Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, julho 31, 2013

Rosa dos ventos - DORA KRAMER


O Estado de S.Paulo - 31/07

Depois de um primeiro momento de agitação com tendência à infidelidade provocada pela queda geral da avaliação de governantes - notadamente da que habita o Planalto -, partidos, políticos e até empresários adotam a velha combinação de prudência e caldo de galinha, receita que não faz mal a ninguém.

A palavra de ordem é conter o ímpeto da crítica e da debandada até sentir para onde sopram os ventos das manifestações, da popularidade da presidente Dilma Rousseff, da capacidade de seus prováveis oponentes em 2014 arrebatarem ao menos em parte o patrimônio perdido pelo PT e até da probabilidade de Lula se candidatar.

Diante das dúvidas (a maior delas diz respeito à recuperação de Dilma) e da incerteza sobre qual o caminho mais acertado a tomar anda valendo o velho lema: quando não se sabe o que fazer, melhor não fazer nada.

Prova é o recuo do PT no tom do documento discutido pelo diretório nacional do partido dias atrás. Inicialmente continha críticas à política econômica e pedia revisão das alianças com "os conservadores" para fazer a rota de retorno à esquerda. Tudo isso foi tirado para, de um lado, preservar Dilma e, de outro, não queimar caravelas com os aliados antes do tempo.

Compasso de espera é a expressão que define o momento. A questão é: até quando? Não se sabe ao certo mas no início de outubro, quando acaba o prazo para filiações partidárias dos candidatos em 2014, o quadro estará mais definido. Não porque quaisquer dos pretendentes a presidente - à possível exceção de José Serra - estejam pensando em mudar de partido, mas porque a partir daí seus aliados já não poderão abandonar os barcos sem abrir dissidência explícita nem se submeter aos riscos daí decorrentes.

Uma mudança, entretanto, parece consolidada: antes das manifestações os partidos aliados do governo não viam opção fora da reeleição de Dilma. Hoje ainda não conseguem dizer qual seria a alternativa, mas sabem que ela não é a única.

Volta por baixo. De mola que leva ao alto, Sérgio Cabral Filho virou âncora que prende ao fundo, com seus minguados 12% de avaliação positiva à frente do governo do Rio. De onde sua companhia tornou-se um embaraço federal para seus parceiros na política.

Resultado da conjugação de abuso de poder na prática de hábitos faustosos, provincianismo político (demonstrado na excessiva confiança na influência de Lula sobre o Congresso quando da discussão sobre a distribuição dos royalties do petróleo) e arrogância tardiamente assumida com a promessa de ser "mais humilde".

Cabral, reeleito em 2010 no primeiro turno com votação espetacular, confundiu apoio popular com salvo-conduto para transgredir todas as regras. Sejam as de civilidade no convívio com os governados, sejam as balizas legais que exigem do governante respeito à transparência, à impessoalidade e à probidade.

O governador achou que ninguém iria se incomodar com o fato de destratar professores, médicos e bombeiros chamados de vândalos e bandidos no exercício de movimentos reivindicatórios; de passar boa parte do tempo viajando ao exterior, incluindo aí ocasiões em que o Rio foi atingido por tragédias às quais não dava a devida importância evitando aparecer em público em momentos adversos. Cabral considerou que, ao abandonar entrevistas no meio porque não gostava das perguntas, afrontava a imprensa - quando o gesto significava interdição do diálogo com a sociedade.

Acreditou-se inimputável. Não teve noção de limite. Agora se diz arrependido por influência das palavras do papa. Ao que alguns chamam de senso de oportunidade outros dão o nome de oportunismo. Para não falar no egoísmo de pedir aos manifestantes que se retirem da porta de sua casa porque tem "filhos pequenos", sem se importar com os filhos dos vizinhos.

Jogo bruto - MERVAL PEREIRA


O GLOBO - 31/07
O Congresso volta aos trabalhos nos primeiros dias de agosto com projeto bem definido: derrubar alguns vetos da presidente Dilma. Liderada pelo deputado Eduardo Cunha e com o apoio do presidente da Câmara, Henrique Alves, a bancada do PMDB pretende continuar seu trabalho de boicote ao Palácio do Planalto até que essa queda de braço defina com clareza quem é quem na aliança governista.

