Entrevista:O Estado inteligente

sábado, fevereiro 23, 2008

Contratos sob suspeita

22/02/2008 - 23:55 | Edição nº 510
A investigação da Finatec, uma fundação de Brasília usada para driblar licitações, chega a um nome: o empresário Luís Lima, que negociava com governos do PT acordos milionários para sua empresa

wálter nunes, murilo ramos e david friedlander




CERCO
A PM do Distrito Federal vigia o prédio da Finatec para evitar a saída de documentos. Abaixo, cópia da planilha interna da Finatec que mostra o repasse de dinheiro recebido de prefeituras para consultorias privadas

Virou um caso de polícia, mas no começo a Fundação de Empreendimentos Científicos e Tecnológicos (Finatec), ligada à Universidade de Brasília (UnB), tinha objetivos nobres. Ela foi criada em 1992 por 12 professores da UnB para captar recursos para o desenvolvimento da pesquisa científica e tecnológica. Sua inspiração era o bem-sucedido exemplo de instituições tradicionais como a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), que há 40 anos dá apoio à pesquisa científica em São Paulo.

Até 20 dias atrás, desconhecida fora dos meios universitários, a Finatec seguia uma rotina discreta. Ela saltou para as páginas dos jornais depois que uma investigação do Ministério Público do Distrito Federal concluiu que seu dinheiro estava sendo gasto em finalidades nada acadêmicas. Dos cofres da Finatec saíram R$ 389 mil para mobiliar – com artigos como um saca-rolhas de R$ 859 e lixeiras de R$ 1 mil – o apartamento do reitor da UnB, Timothy Mulholland.

Depois que a Justiça decretou intervenção na Finatec, afastando os cinco diretores, e sua sede foi cercada por policiais militares para evitar a retirada às pressas de documentos, mais irregularidades e desvios ocorridos na fundação começaram a ser revelados. Na semana passada, ÉPOCA teve acesso a uma série de documentos da investigação do Ministério Público do Distrito Federal e de uma auditoria em um contrato da Finatec com a Prefeitura de São Paulo, que vigorou entre 2003 e 2004. Nesse período, a Prefeitura era comandada pela atual ministra do Turismo, Marta Suplicy (PT). A principal peça desses documentos é uma planilha de controle da Finatec, com uma relação de contratos firmados pela fundação entre 2001 e 2005. Os principais contratos foram assinados com prefeituras e governos administrados pelo PT.

Da leitura dos papéis emergem aspectos mais mercantis que científicos, até agora inéditos, da Finatec. Eis os principais deles:

A Finatec estaria sendo usada como uma espécie de fachada por empresas de consultoria para fechar contratos com órgãos públicos, sem precisar disputar concorrência. Aproveitava-se uma brecha na legislação, que permite a contratação de fundações ligadas a entidades de ensino sem a necessidade de licitação pública.

No papel, a contratada sem licitação era a Finatec. Na prática, parte do dinheiro ia parar nas empresas de Lima

Essa brecha foi aproveitada pelas empresas Intercorp Consultoria Empresarial e Camarero & Camarero Consultoria Empresarial Ltda., pertencentes ao casal Luís Antônio Lima e Flávia Maria Camarero. Segundo a planilha em poder do MP, dos R$ 50 milhões em contratos com órgãos públicos amealhados pela Finatec entre 2000 e 2005, R$ 22 milhões foram destinados a pagamentos à Intercorp e à Camarero & Camarero.

Segundo testemunhas ouvidas pelo MP e ex-consultores da Finatec entrevistados por ÉPOCA sob a condição de não serem identificados, a ponte com as administrações petistas era feita por Luís Lima, de 42 anos. Gaúcho de Osório, ele foi consultor da administração do PT na Prefeitura de Porto Alegre. Como voluntário, participou da equipe que preparou a transição de governo de Fernando Henrique Cardoso para Lula. Com essas credenciais, segundo o MP, Lima, um sujeito discreto que não gosta de aparições públicas, se aproximava de governos estaduais, prefeituras de capitais e de grandes cidades e firmava contratos milionários.


No papel, a contratada, para prestar assessoria em programas de modernização gerencial, era sempre a Finatec. Mas quem recebia pagamentos na ponta, pelos serviços realizados, era a Intercorp e a Camarero & Camarero. Além da Prefeitura de São Paulo, comandada por Marta Suplicy, fizeram pagamentos à Intercorp e à Camarero & Camarero, por meio da Finatec, as prefeituras de Fortaleza, Vitória, Recife, Nova Iguaçu e Maringá e o governo do Piauí – todos comandados pelo PT.

Apesar dos pagamentos em somas milionárias, há indícios de que pelo menos uma parte desses contratos não foi cumprida na íntegra. Em São Paulo, a gestão de Gilberto Kassab (DEM) anulou um contrato de R$ 12,2 milhões fechado na época de Marta Suplicy. De acordo com a administração de Kassab, o acerto foi cancelado porque houve irregularidades na contratação e nos pagamentos à Finatec. O serviço supostamente produzido pela fundação não foi sequer aproveitado. Agora, a Prefeitura de São Paulo quer entrar na Justiça para reaver o dinheiro.

