O Estado de S. Paulo |
26/2/2008 |
Em mensagem ao povo cubano, Fidel Castro anunciou seu afastamento definitivo, por questão de saúde, da presidência do Conselho de Estado e do posto de comandante-em-chefe das Forças Armadas. Revolucionário, herói, governante autoritário, líder mundial, orador do tipo maratona, lutador infatigável contra os EUA e, no final da vida, humanizado, frágil e vencido pela doença, conferiu a seu país uma relevância e uma visibilidade que o tamanho territorial e a importância econômica nunca poderiam justificar. Fidel Castro talvez tenha sido o último dos caudilhos e dos líderes carismáticos da América Latina. O que seu afastamento representa é o fim de uma era, na verdade, já acabada. Há tempos, o líder cubano não era mais do que um remanescente de um momento histórico que terminou com a guerra fria. A frase de Borges, segundo a qual a imagem que se deixa de si mesmo na memória dos outros é a obra mais importante de um homem, serve bem ao comandante da ilha. Não importa o ângulo político ou ideológico a partir do qual se possa analisar o legado de Fidel, personagem complexa que permanecerá na História como uma figura marcante que influenciou mais de uma geração de jovens idealistas que viram na revolução liderada por ele a esperança de um mundo com mais justiça social. Considerado o pai da Pátria, o fundador da Cuba atual, deixa a seus sucessores um país pobre e enfraquecido, que sobreviveu com o apoio da ex-URSS até a queda do Muro de Berlim. Com a implosão do regime comunista em Moscou, Fidel não teve outro recurso senão permitir uma gradual e controlada abertura da economia para receber investimentos externos e manter a economia funcionando. Mais recentemente, respirou aliviado com o respaldo dos petrodólares de Hugo Chávez. A população, cuja renda per capita está ao redor de US$ 4 mil, pode beneficiar-se de ensino e saúde precários, porém gratuitos. Nos últimos quase 50 anos, imprimiu seu toque pessoal às decisões políticas, econômicas e sociais em Cuba e deixou sua marca registrada em alguns acontecimentos internacionais de grande significado, como a invasão de Cuba estimulada pelo governo norte-americano e a crise dos mísseis que pôs o mundo à beira de um conflito nuclear. Várias gerações de cubanos não têm idéia de como será Cuba sem Castro. Os mais velhos viveram de esperança e os mais jovens, sem ela, cultivam, em grandes números, o projeto de deixá-la. Com o afastamento de Fidel, o governo revolucionário instalado em Cuba começará a sofrer um movimento de transformação. Esse processo já começara com a transferência de poder, de acordo com as normas constitucionais cubanas, a Raúl Castro, agora eleito pela Assembléia Nacional para os postos de governo ocupados por Fidel. Fidel nunca foi um ideólogo, mas um homem de ação. Não deixa, portanto, um legado doutrinário. Muito de sua áurea heróica, Fidel deve aos EUA. Sobreviveu, literalmente falando, a dez presidentes norte-americanos. A hostilidade e o enfrentamento político, militar, econômico e diplomático contínuos com Washington e com a comunidade cubana de Miami só o ajudaram a se manter no poder. A ameaça externa - tornada concreta pela ação da CIA na Baía dos Porcos e em tentativas de assassinato, ao lado do bloqueio econômico e comercial - foi muito bem utilizada pelo nacional-patriotismo mobilizador interno que Fidel encarnou. O mito de Fidel começou a esmaecer ainda em vida. Os últimos 15 anos de dificuldades econômicas internas deixaram num já longínquo passado as tentativas de exportar a revolução, de criar focos de insurreição na América Latina, de apoiar movimentos revolucionários na África e de ser um peão no tabuleiro da guerra fria ao lado da URSS. Ao se retirar, sem desaparecer do proscênio político, visto que organizou sua sucessão e é dela o fiador, Fidel só permanece relevante para a política externa dos EUA não por méritos próprios, mas porque as relações com Cuba são item importante da política interna norte-americana. De certa forma, a trajetória de Fidel se assemelha muito à de Mao Tsé-tung. Fidel, assim como Mao, soube captar o imaginário da juventude nos anos 60 prenhe de fantasias de mudar o mundo. O regime político e o sistema econômico sobreviverão, como acontece na China, com nova cara e dinâmica. A revolução não será julgada no afastamento nem no eventual desaparecimento de seu líder máximo. Gradualmente começará a ser feita uma revisão histórica de sua vida sem maior conseqüência sobre os rumos do país em mãos inicialmente de Raúl Castro e, depois, seguramente, de uma geração mais jovem que promoverá maiores ajustes econômicos, políticos e sociais, impensáveis na vida de Fidel. Tudo, porém, sob o controle do Partido Comunista e das Forças Armadas, como estabelecido por Castro em Cuba e por Mao na China. Sem a mística de Fidel, Cuba voltará a ser aquela minúscula nação do Caribe, cuja importância está na razão direta de sua proximidade com os EUA e da influência da comunidade cubana de Miami na política interna dos EUA. Quem mais vai sentir o desaparecimento político ativo de Fidel serão os acadêmicos e diplomatas que, por 50 anos, garantiram seus empregos analisando, criticando, elogiando e mobilizando recursos a favor ou contra o líder cubano. Dificilmente alguém poderá substituir Fidel Castro como líder carismático e ideológico na América Latina. As circunstâncias históricas, as realidades e as demandas atuais são completamente diferentes. Hugo Chávez, com sua revolução bolivariana no século 21, montado em petrodólares, está procurando se apresentar como o sucessor de Fidel. Sem sucesso, pois, como diria um dos heróis de Fidel, Karl Marx, a História só se repete como farsa. |
Entrevista:O Estado inteligente
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