além disso, a excelência e a qualidade estão cada vez mais presentes. Nunca se louvou tanto a boa preparação dos alimentos. Pode-se comer melhor hoje em casa ou na rua do que no passado. A tendência geral aponta para uma alimentação mais saudável, leve, equilibrada, rápida e barata. Nunca como agora os bons hábitos alimentares e os malefícios para a saúde de uma alimentação inadequada foram tão amplamente difundidos. A comida tornou-se um elemento fundamental da economia mundial. Há um acesso maior a uma imensa variedade de produtos e, conseqüentemente, ampliou-se a possibilidade de combiná-los – inclusive pelos avanços da tecnologia culinária.

Veja – O prazer à mesa deriva apenas da preparação e do sabor dos alimentos?
Ducasse – Não. Para nós, latinos, principalmente, comer é uma oportunidade de convívio. A refeição ocupa um lugar central em nossa cultura. O prazer tem relação com quem compartilhamos a comida. Trata-se de um ato de troca e comunicação. Em família, com amigos ou entre um casal, a predisposição para aproveitar o sabor é maior. Como resultado das minhas viagens aos Estados Unidos, criei na França o restaurante La Boulangerie, onde as pessoas comiam sozinhas, em frente ao espelho. Não funcionou. Tivemos de mudar. Colocamos, então, grandes mesas coletivas, como nos tempos dos albergues do século XVI, onde as pessoas se sentavam segundo a ordem de chegada das diligências e comiam umas em frente às outras. O restaurante tornou-se um sucesso. Em outras culturas, comer significa apenas se nutrir. Nós até podemos chegar lá, mas a meu ver não será uma boa evolução.

Veja – Qual é a receita do restaurante ideal?
Ducasse – O restaurante é, evidentemente, um lugar para comer. Mas, ainda que a comida seja o principal, o ambiente é de fundamental importância para compor a harmonia gastronômica. O restaurante Le Louis XV, no Hôtel de Paris de Mônaco, mobiliza em torno de um só cliente cinqüenta objetos de serviço, entre pratos, copos, talheres etc. Quarenta pessoas estão a serviço do freguês. Ele reina. Tudo isso para lembrar que se está ali, em primeiro lugar, por causa do prazer proporcionado pelo restaurante. Chamo isso de "sentimento" do lugar. Todo restaurante, do mais simples ao mais sofisticado, enfrenta a mesma problemática: encontrar o "sentimento". A clientela, por sua vez, deve se sentir, ao mesmo tempo, atriz e espectadora desse espaço.

Veja – Qual é sua conduta para abrir um restaurante em um lugar desconhecido?
Ducasse – Procuro saber primeiro o que as pessoas comem no cotidiano, quais são suas preferências. Visito, ainda, as feiras livres e os mercados, para observar a riqueza e a variedade dos produtos. Em Kioto, no Japão, a relação das pessoas com a comida é completamente diferente da que se observa em Las Vegas, nos Estados Unidos. Portanto, não se pode propor o mesmo conceito em lugares distintos. Esse é um aspecto no qual a globalização ainda não teve grande influência. Num segundo momento, vou comer nos restaurantes locais. De posse do conjunto de informações cruzadas, vejo se posso contribuir, por meio da minha experiência pessoal aliada à tradição da culinária francesa. Ou seja, utilizar o método mais adequado para manter o sabor original dos produtos locais, enriquecendo-os com temperos e acompanhamentos atrativos.

Veja – A culinária francesa ainda tem a ressonância de outrora?
Ducasse – Ela é um clássico. Quem estuda arquitetura precisa conhecer o que os italianos fizeram em Florença, Veneza e Roma. Podemos não estar na melhor posição para vender computadores aos chineses, mas gastronomia ainda é conosco. Ninguém consegue subtrair o que a história nos legou. Os franceses codificaram, criaram hierarquia e acumularam conhecimentos profundos sobre o modo de preparar alimentos. A comida nos provoca grande curiosidade. Aprendemos a ser permeáveis sem deixar que a influência externa destrua nossas raízes. Nós nos inspiramos, não copiamos. Repare: os japoneses fazem uma espécie de ravióli cozido de um lado, que deixa o vapor sair do outro. Inicia-se o cozimento com água e óleo de gergelim em uma grande panela. Não acho o resultado interessante. Mas podemos nos apropriar da técnica para caramelizar os raviólis de cogumelos com recheio de presunto, uma iguaria. A atitude francesa em relação à culinária é um conhecimento indispensável para o bom cozinheiro.

