Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, fevereiro 07, 2008

Matilde, fale-nos sobre o Quênia- Demétrio Magnoli


artigo
O Estado de S. Paulo
7/2/2008

Nossos racialistas decidiram que não existem brasileiros, mas apenas comunidades expatriadas que coabitam este vasto país. Primeiro, decidiram que somos "brancos" ou "negros". Depois, renomearam os "negros" como "afrodescendentes", o que supõe que os demais sejam "eurodescendentes" ou, como preferem alguns deles, "italodescendentes", "hispanodescendentes", "germanodescendentes", etc. A Universidade de Brasília, núcleo da política de raças, chegou a criar um Centro de Convivência Negra, algo que sugere uma segregação racial do espaço do campus. Eles se exibem, cheios de medalhas acadêmicas, como especialistas em etnias. E exibem a África como um berço único, uma comunidade ancestral, a pátria de uma raça. Pergunto-me por que não falam sobre o Quênia.

Os racialistas daqui conhecem os de lá. Juntos, participam de redes internacionais de ONGs, patrocinadas pelas mesmas organizações e fundações filantrópicas, que promovem incontáveis seminários sobre diversidade, etnia e raça. Eles estiveram todos no Fórum Social Mundial de Nairóbi, no Quênia, há um ano. Duvido que os racialistas daqui não saibam que os de lá não acreditam na existência de "afrodescendentes", pois reconhecem que não há algo como uma "cultura africana". Mas os racialistas de lá, como os daqui, repelem os conceitos de nação e cidadania, dedicando-se, noite e dia, a traçar linhas divisórias entre etnias e a advogar políticas de ação afirmativa baseadas em classificações étnicas.

África, de fato, não existe senão como denominação geográfica. Figuras como uma "cultura africana" ou "africanidade" são artefatos ideológicos: a única característica geral da África é a diversidade. Mas essa diversidade se expressa em múltiplos níveis, do pequeno clã a grandes nações. Ela está em fluxo permanente e não pode ser congelada nas categorias étnicas elaboradas pelos colonizadores, que também são artefatos ideológicos.

Nos tempos coloniais, sob os britânicos, o censo do Quênia adotou o procedimento de classificar os habitantes do país segundo critérios fabricados pela antropologia européia. Depois da independência, a etnia infiltrou-se no jogo político, convertendo-se em fonte de chantagens sem fim das elites tribais em busca de cargos governamentais e sinecuras públicas. Em 1999, quando o regime de Daniel Arap Moi se afundava numa crise terminal, o censo aboliu as classificações étnicas. O Minority Rights Group, ONG britânica financiada, entre outros, pela Fundação Ford, faz campanha ativa no Quênia pela classificação censitária das etnias - e oferece como subsídio o seu próprio quadro étnico do país, que é uma reconstrução atualizada da "etnografia científica" dos colonizadores.

Sob Jomo Kenyatta e Arap Moi, o Quênia conheceu quatro décadas de governos autoritários que exploraram episodicamente, em seu próprio proveito, a carta das divisões étnicas. Em 1992, Arap Moi incendiou as paixões étnicas no Vale do Rift, a mais diversificada província do país, jogando os nativos kalenjins contra os "forasteiros", especialmente os kikuyus. O advento da democracia, em 2002, trouxe um governo amparado numa coalizão partidária interétnica e a promessa de um país para todos os seus cidadãos.

A carta étnica desapareceu momentaneamente da cena institucional, mas ressurgiu pelas mãos das ONGs internacionais. Os kikuyus, que habitam predominantemente as terras férteis da Província Central, formam a etnia mais numerosa e representam cerca de 22% da população queniana. Os racialistas de lá, manipulando inescrupulosamente estatísticas fiscais e de renda, acusam os kikuyus de se apropriarem da maior parcela dos recursos nacionais. Esse argumento, reproduzido à exaustão na mídia queniana, tornou-se um pretexto político eficiente quando a coalizão de governo, devastada pela corrupção e pelas rivalidades entre seus líderes, implodiu em duas facções inconciliáveis.

O presidente Mwai Kibaki é kikuyu. Seu rival, Raila Odinga, é luo. Eles não se lembravam disso quando eram aliados. Em 2006, o senador Barack Obama, que rejeita os conceitos de raça e etnia, visitou o Quênia, terra natal de seu pai. "Vocês começam a ver o ressurgimento das identidades étnicas como base para a política", alertou, conclamando as pessoas a votarem em programas, não em etnias. Mas, então, Kibaki e Odinga já haviam redescoberto suas ancestralidades e identidades étnicas. De 27 de dezembro para cá, cerca de mil quenianos foram assassinados e 250 mil se tornaram refugiados internos.

Os manuais de História dizem que as potências européia dividiram a África, a partir da Conferência de Berlim de 1885. Essa é uma idéia curiosa, pois nos tempos pré-coloniais existiam mais de 10 mil entidades políticas na África. Os europeus, efetivamente, provocaram uma brutal unificação da África, comprimindo esses milhares de entidades em poucas dezenas de Estados. Mas o colonialismo durou menos de um século, tempo insuficiente para exterminar a diversidade prévia, que se reinventa incessantemente no interior dos Estados africanos independentes. Essa diversidade é a fonte na qual se saciam os promotores das políticas étnicas.

Uma coisa é reconhecer as diferenças de língua, cultura, crenças e religiões, exigindo que sejam respeitadas, e outra muito distinta é fixá-las na lei e convertê-las em categorias políticas. A primeira atitude decorre do princípio dos direitos humanos. A segunda corresponde a uma operação de poder. As ONGs racialistas fabricam as armas políticas que são usadas nas "guerras étnicas".

Não é verdade que os quenianos se estejam matando como selvagens. A verdade é que milícias controladas pelos líderes políticos estão matando selvagemente os quenianos. Não fale sobre cartões de crédito, ex-ministra Matilde Ribeiro. Fale-nos sobre o Quênia.

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