A Finatec recebeu R$ 357.600 para montar um escritório da Prefeitura de São Paulo em Brasília

A Finatec foi contratada em 2003 para melhorar a gestão da secretaria que coordena o trabalho das 31 subprefeituras do município de São Paulo. Dos R$ 12,2 milhões previstos no acerto, a Prefeitura pagou R$ 9,3 milhões até 2004 – dos quais R$ 4,49 milhões foram parar no caixa do consórcio Intercorp/Camarero & Camarero. José Serra (PSDB) assumiu a Prefeitura no ano seguinte, suspendeu o pagamento dos R$ 2,8 milhões que faltavam e submeteu o trabalho da Finatec a um pente-fino.

Um relatório produzido pelos corregedores da Prefeitura paulistana, ao qual ÉPOCA teve acesso, é demolidor. Ele afirma “que houve negligência dos agentes municipais que atestaram a execução dos serviços”. Pelo contrato, a Finatec seria remunerada por horas trabalhadas. Quando o critério adotado é esse, os manuais de administração pública ensinam que os responsáveis devem avaliar com máxima atenção as prestações de contas. O objetivo é garantir que a empresa contratada não tente cobrar por tarefas não executadas.

De acordo com os corregedores, não houve esse cuidado no contrato da Prefeitura de São Paulo com a Finatec. A fundação não informava quantos consultores usava para cada tarefa, não fornecia seus nomes e também não explicava onde o serviço tinha sido executado. Sem isso, a Prefeitura não tinha como conferir se o número de horas cobrado correspondia ao serviço realmente prestado. Mesmo assim, a Prefeitura liberava sem nenhuma contestação os pagamentos à Finatec.

ACUSAÇÕES
Auditoria da gestão Serra/Kassab na Prefeitura de São Paulo aponta irregularidades no contrato de Marta Suplicy com a Finatec

O relatório da corregedoria menciona também o “uso político-partidário” do produto fornecido pela Finatec. A evidência, dizem os corregedores, é um “plano de ação” elaborado para organizar a comunicação entre os órgãos do governo Marta Suplicy. Segundo os corregedores, o plano de ação da Finatec propunha o seguinte: “Reunir em programa de mala direta os endereços, por regiões, de todos os filiados dos partidos da base do governo e de militantes do movimento social identificados com o governo”. Seria criado também um “boletim periódico (pela internet e pelo correio)”, para abastecer o público aliado com informações e orientações.

Qual é a razão de tudo isso? Segundo os corregedores da Prefeitura, a Finatec afirmava, em seus documentos, que a base de apoio da prefeita Marta Suplicy precisava estar informada “sobre a orientação político-administrativa e a estratégia, os números, dados comparativos, indicadores e as motivações políticas da administração, para que tenha elementos para divulgar e defender o governo”.

Os corregedores afirmam que o serviço da Finatec, além de caro, sem controle e politicamente enviesado, foi malfeito. Com base no depoimento de 23 funcionários das subprefeituras, os corregedores concluíram que o trabalho desenvolvido pela Finatec não foi implementado e não teve nenhum efeito prático. “O trabalho realizado se mostrou irrelevante”, afirma o relatório. “Os serviços prestados pelas subprefeituras e suas atividades são idênticos àqueles realizados antes da assinatura do contrato em exame.”

Numa atividade bizarra para uma fundação de apoio à pesquisa científica, a Finatec também foi contratada em 2003, por R$ 357.600, para montar um escritório de representação da Prefeitura de São Paulo em Brasília. O contrato foi assinado pelo ex-secretário municipal Rui Falcão, hoje deputado estadual pelo PT. Em um relatório de atividades encaminhado à Prefeitura, a Finatec informa que coube ao escritório providenciar a locação de dois veículos para uma visita de Marta Suplicy a Brasília em 14 de outubro de 2003. Nesse dia, ela se reuniu com o presidente Lula e o então chefe da Casa Civil, José Dirceu, entre outros compromissos. Esse escritório foi desativado pela gestão Serra/Kassab.

Procurada por ÉPOCA, Marta Suplicy não quis se manifestar. O vereador paulistano Antônio Donato Madorno (PT), secretário de Subprefeituras por ocasião da contratação da Finatec, diz que o relatório dos corregedores da Prefeitura é um produto político. “Eu nunca fui ouvido por essa corregedoria. Ela foi usada como instrumento de perseguição política pelo José Serra (sucessor de Marta na Prefeitura e atual governador de São Paulo)”, afirma Donato Madorno. “Temos documentos para comprovar que os serviços foram prestados. Eles desenharam as estruturas das subprefeituras, que passaram a incorporar funções de outras secretarias, como Saúde e Educação.”

E a Intercorp, a empresa que segundo o Ministério Público era subcontratada às escondidas pela Finatec? “Desconheço”, diz Donato Madorno. E Luís Lima, o sujeito que o Ministério Público suspeita ser a ponte com as administrações do PT? “O Luís Lima eu conheço”, afirma Donato Madorno. “Ele aparecia como quadro da Finatec. Participava de reuniões. Nada especial.”