Veja – Qual é o papel de um grande chef na culinária moderna?
Ducasse – Ele é como um maestro: dirige a cozinha e imprime o ritmo no salão. O chef é o centro em torno do qual gravita todo o funcionamento do restaurante. Seu, digamos, território mental deve estar expresso no conteúdo dos pratos. Se possível, com uma forma original e um perímetro de sabor bem definido. Ao criar uma culinária, é preciso ter a preocupação de perenizá-la. Receitas que buscam só efeitos são um sucesso apenas momentâneo.

Veja – Muitos criticam a ausência dos cozinheiros famosos na cozinha dos seus restaurantes. O chef deve permanecer sempre junto ao fogão?
Ducasse – Sim, como eu...

Veja – Não é o que se diz...
Ducasse – Estou brincando. Pouco importa se o chef exerce sua culinária nas panelas ou na cabeça. O importante é criar intelectualmente e delegar a uma equipe bem formada e azeitada a execução das receitas. E, ao final, assumir a responsabilidade se o restaurante vai bem ou mal.

Veja – Quem executa melhor suas receitas, o senhor ou seus cozinheiros?
Ducasse – Franck Cerruti, meu cozinheiro-chefe no Louis XV, executa melhor do que eu.

Veja – Por quê?
Ducasse – Porque é um trabalho de todos os dias no qual a repetição do gesto técnico leva à proximidade da perfeição – e Cerruti fica na cozinha do restaurante de manhã até a noite. Estou para fazer uma viagem de volta ao mundo, para visitar meus restaurantes. No entanto, quando chegar às cozinhas, vou dizer ao pessoal: "Eu não estou contente, vocês são ruins, faz-se melhor em outros lugares". Isso evita a rotina, desafia e estimula o espírito de competição – o que acaba por favorecer o cliente.

Veja – Na culinária, a criação em equipe é possível?
Ducasse – Sim. Quando se confia na equipe, é imperativo escutar. Na formulação de um novo prato, nenhuma contribuição é desprezível, todas devem ser recolhidas. A síntese e a decisão final são individuais, do chef. Sou democrático, mas quem quiser trabalhar comigo tem de aderir aos doze princípios que formulamos em nosso livro vermelho.

Veja – Quais são eles?
Ducasse – Pela ordem: paixão, prazer, compartilhamento, harmonia, performance, rigor, curiosidade, diversidade, excelência, respeito, audácia e memória.

Veja – A alta gastronomia deve ser necessariamente cara?
Ducasse – Essa questão é levantada com menos freqüência em relação aos preços da alta-costura. Ora, o brilho da alta-costura serve como referência máxima da moda, ajuda a impulsionar o prêt–porter. E a tecnologia de ponta dos carros de F1 se presta ao desenvolvimento da indústria automobilística. A mesma coisa acontece com a alta gastronomia, que contribui para a culinária de modo geral. Ela só pode ser cara. Afinal de contas, é feita com conhecimento e técnicas apuradas, por profissionais altamente qualificados e com os melhores produtos. É proposta ao cliente acompanhada de objetos refinados e no contexto de ambientes raros. Como em qualquer outro campo, a excelência merece ser premiada.

Veja – Chega-se à supremacia culinária pela genialidade ou pela técnica?
Ducasse – Eu não conheço gênio em culinária. O mais importante é o trabalho. A posse de conhecimento ultrapassa fronteiras, etnias e religiões. Leve o melhor enólogo para a China e dê-lhe condições para produzir um bom vinho. Se a natureza propiciar um mínimo de requisitos, nascerá um produto interessante. Evidentemente, ele não será nunca tão bom quanto um Bordeaux. Da mesma forma, um tomate é melhor se nascido às margens do Mediterrâneo. Isso não podemos modificar. Mas o saber é a melhor ferramenta para operar em ambientes restritos. Tenho grande apreço pela difusão do conhecimento. Por isso, fundamos a Alain Ducasse Formation. Neste ano, pela quinta vez, publicaremos um volume com mais de 1.100 páginas, com fotografias e receitas de todos os meus restaurantes pelo mundo. Não sou daqueles que acham que o saber gastronômico deve ser guardado como um tesouro no cofre.

