A polêmica seguiu Tropa de Elite até a Alemanha. Mas não
impediu que o filme de José Padilha ganhasse um dos mais
relevantes festivais de cinema e deixasse a Europa com
sua carreira internacional garantida
Isabela Boscov e Silvia Rogar
Padilha, com o Urso de Ouro dado a Tropa (no detalhe): aval de Costa-Gavras, um dos ícones do cinema de esquerda |
No domingo passado, a 58ª edição do Festival de Berlim se encerrou dando a Tropa de Elite seu prêmio máximo, o Urso de Ouro. De acordo com o presidente do júri, o cineasta grego Costa-Gavras, a decisão com que os jurados derrubaram outros concorrentes fortíssimos, como Sangue Negro, foi unânime. Esse, no entanto, foi o único consenso alcançado pelo filme, que repetiu durante o evento a trajetória polêmica percorrida no Brasil em 2007 – mas numa arena bem mais ampla. Tropa obteve excelente acolhida de muitos dos críticos presentes e do público alemão – sinal de que foi bem compreendido. Alguns jornalistas, entretanto, lhe dedicaram resenhas virulentas. "Uma peça de recrutamento para fascistas", escreveu a Variety. "Os brasileiros deveriam ter vergonha do sucesso de Tropa de Elite", opinou o jornal inglês The Guardian. "Não me chateia que as pessoas amem ou odeiem o filme", diz o diretor José Padilha. "O que me chateia é agüentar essa desonestidade intelectual: acusar Tropa de fascismo é não apenas equivocado, mas também uma forma de se excluir das circunstâncias de que o filme trata e fazer assim um auto-elogio moral." O diretor acredita que a forma como o filme foi exibido para a imprensa contribuiu para as reações negativas. Por gafe da organização, ele passou com legendas em alemão e tradução simultânea improvisada para o inglês.
A chancela de um diretor como Costa-Gavras, autor de símbolos do cinema de esquerda, como Z e Estado de Sítio, ajuda a dispersar essa confusão ética e ideológica. O mesmo se pode dizer dos comentários publicados em vários veículos europeus que refutaram o suposto fascismo de Tropa. Mas é fato também que a realidade que se vê na tela desafia a imaginação de um europeu ou um americano. E, graças à vitória em Berlim, já é certo que logo esses cidadãos poderão assistir a Tropa em circuito comercial.
Antes mesmo da premiação, já se haviam firmado vários acordos de distribuição. À semelhança do que se passou com Cidade de Deus, o estilo urgente e o conteúdo explosivo devem garantir mais exposição internacional. Segundo Walter Salles, que em 1998 ganhou o Urso de Ouro com Central do Brasil, o prêmio em Berlim deve abrir muitas portas para Tropa. E pode também se traduzir em mais liberdade criativa para Padilha e em cacife para apoiar projetos de outros diretores.
No que depender dos pesos pesados por trás do filme, os dividendos acumulados na Alemanha serão capitalizados ao máximo. Tropa é o primeiro título a reunir a dobradinha composta pelo argentino Eduardo Costantini Júnior e o americano Harvey Weinstein. Costantini, 32 anos, é herdeiro do multimilionário que fundou o Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires (Malba) para abrigar sua coleção de arte. Deixou a direção do museu para lançar um fundo destinado a produzir filmes latino-americanos. Em suas prospecções, conheceu Padilha e leu o roteiro de Tropa. Viu que ali havia potencial e arrumou o sócio perfeito: Weinstein, ex-proprietário da produtora Miramax, consagrador do "filme de arte para as massas" e fã do cinema brasileiro. Responsável pelo sucesso de Pulp Fiction, Cinema Paradiso e O Paciente Inglês, entre muitos outros, Weinstein comandou a campanha que resultou nas quatro indicações de Cidade de Deus ao Oscar, em 2004. "Nosso foco são histórias locais capazes de cruzar as fronteiras, com alto nível de produção. Tropa tinha esse apelo", diz Costantini.
Weinstein liderou a força-tarefa que levou Tropa a Berlim – e, com a vitória, já retraça seus planos, com o apetite costumeiro. O lançamento nos Estados Unidos deve ser reforçado. A prioridade são os grandes centros e as cidades com grande população latino-americana. Quando levou Cidade para as salas americanas, Weinstein conseguiu mantê-lo em cartaz por 75 semanas consecutivas. "Nós nos orgulhamos de nossa habilidade para inovar nas estratégias de marketing e distribuição de filmes estrangeiros controversos como Tropa", disse a VEJA. Críticas negativas como a da Variety também não o incomodam: "É coisa de quem não entendeu o filme". Na opinião de Padilha, seus autores talvez não entendam a própria história recente. "É um hábito ver os eventos sociais pela ótica marxista ou pela ótica liberal, como se não existissem outros parâmetros. Então, é muito bom que Tropa tenha sido exibido em Berlim. Foi lá que caiu o Muro. E foi lá também que essa dicotomia morreu."
O dilema do policial
George Karger/Getty Images |
Von Neumann: lógica no caos generalizado |
Um dos mais brilhantes pensadores da história, o húngaro-americano John von Neumann (1903-1957) enxergava lógica onde parecia haver caos. Ele acreditava poder explicar, com fórmulas, a motivação por trás de qualquer empreendimento humano – do pôquer à concorrência empresarial. Dessa obsessão nasceu a Teoria dos Jogos, ramo da matemática que serviu de base para o diretor José Padilha, com formação em física, expor, em Tropa de Elite, os fatores quase intransponíveis que corromperiam policiais cariocas. A teoria estuda diferentes estratégias escolhidas por jogadores, em um dado ambiente, para maximizar suas vantagens. Exemplo famoso da teoria é o "Dilema do Prisioneiro", que explora as escolhas à disposição de dois presos colocados em celas separadas e instados pela polícia a se denunciarem mutuamente. E qual é a relação disso tudo com as favelas cariocas? Diz Padilha: "Quais são as regras às quais um policial no Rio está subscrito? Ele recebe 400 dólares por mês, é mal treinado e colocado numa estrutura corrompida. E a gente pede que ele faça valer a lei em favelas com pessoas fortemente armadas, com grande risco de morrer durante um longo período de tempo. Diante desse cenário, quais são as decisões racionais que ele pode tomar? O filme nem julga nem endossa personagens como o Capitão Nascimento; ele procura mostrar as ações e decisões que estão ao alcance deles dentro do jogo do qual participam". O filme, portanto, usou a razão para expor os fatores que levam policiais a se corromper. Com isso, ajudou a tirar a roupagem ideológica que cerca o debate sobre a criminalidade no Brasil.