Entrevista:O Estado inteligente

domingo, fevereiro 24, 2008

Verdades, mentiras e versões

Gaudêncio Torquato

Em que e em quem acreditar? No destemido deputado José Eduardo Cardozo? Do alto da condição de secretário-geral do PT, não teve dúvidas em confirmar a existência do mensalão, "vou ser claro: teve pagamento de recursos para políticos aliados? Teve. Ponto final". Ou no ex-todo-poderoso chefe da Casa Civil do governo Lula e ex-presidente do PT José Dirceu, que garante não ter existido aquele tipo de propina? No empresário e advogado, Rogério Buratti que, em 2005, denunciou o ex-prefeito e ex-ministro Antonio Palocci por receber mesada de R$ 50 mil de uma empresa e ser responsável por desvios, fraudes e contratos de lixo superfaturados na prefeitura de Ribeirão Preto? Ou no mutante Buratti que, agora, corre ao cartório para negar tudo o que disse? Tem mais credibilidade o professor de Direito Constitucional, José Eduardo, o próspero consultor Dirceu ou o ex-auxiliar do prefeito Palocci? Jesus Cristo ensinava: "Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará." Conhecer a verdade por estas plagas é missão quase impossível. Enquanto se espera que a Justiça estabeleça o império da verdade, a sociedade continuará presa ao grilhão de mentiras, versões e dúvidas que, nos últimos tempos, têm consumido os últimos pingos de crença nos valores da política, na ética de seus representantes e, por conseqüência, na força moral das instituições.

Até hoje, o mensalão, mesmo depois de caracterizado pelo procurador-geral da República, continua envolto em nuvens. Pode-se, ainda, aplicar o termo usado pelo procurador Antonio Fernando de Souza - quadrilha - para designar os 40 envolvidos na rede de corrupção por ele denunciada? Ou será que a referência a eles como quadrilheiros não gera processo contra quem assim se manifesta? O ambiente institucional é um emaranhado. Declarações de atores dos dois lados do palco se chocam, estabelecendo um confronto de versões e contribuindo para expandir o oceano de interrogações que inundam os espaços sociais. Ao longo de um processo contínuo de escândalos, desvios e ilícitos de toda a ordem, não se sabe mais distinguir entre o essencial e o secundário, prioridades e detalhes, coisas sérias e fúteis, perfis dignos e trânsfugas, homens e sombras. Nada é certo. Nada tem prazo. Qual o tempo para tomar depoimentos dos envolvidos no escândalo do mensalão? Só Deus sabe. Afinal, a recém-instalada CPI mista para apurar os desvios dos cartões corporativos vai ou não funcionar?

Mas, para que se formar uma CPI, se os resultados são plenamente previsíveis? Os atuais sistemas de controle - Tribunal de Contas e Controladoria-Geral da União - não chegariam a apontar os mesmos desvios? Já se sabe que os cartões foram usados de maneira inadequada. E que, em alguns casos, compraram tapioca, presentes e até pagaram reformas em apartamentos. Ademais, a blindagem que efetivamente interessa ao Poder Executivo foi conseguida pelo compromisso de se preservar o sigilo das contas dos familiares dos presidentes Luiz Inácio e Fernando Henrique. Ou seja, a CPI vai fazer as coisas pela metade dentro de um arranjo que convém às partes. E as brigas? São firulas para efeito midiático. Conveniências ditam a pauta. Portanto, o País vai perder tempo com a pirotecnia de mais uma Comissão de Inquérito, em que se verão exacerbações discursivas e desfiles intermináveis de depoimentos no palanque da autodefesa. E, por falar em defesa, mais contradição. O presidente da República demitiu Matilde Ribeiro por comprar jóia em free shop, mas, ao dar posse ao novo titular da Pasta da Igualdade Racial, garantiu que ela não tem culpa. Saiu para não ser massacrada. E a verdade?

No fundo do cenário, a tristeza se completa com a constatação de que a representação parlamentar prefere parar na encruzilhada a seguir a rota. Basta constatar que a quadra institucional é propícia às reformas. Estamos no meio de um mandato presidencial - distante das eleições presidenciais de 2010 - sob um ambiente de estabilidade econômica. A base da pirâmide se mostra satisfeita com sua condição de vida, enquanto as classes médias adotam uma postura de conformismo. Pesquisas indicam que os conjuntos sociais expandem aprovação ao desempenho do presidente Luiz Inácio, possivelmente pelo fato de que o País afastou (por enquanto) horizontes turbulentos. Nessa esteira, seria natural abrir o tão ansiado pacote de reformas fundamentais, principalmente nas áreas política e tributária. Esta última, por sinal, acaba de ser encaminhada, mas já é considerada um bode na sala: com ela, o governo pretenderia neutralizar o debate sobre o cartão corporativo. E, assim, o Brasil gira em círculos.

Se a base econômica do País se fortalece, movida pelo moto-contínuo das economias interdependentes e globalizadas, o tecido político se esgarça, quebrando-se a cada puxão dos fios. O Executivo continua a fazer do Legislativo um Poder rebocado e praticamente alheio à dinâmica social. É um escracho esta última MP, feita para conferir o cargo de ministro ao secretário da Igualdade Racial, apenas para Edson Santos não perder o cargo de deputado. O Judiciário, sem aparato para responder às crescentes demandas sociais, padece com a sobrecarga que lhe é imposta pelo próprio Poder Executivo. Os partidos não mais representam o pensamento de parcelas. Por conseqüência, agigantam-se os fulanos e sicranos, mais animados pela ocupação de espaços do que pela seiva cívica. Os valores soçobram. A palavra, soberana nos tempos de nossos avós, passa a ser expressão desprovida de nexo e de força moral. Ditos e desmentidos proliferam. A incivilidade amontoa-se nas penumbras das redes intestinas. O poder invisível - redes criminosas, contrabando, drogas, corrupção - corrói as estruturas dos poder visível. Uma Igreja incentiva fiéis a moverem ações contra jornais e jornalistas, na tentativa de escamotear a trama que faz com a fé. Tartufos se multiplicam. A hipocrisia se instala. A cada esquina, vê-se um Pilatos, ressuscitado, lavando as mãos e esgrimindo a pergunta matreira: "O que é a verdade?"

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