O PT deu o primeiro recuo, retirando do texto oficial de sua convenção as referências à necessidade de rever as alianças com partidos conservadores. A afirmativa tinha endereço certo, o PMDB. Mas a disputa na Câmara não engloba apenas o PMDB. Também alas do PT descontentes com a atuação do governo, especialmente na área econômica, insuflam a rebeldia na base aliada, em busca de um clima político que favoreça a volta de Lula.

Mesmo que seja improvável essa hipótese, trabalhar para que aconteça desgasta a presidente Dilma e aumenta a margem de pressão dos próprios petistas. Embora tenha formalmente uma aliança que abarca cerca de 70% do Congresso, o apoio ao Palácio do Planalto nas votações tem caído desde o início do governo, chegando a seu ponto mais baixo este ano, com apenas cerca de 45% de aprovação nas votações, o mesmo índice, aliás, da bancada do PMDB, o que indica que é ele quem está dando o ritmo de atuação na aliança governista. Não por acaso, o líder do PMDB é o deputado Eduardo Cunha.

A antecipação do processo eleitoral trouxe para a discussão a questão econômica, sobretudo a inflação. À medida que se coloca o debate da inflação no centro da discussão política, da disputa eleitoral, ela se realimenta com a expectativa.

Além disso, a candidata não pode tomar medidas que a presidente precisa tomar no combate à inflação. A presidente passou a ser tratada como candidata e seu julgamento é nessa condição. O calendário eleitoral antecipado é uma abstração que neurotiza a política. Os políticos vivem um calendário que não é real.

O diálogo com os partidos da base é difícil porque a função do presidente da República é essencialmente política, e a existência do ministério de Relações Institucionais não pode substituir a relação direta do presidente com os políticos. Fernando Henrique e Lula traziam para eles a condução política. Depois da crise do mensalão, Lula viu que teria que tratar diretamente com os políticos.

Os políticos que faziam essa interlocução eram mais operacionais, ficavam com a barriga no balcão, como se diz na gíria política, mas quem decidia tudo eram os donos da loja, os presidentes. Hoje, não. Quem está com a barriga no balcão não tem experiência da militância política, e a presidente, como dona da loja, não tem prazer no exercício da política.

Quando entra na pauta a eleição, os deputados começam a pensar com antecedência nas bocas de urnas, nos trabalhos dos cabos eleitorais, que também começam a fazer exigências mais cedo. Só que estamos a um ano do outubro da eleição.

Quem não segue o Papa Francisco e não faz política com P maiúsculo, aproveita-se dessas ocasiões, mesmo que o resultado a médio prazo seja o enfraquecimento do próprio partido. Quem trabalha como saqueador quer é confusão, analisam os especialistas nas ações do baixo clero, utilizando-se da imagem dos vândalos em ação nas recentes manifestações populares.

A diferença entre a luta interna do PT e a atuação institucional do PMDB é exemplar da ação política nesses tempos de presidencialismo de coalizão. Setores do PT acusam o PMDB de estar tornando o governo seu refém e pressionam a presidente Dilma para romper a aliança "conservadora".

Ao mesmo tempo, o PMDB parece muito mais preocupado em preservar o governo Dilma do que o PT, pois agindo assim preserva sua própria presença no comando do país e os espaços políticos que ocupa. Ao contrário, o que acontece no PT é uma briga bruta pelo domínio político da máquina partidária, no momento em que os expoentes de uma geração partidária podem acabar na cadeia.

E quanto mais espaço o PMDB ocupar, menos espaço sobra para os grupos que atuam dentro do PT.

Os país das multidões - ELIO GASPARI


O GLOBO - 31/07

Os brasileiros mostraram que acreditam em muita coisa, menos em governos que querem fazê-los de bobos



Em apenas dois meses, pode-se estimar que pelo menos cinco milhões de brasileiros tenham ido às ruas. A maior parte deles, festejando a fé com o Papa Francisco. Outros, reclamando nas passeatas que tomaram as avenidas em quase todos os estados.

Exatamente nestes dois meses, os poderosos do país mostraram que não estão entendendo nada, ou não querem entender.

Aconteceram, ou tornaram-se públicas, as seguintes gracinhas, todas amparadas pela lei. Mesmo nos casos em que o ronco da rua provocou recuos, eles foram apresentados como atos voluntários. Esse é um Brasil que faz tudo de acordo com as normas, suas normas.