Veja – Como o senhor vê a parceria da Alain Ducasse Formation com a Universidade Estácio de Sá?
Ducasse – Parece ser um casamento perfeito. Hoje, há 1 000 alunos brasileiros freqüentando o curso superior de tecnologia em gastronomia, no qual ensinamos a alta culinária francesa e de bistrô. Eles receberão um certificado internacional, que certamente ampliará suas oportunidades de trabalho. Eles poderão até mesmo trabalhar na França. Nosso interesse é acelerar a transmissão do saber gastronômico no mundo. Prevê-se um aumento na demanda de mão-de-obra no mercado hoteleiro e de restaurantes, e queremos participar da formação das pessoas que vão trabalhar nessas áreas.

Veja – O senhor já comeu feijoada?
Ducasse – Sim, o grande prato nacional brasileiro. É o equivalente ao poule au pot na França, embora os ingredientes sejam mais parecidos com os do cassoulet.

Veja – O senhor aceitaria o desafio de aperfeiçoar o preparo da feijoada?
Ducasse – Nós poderíamos nos debruçar sobre o assunto. O caminho da evolução deve acompanhar os anseios dos consumidores. Nesse particular, imagino que os cozinheiros brasileiros talentosos já tentaram tornar a feijoada mais leve, uma tendência da sociedade moderna. Mas não sou favorável a que se interfira radicalmente em pratos tradicionais de grande consistência. Eles devem permanecer tais como são, na sua essência original. Esses pratos servem como referência coletiva e, por isso, devem ser preservados. Estudei muito a história do cassoulet e, em nosso bistrô Benoit, preparamos o prato da maneira mais tradicional possível.

Veja – Em 1984, o senhor voava com quatro pessoas num aviãozinho Piper Aztec entre Saint-Tropez e Courchevel. O avião caiu e o senhor foi o único sobrevivente. Como o acidente mudou sua vida?
Ducasse – Desde então, tornei-me outro homem. Os problemas do cotidiano perderam a relevância. Eu descobri que o verdadeiro problema é quando se perde a capacidade física e mental para ser autônomo. O resto é literatura. Fiquei um período longo incapacitado para o trabalho e tive tempo de repensar meu ofício. Eu construí vários restaurantes e receitas apenas com minha imaginação. Se não fosse pelo acidente, eu ainda seria aquele cozinheiro que vai ao mercado de manhã e, depois, cuida do almoço e do jantar.

Veja – O senhor já disse que é o Fred Astaire da gastronomia. O que isso quer dizer?
Ducasse – Isso significa que eu posso levar um tombo, caso não me preocupe sempre em dar o passo certo. Minha impressão é que Fred Astaire tinha a mesma sensação quando dançava.

MILLÔR

20 (VINTE) REFLEQÇÕES
AUTO-REFERENTES

1. Também não sou um homem livre. Mas muito poucos estiveram tão perto.

2. Não adianta me exaltarem. Sou apenas um homem comum levado a suas extremas conseqüências.

3. Sou civil desde nascença.

4. Estou escrevendo minha biografia. Mas ainda não decidi se vou morrer no fim.

5. Quando fizerem minha autópsia encontrarão o Rio no meu coração.

6. Declaro aqui a ciência que, hoje, admiro mais. É a mais moderna – a arqueologia.

7. Ser brasileiro me deixa sempre um pouco subdesenvolvido.

8. A cada dia aumenta em mim a sensação perturbadora de ser feliz num mundo em que isso é considerado reacionário.

9. Eu não nasci só pra viver, mas pruma coisa muito melhor que ainda não descobri o que é.

10. Minha especialidade e meu orgulho – sou o maior leigo do país.

11. Sou carioca de algema (com música de Carlos Lyra).

12. Até os 12 anos morei em casas, espécie de apartamentos primitivos.

13. Eu sempre sei do que estou falando. Tirando isso não sei mais nada.

14. Cada vez mais cético, não acredito nem no refluxo da maré. Sei que um dia ela não volta.

15. Não há nada mais equivocado do que ter certeza.

16. "Ver para crer." Vou além de Mateus. Vejo e não creio.

