A ONU inaugura depósito subterrâneo no Ártico
para preservar sementes de todo o mundo
Duda Teixeira
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Desde o início da agricultura, os lavradores costumam guardar parte de suas sementes. Se uma colheita for perdida, essa reserva pode ser a diferença entre a sobrevivência e a fome. O que vale para as fazendas também serve para os países. A maioria deles mantém bancos de sementes de seus principais cultivos. O mais importante do Brasil é o Cenargen, em Brasília, com mais de 100.000 tipos de semente. Isso não significa que estejam realmente seguros. Muitos desses depósitos estão em nações sujeitas a desastres naturais ou convulsões políticas. Em 1992, os talibãs destruíram a coleção nacional de sementes do Afeganistão, em Cabul. Variedades milenares de trigo foram perdidas. O banco de sementes iraquiano, localizado em Abu Ghraib, foi arrasado por vândalos em 2003, durante a invasão americana. Amostras de espécies raras de uva, trigo, lentilha, centeio e cevada desapareceram. Acaba de surgir uma solução global para todos esses riscos: será inaugurada nesta terça-feira, numa ilha do arquipélago de Svalbard, na Noruega, a 1.200 quilômetros do Pólo Norte, uma verdadeira arca de Noé dos alimentos. O depósito, construído no interior de uma montanha gelada, terá capacidade de armazenar 4,5 milhões de amostras de sementes e resistir a praticamente todas as catástrofes imagináveis, incluindo a explosão de uma bomba nuclear. O projeto é das Nações Unidas em parceria com o governo da Noruega e financiamento de Bill Gates, fundador da Microsoft e um dos homens mais ricos do mundo.
O lugar está sendo chamado de forma exagerada de "caverna do juízo final". Na verdade, o banco de sementes não terá utilidade apenas se houver uma hecatombe mundial. Há outros usos para as amostras de Svalbard. O mais imediato é servir como um reservatório genético, que poderá ser utilizado por cientistas para experimentar cruzamentos e desenvolver novas variedades de plantas. Uma espécie cultivada no passado mas hoje ignorada pelos agricultores pode conter um gene que a torna resistente a pragas. Nesse caso, a engenharia genética permitiria introduzir tal gene em uma variedade usada na agricultura, aumentando sua resistência a doenças. Também seria possível desenvolver plantas adaptadas a um mundo mais quente e com menos água. "Quanto maior for a variedade de sementes à disposição, maior será a capacidade humana de se adaptar ao aquecimento global, no futuro", disse a VEJA o americano Cary Fowler, diretor do Fundo Global para a Diversidade de Sementes, o nome oficial do projeto.
Fowler, que fica a maior parte do tempo em seu escritório em Roma, controlará a caverna remotamente, por meio de câmeras e sensores de vigilância. Depois que o estoque de sementes estiver colocado em três câmaras a 18 graus negativos, a caverna ficará sem funcionários nem seguranças. De novembro a janeiro, durante a noite polar do Ártico, as portas permanecerão sempre fechadas. Novas remessas serão levadas no verão. Os idealizadores do projeto apostam que, como fica em uma ilha remota, gélida e pouco povoada, o depósito está seguro. A caverna não será o único reservatório para as sementes, já que existem outros bancos espalhados por 75 países. Seu papel é ter uma cópia de segurança de todas as sementes dos demais depósitos. Segundo Fowler, mais da metade deles está em situação de risco devido a guerras, erros humanos e infra-estrutura precária.
Desde que o homem começou a cultivar os alimentos em vez de apenas coletá-los na natureza, as espécies foram modificadas para se tornar mais nutritivas e produtivas. Esse processo, conhecido como domesticação das plantas, teve início 11.000 anos atrás no Oriente Médio e ganhou força com a descoberta de técnicas agrícolas rudimentares. Com lâminas fincadas em pedaços de madeira ou de osso, os homens colhiam grãos com mais agilidade. Cestos ajudavam no transporte e tábuas porosas facilitavam a remoção da casca dos grãos. A agricultura multiplicou entre dez e 100 vezes a produção por hectare, em comparação com as mesmas plantas na natureza. Hoje, caso a humanidade resolvesse abdicar da agricultura e voltasse a viver da caça e da coleta, estima-se que um terço da população ficaria sem comida. Um efeito colateral da opção por espécies cada vez mais produtivas e adequadas à agricultura e, mais recentemente, às exigências do mercado foi a queda na variedade de vegetais que compõem o cardápio da humanidade. Hoje, só o trigo, o arroz e o milho são responsáveis por mais da metade da dieta calórica mundial obtida com o consumo de vegetais.
Das 7.000 espécies de plantas já cultivadas pelo homem em algum momento de sua história, apenas 150 continuam a ser plantadas. Para atender aos padrões de qualidade e garantir colheitas elevadas, as sementes de uma mesma espécie produzidas atualmente também são muito parecidas entre si, o que eleva o poder destrutivo de um novo fungo ou inseto. O banco de sementes de Svalbard será a fortaleza à qual pesquisadores do mundo todo poderão recorrer em caso de emergências como essas. O depósito terá sementes silvestres e também as domesticadas. O Peru já enviou amostras de batata; a Colômbia, de feijão; e o México, de trigo e de milho. Até o momento, as Filipinas foram o país que mais contribuiu, com 70.000 amostras de arroz. O Brasil também deve mandar em breve amostras de espécies conservadas pela Embrapa. Todas as sementes continuarão sendo propriedade dos países que as enviaram. "São amostras muito valiosas, nas quais foi investido muito trabalho por séculos", diz o embaixador Jorio Dauster, do Rio de Janeiro, membro do conselho do Fundo Global para a Diversidade de Sementes. Na fria Svalbard, esse tesouro estará a salvo.
Com reportagem de Alexandre Salvador