Começando pelos tribunais, que vivem um doce momento, embalados pelo julgamento do mensalão: o Tribunal de Contas da União decidiu que 4.900 magistrados têm direito a receber auxílios-alimentação reatroativos a 2011. Um conta de R$ 312 milhões. Um de seus ministros, Raimundo Carneiro, mostrou ao país que sua idade, como a Terra de Galileu, eppur si muove. Para se aposentar como servidor do Senado, nasceu em 1946. Para permanecer no Tribunal, veio ao mundo em 1948. Exercitando um direito de todos os procuradores, o atual presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, recebeu R$ 580 mil referentes a bônus-moradia e licenças não gozadas. Comprou um apartamento em Miami, avaliado em US$ 480 mil, "modesto", nas suas palavras, e considera "violação brutal da minha privacidade" a divulgação dessa informação. O ministro tem um apartamento funcional em Brasília, mas, justificando suas viagens ao Rio de Janeiro, informou que faz isso "regularmente há mais de dez anos", como outros magistrados. Com a Viúva pagando.

Passando-se ao Executivo, o custo da maquiagem da doutora Dilma em suas aparições em cadeia nacional de TV passou de R$ 400 para R$ 3.181em menos de três anos.

Alguns de seus ministros rompem o teto salarial do serviço público (R$ 28.059) com as Bolsas Conselho. Guido Mantega, por exemplo, fatura R$ 43.202 mensais. Tudo dentro da lei.

No Congresso, os doutores Henrique Alves e Renan Calheiros voaram pela JetFAB. Um foi para o Rio e o outro para um casamento. Diante do ronco, indenizaram a Viúva.

Saindo-se do Brasil do andar de cima, no de baixo chega-se à escola Candido de Assis Queiroga. Ela fica no município de Paulista, no sertão paraibano, onde vivem 11 mil pessoas. Seu Índice de Desenvolvimento Humano no indicador de educação (0,461) está abaixo da média nacional (0,637). Lá, Jonilda Alves Ferreira, de 44 anos, formada em economia, leciona Matemática por R$ 1.500 mensais. Ela ensina frações fazendo "vaquinhas" e levando alunos a pizzarias. Qualquer pessoa que vê uma pizza entende o que são frações ordinárias, mas quem provar que se pode nascer em 1946 (para ganhar aposentadoria) e em 1948 (para continuar num cargo) certamente revolucionará as ciências.

A escola da professora Jonilda conseguiu cinco medalhas de ouro, duas de prata e três de bronze na última Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas. Sozinha, acumulou mais prêmios que muitos estados.

A repórter Sabine Righetti perguntou à professora se a escola tem laboratório de informática. Tem, pago, porém parado: "Estamos esperando o técnico para usar os computadores."

Verdades da boa-fé contra patranhas do marketing - JOSÉ NÊUMANNE


Em nome da fé já se fez muito bem. Mas também muito mal. Do ponto de vista religioso, a mesma Igreja Católica em que militou o inquisidor Torquemada deu os dois Franciscos - o santo de Assis e o bispo de Roma. A política (do grego, pertinente aos cidadãos) republicana (do latim, referente à coisa pública) foi o ofício do assassino serial Adolf Hitler e do democrata (do grego, governo do povo) Winston Churchill. Então, não é a crença que massacra o homem, mas a natureza humana que usa a convicção para destruir. O fundamentalismo terrorista dos asseclas de Bin Laden é mais próximo dos autos de fé da Inquisição cristã que da tolerância dos Estados islâmicos medievais.

A visita do papa ao Brasil confirmou tais evidências em gestos e nas suas pregações ao longo da semana passada. Nela ele conviveu com a ineficiência do Estado, manifestada pelo rosário de lambanças iniciado com o erro dos batedores em sua chegada e encerrada com a interdição do Campo da Fé, em Guaratiba. E também com o afeto emocionado do brasileiro comum, que o recebeu, abraçou e beijou. Ao desembarcar do avião, forçado a fazer hora voando antes de pousar porque a presidente Dilma se atrasou, ele foi conduzido por batedores direto para o congestionamento de um estacionamento de ônibus de peregrinos em plena Avenida Presidente Vargas. Do contato com o Brasil real saiu sem um arranhão e coberto de beijos, prova de que só o amor protege. Dali o levaram para encontrar a zelite do Brasil oficial no Palácio Guanabara - um erro dos hierarcas católicos, similar ao dos responsáveis por sua escolta.

