O Globo |
27/2/2008 |
Uma capacidade inegável do político Luiz Inácio Lula da Silva, certamente adquirida nos tempos de líder sindical, é equilibrar-se nas palavras mais do que nos fatos. E sua trajetória na vida pública mostra que a estratégia tem dado certo. É assim que ele trata como "um probleminha" a crise do gás com a Bolívia, ou como "um tumorzinho" o desmatamento da Amazônia, sem considerá-lo o câncer que realmente é. Quando lhe convém, por outro lado, engrandece os feitos de seu governo, mesmo à custa da realidade. Foi o que fez ao comemorar na ONU a redução do desmatamento, quando já tinha informações de que ele havia crescido novamente. É o que acontece com a propalada extinção de nossa dívida externa, "um novo grito de independência", segundo Lula. Entusiasmado com o próprio feito, o presidente Lula chegou a dizer que agora já é hora de o país voltar a se endividar para fazer investimentos na infra-estrutura. À primeira vista, a frase não faz sentido, mas ela reflete menos uma irresponsabilidade retórica de Lula e mais uma esperteza política, como veremos. Definir o que é "zerar a dívida externa brasileira" não é tarefa fácil. Ao final de 2007, as reservas brasileiras estavam em US$180,3 bilhões, e já em janeiro o governo tinha um saldo de quase US$7 bilhões, somando-se todos os ativos financeiros em moeda estrangeira. Há, porém, quem prefira definir o nível de exposição do país incluindo o total de investimento de terceiros feito aqui, tanto capital de risco quanto capital de empréstimo. Por esse critério, existiriam cerca de US$45 bilhões de investimentos de multinacionais que geram remessas de lucros para o exterior. Essa conta passou a ser considerada como investimento de multinacionais, e não empréstimos, o que reduziu a dívida externa total. O governo Lula não tem nada a ver com essa mudança de critério, e muito economista bom acha que o critério antigo não faz sentido. Mas o debate mostra que a zeragem da dívida externa não é uma definição pacífica. Por outro lado, não há lógica no anúncio de que o país pode voltar a se endividar, pois a dívida interna líquida do governo está altíssima, era 37% no final do governo Fernando Henrique (que a pegou em torno de 20%, por sinal) e chegou a 51% do PIB pelo critério antigo de medição do IBGE. Pelo critério novo, deve estar na casa dos 43% do PIB, muito longe do nível considerado aceitável tecnicamente, que é de 30% do PIB. Portanto, o governo não tem condições de se endividar. O que leva o presidente Lula a fazer afirmação tão extemporânea? Tudo indica que ele já tenha sido avisado por sua equipe econômica de que a situação de credor é temporária, e muito provavelmente voltaremos a recorrer a dinheiro do exterior para os investimentos necessários ao crescimento econômico. Como não temos poupança interna que permita investimento com recursos próprios, basicamente devido ao modelo muito caro de previdência social que escolhemos, a tendência é as empresas privadas se endividarem, e também recorrermos a empresas estrangeiras para realizar os investimentos necessários. Não é por acaso que já estamos com déficit de conta corrente, pois o dólar barato está incentivando as importações de máquinas e equipamentos, o que é um bom sinal, mas traz consigo o endividamento. O governo, pois, deveria voltar suas energias para reduzir a dívida interna, cujo crescimento muitos críticos, como o ex-presidente do Banco Central Affonso Celso Pastore, atribuem a uma política equivocada de troca da dívida externa por dívida interna, mais cara. Reduzir a dívida atrelada ao dólar e trocá-la por dívida em real é correto teoricamente, mas na prática mostrou-se uma decisão cara, pois a Selic continua muito alta, e o dólar desvalorizou-se. Há quem avalie em 5% do PIB o custo dessa decisão. O pagamento antecipado da dívida ao FMI e do Clube de Paris, que ajudou na extinção virtual de nossa dívida externa, entra no mesmo plano de trocar dívida barata por cara, embora fosse um movimento considerado correto pela maioria dos economistas. Apresentado como uma libertação do jugo internacional, o pagamento não passaria de uma política simbólica. Não só porque essa dívida é o dinheiro mais barato que um país pode obter, como porque as normas do FMI continuam regendo nossa economia. A mesma ilusão o governo passou ao anunciar a auto-suficiência do petróleo em abril de 2006, Lula imitando Getúlio Vargas com as mãos sujas de petróleo. A Petrobras diz que a marca foi atingida em outubro, mas a meta de obter média anual acima do consumo só viria em fevereiro do ano seguinte. Passados quase dois anos, o país já produz, de fato, um excedente de barris. Mas parte dessa produção é de óleo pesado, que não pode ser usado em nossas refinarias. A auto-suficiência, portanto, não significa que o país já se baste com seu petróleo, muito menos que lucre com ele. Devido à diferença de cotações entre o petróleo pesado que o Brasil vende, mais barato, e o leve, que importa e é mais nobre, o saldo da balança comercial de petróleo segue negativo. Segundo os especialistas, somente entre 2010 e 2015, quando os novos campos de óleo leve como o de Tupi entrarem em produção, o país conseguirá zerar, de fato, as perdas. O próximo presidente poderá dizer que na sua gestão o Brasil tornou-se um país exportador de petróleo, um sócio potencial da OPEP. Mas os méritos não serão apenas dele, como a descoberta de Tupi não foi um mérito apenas do governo Lula. Todos os avanços obtidos são louváveis, e devem-se a um processo econômico em curso há muitos governos, que o presidente Lula teve a sabedoria de não interromper, como ameaçou durante toda a sua vida política de bravatas oposicionistas. |
Entrevista:O Estado inteligente
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