O Globo |
27/2/2008 |
Desde pequeno - devo observar que fui menino no Brasil das primeiras quatro décadas do século passado - eu sempre fiquei intrigado com o lugar da polícia. Com o seu espaço relativamente às outras instituições da sociedade, como a escola, o hospital, a igreja, a escola etc... Na minha memória, a polícia figura como uma instituição marginal. Prova isso a expressão "caso de polícia" que, ao lado de sua irmã gêmea, "chamar (ou "dar parte") a polícia" exprimia a fronteira da tolerância social e o limite da convivência do que, àquela época, o Brasil tomava como decente ou correto. Num sentido preciso, a polícia e os policiais eram figuras acidentais na vida de nossa família composta de pais, tios, filhos e avós que, na ampla varanda da Rua Nilo Peçanha, em Niterói, discutiam com veemência e bagagem cultural baiana e amazonense os problemas nacionais. Foi ali que ouvi de um tio iconoclasta que, para horror dos outros membros do grupo se autodefinia como comunista, que a palavra democracia significava "governo do demônio". Foi minha primeira aula de ciência política. No entanto, substitua-se democracia por capitalismo e teremos a ideologia da intelectualidade brasileira. Mas, voltando ao lugar da polícia (algo bem diferente da polícia como aparato e, mais ainda, de sua história), noto como era afrontoso ameaçar com a polícia a um vizinho que dava uma festa ou a um casal de relacionamento conflituoso. É claro que, naqueles velhos tempos, a polícia tinha o papel de fiscalizar e eventualmente inibir, com uso da força, quem ultrapassava os limites da chamada "ordem pública", uma ordem que - tanto ontem, quanto hoje - jamais foi discutida em profundidade, e que se fundava em aparências. Na casa caiada, na ostentação dos gastos de donos sem dinheiro, na moralidade do "roupa suja se lava em casa". Pois, no nosso bairro, o "barulho", a briga ou a discussão que incomodavam e promoviam o imperativo de "chamar a polícia" não era que fazíamos na nossa varanda, ou acontecia na casa das pessoas ricas, "que se lavavam", eram "educadas" do nosso bairro, mas dos socialmente subordinados ou inferiorizados: empregados domésticos, pequenos funcionários públicos, desconhecidos e negros, moradores do morro situado nos fundos e no alto da rua, mas também das mulheres desquitadas com um estilo de vida independente de homens: de um "macho", do pai ou de irmãos. Daí, a minha surpresa quando meu saudoso tio Silvio, ao ver passar uma dessas moças lindíssimas que residia na vila, exclamar olhando para o seu glorioso bumbum (que chamávamos de "lorto"): "Isso é um caso de polícia!" Do lado mais dramático, ocorriam episódios em que seria óbvio chamar a polícia, mas ela era ignorada. Lembro-me de um espancamento por suspeita de furto e conduta sexual inapropriada de um rapazinho que era um "criado-empregado" por um "chefe da família", última instância dentro desse sistema freyrianamente patriarcal. Falava-se que o jovem fora flagrado iniciando sexualmente um dos meninos da família, justificativa mais do que suficiente (ou legítima - mas quando o suficiente se transforma em legítimo?) para a reprimenda drástica dentro da casa (e não numa chefatura de polícia) por parte do responsável por suas fronteiras. Um castigo, acrescento, que simplesmente repetia - como ocorre até hoje - o uso da força física por meio das palmatórias, açoitamento com cinturão, cassetete ou porrete porque era pelo corpo devidamente assolado pela violência - a brutalidade sem mediação que chega com tempo, lugar, aparelho e pessoa marcada - que se aprendia para sempre as normas básicas de decência. Isso é o "seu lugar" dentro do sistema: a sua posição relativamente aos que nos fazem, educam, amam e, acima de tudo, dizem quem somos. Nesses casos, a hierarquia inscrita no coração das pessoas não demandava chamar a polícia. Mas esta era invariavelmente convocada quando se tratava de um conflito entre os indivíduos marginais ao sistema hierárquico. Para esses indivíduos sem patrão, compadre, amigos importantes ou "eira ou beira". Pois quem gozava de uma duvidosa igualdade, submetido que estava à lei geral, a arbitragem policial era a regra. O medo da "gente", no duplo sentido brasileiro de ser reconhecido como parte de uma família e rede de relações distintivas - que nos tornava "pessoas" (prisioneiras) de cadeias sempre relativas de prestígio, influência e poder efetivo -, era ter esse confronto com agentes da lei que, ao menos em teoria (mas dificilmente na prática), iria nos tratar de modo afrontoso, dentro de um estilo impessoal e igualitário. Resultado: era vergonhoso chamar a polícia tanto quanto era estranho conviver com ela. Como situá-la como parte de nossas vidas, se o seu lugar era marginal a tudo o que fazíamos? Se "sabíamos" que quem era importante ou "pessoa de bem" jamais teria com ela qualquer relação? Como deixá-la entrar em nossas casas? Essas casas que, quando eram casas-grandes com senzalas repletas de escravos, tinham cada qual seus policiais? |
Entrevista:O Estado inteligente
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quarta-feira, fevereiro 27, 2008
Roberto DaMatta O lugar da polícia
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