Os encarregados da programação submeteram o papa a um discurso quase tão grosseiro quanto enfadonho. Nele Dilma se limitou a fazer mais um relato complacente e pouco fiel de falsos avanços de sua gestão. E deu-se ao desplante de reduzir a História do Brasil aos últimos dez anos, sob o PT de Lula e dela. Ou seja, negou o legado de luminares do povo brasileiro que viveram antes da posse do padrinho e protetor dela: José Bonifácio de Andrada e Silva, Machado de Assis, Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Luiz Gonzaga, Tom Jobim e tantos outros. Além disso, ela recitou patranhas de marketing, tratando o visitante como um papagaio de pirata de seu palanque para a reeleição. Nem ela própria parecia crer nelas, tal foi a falta de convicção com que as enunciou.

Naquela ocasião o hóspede, polido como a anfitriã não foi, respondeu com as gentilezas de praxe de um pároco agradecendo a água que lhe servia uma devota paroquiana. Mas, ao longo de suas práticas, foi respondendo com recados certeiros a uma a uma dessas grosserias da recepção e das deselegantes anedotas sem graça sobre sua origem portenha contadas pelo prefeito do Rio, Eduardo Paes. No Hospital São Francisco de Assis o papa detonou o discurso politicamente correto de quem considera o consumo de drogas apenas uma doença e seu comércio, mera consequência de mazelas sociais. Chamou os traficantes de "mercadores da morte" e disse que só se combate o tráfico entre os jovens praticando a justiça e educando sempre.

No mais relevante pronunciamento social de seu pontificado, proferido na favela de Varginha, ele disparou dois torpedos diretamente na maior negação à natureza democrática nas Repúblicas de hoje: o marketing político. No primeiro atacou o conceito de pacificação das comunidades com a ocupação de suas ruas por policiais armados. "Nenhum esforço de pacificação será duradouro, não haverá harmonia e felicidade para uma sociedade que ignora, que deixa à margem, que abandona na periferia parte de si mesma. Uma sociedade assim simplesmente empobrece a si mesma, perde algo de essencial para si mesma", pontificou. Essa sentença profética atingiu no cerne a propaganda oficial do desastrado governador Sérgio Cabral.

O outro torpedo atingiu a empáfia petista no peito. "Somente quando se é capaz de compartilhar é que se enriquece de verdade. Tudo aquilo que se compartilha se multiplica. A medida da grandeza de uma sociedade é dada pelo modo como esta trata os mais necessitados, que não têm outra coisa senão a sua pobreza", pregou. O nobre conceito igualitário, transmitido às vítimas preferenciais dessa ilusão, silencia a fanfarra federal que celebra a inclusão deste país entre as maiores economias mundiais.

Ao falar para a sociedade e políticos, no Teatro Municipal, Francisco sintetizou sua pregação na Jornada Mundial da Juventude no Rio: "O futuro exige a tarefa de reabilitar a política". A frase do pregador resume a tarefa de todos os cidadãos, pertençam ou não a quaisquer partidos políticos, professem ou não algum credo religioso. Da mesma forma corajosa como apregoa a refundação de sua "Igreja de Cristo", Francisco transferiu aos peregrinos a tarefa de lutar para tentar restaurar o sentido da origem etimológica da palavra, que no mundo inteiro, e no Brasil em particular, passou a significar exatamente o oposto do princípio que a fundou.

Essa restauração do poder da cidadania, segundo o papa, implica condições que ele fez questão de lembrar. Uma delas é a responsabilidade cívica da boa-fé pública: "O sentido ético aparece nos nossos dias como desafio histórico sem precedentes". Outra, a tolerância em tudo e, particularmente, na profissão de fé: "Favorável à pacífica convivência entre religiões diversas é a laicidade do Estado". A economia com visão humanista é mais um item: "O futuro exige visão humanista da economia, evitando elitismos e erradicando a pobreza". E isso só pode ser feito com o respeito a ideias e posturas alheias: "Entre a indiferença egoísta e o protesto violento, há uma opção sempre possível - o diálogo".

Francisco prometeu voltar em 2017. Deus queira que até lá as sementes luminosas que semeou tenham germinado aqui.

Verdades da boa-fé contra patranhas do marketing - JOSÉ NÊUMANNE


O meio do caminho - MIRIAM LEITÃO

quarta-feira, julho 31, 2013


O GLOBO - 31/07

Em 1996, com uma equipe da Rede Globo e um relatório de IDH do Brasil nas mãos, feito pelo PNUD e Ipea, viajei durante um mês pelo país. Voltei com uma série de reportagens para o Jornal Nacional: Caminhos do Brasil. Foi quando entendi que a melhor comparação do país é com alguém que está no meio de uma travessia, que superou obstáculos e tem muito ainda até o seu objetivo final.