Pela descrição de ex-diretores e funcionários da Finatec, feita em depoimentos prestados ao Ministério Público, Luís Lima desempenhava um papel bem mais ativo. Seria ele o responsável por conseguir os contratos da Finatec junto às prefeituras. Ele tinha também um escritório para ele e a mulher em um dos prédios da Finatec, no campus da UnB. “Os valores dos contratos eram superestimados, supostamente para permitir a distribuição de porcentuais para agentes públicos, para Luís Lima e, provavelmente, para alguns dirigentes da Finatec”, afirmou uma testemunha em depoimento ao Ministério Público.

INDÍCIO
O promotor Ricardo Souza investiga a Finatec. Ao lado, cópia de uma nota fiscal que registra um pagamento da fundação à Camarero & Camarero

Como em São Paulo, pipocaram em outros Estados suspeitas acerca dos contratos da Finatec, em que a Intercorp e a Camarero & Camarero aparecem como destinatários dos pagamentos. No Espírito Santo, o Tribunal de Contas do Estado apontou duas irregularidades no contrato com a Prefeitura de Vitória: ausência de projeto básico e disparidade de preços em relação ao volume de horas de serviços prestados. A contratação da Finatec foi finalizada três meses depois da posse do prefeito João Coser (PT), que chegou a remanejar dinheiro do orçamento das secretarias de Saúde e Educação para fazer o acerto. Segundo a assessoria de imprensa da Prefeitura de Vitória, são comuns alterações desse tipo no orçamento no primeiro ano de uma gestão. O contrato rendeu à Finatec R$ 3,5 milhões, dos quais R$ 1,4 milhão foram pagos à Intercorp.

No Piauí, a passagem da Finatec também levantou suspeitas. Assim que tomou posse, em 2003, o governador Wellington Dias (PT) contratou a fundação para a elaboração de um projeto de reforma administrativa e para a elaboração de um plano de cargos e salários do funcionalismo público. Em um único dia, 3 de abril de 2003, o governo declarou a dispensa de licitação para contratar a Finatec, aceitou o plano de trabalho, assinou o contrato e juntou os comprovantes de publicação no Diário Oficial. A rapidez, incomum no serviço público, levou o Tribunal de Contas do Estado (TCE) a abrir dez processos para investigar a contratação. A secretária de Administração do Piauí, Regina Sousa, nega as acusações. “O TCE acatou a defesa apresentada pelo governo, e as contas foram aprovadas”, afirma a secretária.

De acordo com o Ministério Público, a contabilidade da Finatec é um problema antigo. Desde 1999, as contas da fundação não são aprovadas. Em junho de 2007, depois de duas renúncias consecutivas em diretorias da entidade, os promotores resolveram investigar o que estava ocorrendo lá dentro. Primeiro, constataram a atuação em áreas sem qualquer relação com pesquisas científicas. “Encontramos planos até para a construção de um shopping center. Isso é esdrúxulo”, afirma o promotor público Ricardo Souza, responsável pela investigação. No curso da apuração, Souza deparou com contratos firmados com prefeituras e a planilha em que aparecem os registros dos valores repassados às empresas de Luís Lima. O promotor Ricardo Souza afirma que a Finatec não poderia ter subcontratado as empresas de Lima. “Causou-me espanto. Há uma recomendação expressa para que as fundações não façam subcontratações”, diz Souza. “Por que essas empresas foram escolhidas para gerir contratos milionários? Houve um claro direcionamento.”

Em um único dia de 2003, o governo do Piauí dispensou licitação, aprovou o plano da Finatec e firmou contrato

Segundo o advogado da Finatec, Francisco Queiroz Caputo Neto, a subcontratação não é irregular nem onera os cofres. A Finatec, por meio de sua assessoria de imprensa, afirma ter feito parcerias com a Intercorp porque era Lima quem tinha um programa de reforma administrativa para atender às prefeituras. Procurado por ÉPOCA, Luís Lima disse que seu acordo com a Finatec tem cláusulas de confidencialidade que os impedem de dar entrevistas.

Todas essas explicações não respondem a algumas dúvidas: se a Finatec não tinha o conhecimento necessário para assessorar as prefeituras, por que foi contratada por elas? Se a tecnologia pertencia a Luís Lima, por que ele e suas empresas não se submeteram ao processo de concorrência pública? Quando a lei abriu a possibilidade de dispensa de licitação na contratação de fundações ligadas a universidades, o objetivo era ajudá-las a captar mais recursos públicos para pesquisas científicas. No caso da Finatec, a ciência por trás dos contratos com as prefeituras ainda está longe de ser bem explicada.



Fotos: Rafael Hupsel/Folha Imagem, Joedson Alves/AE, Kid Júnior/Diário do Nordeste, Guga Matos/JC Imagem,
Edson Chagas/Jornal A Gazeta/AE, Gustavo Miranda/Ag. O Globo e Leonardo Wen/Folha Imagem Anderson Schneider/ÉPOCA


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