17. Muitos dão a vida por suas crenças. Nunca arrisquei a vida pelo meu ceticismo.

18. Quando acordo de manhã tenho a certeza de que não morri de noite. E fico feliz com isso.

19. Neste mundo não há felicidade. Eu sou feliz assim mesmo.

20. Só conheço uma verdade definitiva: a do compasso.

ÍCONE para o genial princípio brasileiro sacro-erótico:
AJOELHOU – TEM QUE REZAR

André Petry

Que Brasil é este?

"Entre documentos perdidos em uma enchente e contratos de gaveta, entre a punição injusta
e a impunidade aberta, entre um catador de
papelão e um senador da República, temos
a crônica de dois Brasis"

Em março de 2005, o catador de papelão José Machado Sobral foi preso por engano em Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo. Confundido com um suspeito de tentativa de homicídio, ele foi levado para uma delegacia. Sem documentos, que perdera numa enchente, e sem dinheiro para pagar advogado, acabou sendo conduzido a um presídio. Ficaria dois anos e meio preso por um crime que não cometeu.

(Na mesma data, o senador Renan Calheiros rompeu sua sociedade secreta com o usineiro João Lyra em uma rádio e um jornal – é aquela sociedade selada com contrato de gaveta, uso de laranjas e pilhas de dinheiro vivo.)

Em junho de 2006, o catador de papelão já completava um ano e três meses de cadeia e, como ninguém conseguia confirmar sua identidade nos arquivos de seu estado natal, Pernambuco, um juiz mandou libertá-lo. Mas a burocracia não emitiu o alvará de soltura, e o catador de papelão ficou na prisão. A essa altura, dividia a cela com vinte presos.

(Na mesma data, tal como previam seus planos, Renan Calheiros ficou encantado com a agilidade da burocracia do Ministério das Comunicações: ganhou a concessão de nova rádio FM para operar em Alagoas. Meses depois, a concessão seria aprovada em sessão do Congresso, presidido pelo próprio Renan Calheiros.)

No dia 6 de setembro passado, finalmente exibiram uma foto do catador de papelão à vítima em Pernambuco. A vítima disse que a foto não era do assassino. O catador de papelão era negro. O assassino, branco. O catador de papelão tem 54 anos. O assassino, uns 40. Estava desfeita a confusão, mas José Sobral seguiria preso. Nem o juiz de Guarulhos nem o de Pernambuco tinham autoridade para soltá-lo.

(No mesmo dia, os jornais noticiaram que o Conselho de Ética do Senado decidira, por 11 votos contra 4, pedir a cassação do mandato de Renan Calheiros. O pedido de cassação não se devia ao laranjal da sociedade clandestina em rádios e jornais, mas ao uso de um lobista para pagar suas despesas pessoais. O senador disse aos repórteres: "Vamos ganhar. É ter calma". Ganhou mesmo.)

No dia 21 de setembro, Renan Calheiros perdeu seu advogado, Eduardo Ferrão. Dono de um dos escritórios mais caros de Brasília, Ferrão alegou que estava farto do assédio de repórteres e fotógrafos. Achava que o tumulto estava prejudicando outros clientes. Renan compreendeu. Afinal, com a absolvição no caso do lobista, o advogado cumprira a missão.

(No mesmo dia, depois de dois anos e meio preso por engano, o catador de papelão foi libertado, graças ao empenho de um defensor público, Bruno Lopes de Oliveira. Em entrevista ao repórter Rogério Pagnan, do jornal Folha de S.Paulo, José Sobral disse: "Eu não tinha ódio nem revolta. O ódio que está dentro de mim é terrível. Imagina ficar numa cadeia tanto tempo sendo inocente. Como você ficaria?".)

Entre documentos perdidos numa enchente e contratos de gaveta, entre um advogado abastado que parte e um defensor público que chega, entre a punição injusta e a impunidade aberta, entre um catador de papelão e um senador da República, temos a crônica de dois Brasis. Isso é triste.


Arquivo do blog