Ainda é assim. O meio do caminho é longo. O avanço nas últimas duas décadas merece ser louvado e tem números animadores, como o de nove anos de aumento da expectativa de vida entre 1991 e 2010. Mas é bom lembrar alguns pontos: os países não estão parados, enquanto tiramos o nosso atraso. Há progresso em vários desses indicadores no mundo. Outro detalhe é que o IDHM, sobre os municípios brasileiros, não é comparável com o IDH do mundo. O divulgado agora é um olhar para dentro do Brasil; o outro é um ranking mundial. Mesmo assim, sabemos que há países economicamente mais fracos que o Brasil e que, ainda assim, têm números melhores.

O IDH nos ensinou uma forma melhor de entender o desenvolvimento. Em vez de apenas o número objetivo e descarnado do PIB, um indicador que tenta captar a qualidade de vida. Mesmo assim, precisa de muitos aperfeiçoamentos. Hoje, o que se discute no mundo é como o dado de educação pode espelhar mais a qualidade do ensino, em vez de medir apenas os números de cumprimento de séries. Exemplo: se tem um peso maior a criança e o adolescente no ano certo da escola, a aprovação automática não geraria uma distorção? Há também desejo de que se incluam índices de sustentabilidade. O indicador também cumpre sua trajetória para se tornar um termômetro melhor.

Com tudo isso, o Brasil avançou: aumentou a expectativa de vida, reduziu a mortalidade infantil, elevou a renda, melhorou a educação, reduziu sua oceânica desigualdade. Mas, quem enfrenta os gargalos da vida urbana, falhas da saúde pública, ensino deficiente, índices deprimentes de saneamento básico tem dificuldade de considerar que o Brasil é hoje um país em que a maioria dos municípios está classificada como de "alto desenvolvimento humano". A realidade diária, nós a conhecemos bem.

Quando saí para a reportagem em 1996 - uma experiência marcante, de inesgotáveis lições - sabia que precisava ser capaz de ver avanços, atrasos, contrastes. Hoje, de novo, é isso que se pode ver nesse relatório. A desigualdade caiu, mas permanece enorme. O aumento da escolarização do ensino fundamental é inegável, mas o gargalo do ensino médio continua sufocando a juventude. Comparado com os números de anos atrás, o Brasil avançou. Confrontado com o que precisa fazer para superar o atraso histórico na área educacional, é ainda muito pouco.

Os números que saem de um relatório como este servem pouco se forem entendidos apenas como uma competição entre cidades que estão entre a melhor, São Caetano do Sul, em São Paulo, e a pior, Melgaço, no Pará. Os dados têm que servir para orientar as políticas públicas e replicar experiências bem sucedidas.

Não é hora ainda de comemorações, nem de distribuição de Oscar para ator principal ou coadjuvante. O avanço foi um trabalho coletivo executado na democracia, em que governantes são mais permeáveis à pressão da opinião pública. É curioso como dois governos de partidos adversários no cenário político executaram uma tarefa complementar para compor a parte boa dessa história.

Os dados devem nos servir como um estímulo nesse meio do caminho. Se até aqui conseguimos conquistas, poderemos continuar nossa trajetória em busca do que queremos. Vai ser mais fácil se o Brasil souber exatamente quais são seus objetivos.

Chico e Francisco - ALEXANDRE SCHWARTSMAN


FOLHA DE SP - 31/07

A inflação alta é 'sazonal', mas a inflação baixa (em um único mês!) é mérito governamental


Não tem nada a ver, juro, com a visita do papa, mas lendo a entrevista dominical da presidente da República à Folha me lembrei do ditado favorito de minha amiga, e economista de respeito, Tatiana Pinheiro (que, às vezes, também produz pérolas inesquecíveis, como a "menina dos ovos de ouro"): "pau que bate em Chico também bate em Francisco".

A frase é geralmente citada quando surge uma assimetria grave na análise, isto é, quando determinado argumento é formulado sem muita noção de suas consequências lógicas caso a premissa seja alterada.

Lendo o parágrafo anterior, noto que a última frase não é um primor de clareza, mas acredito que o ponto pode ser facilmente ilustrado pelos inúmeros casos que pululam na fala presidencial.

Questionada, por exemplo, sobre o baixo crescimento, a presidente saiu-se com: "O mundo cresce pouco. Não somos uma ilha".

Trata-se de resposta aparentemente sensata, mas que não passa no teste de simetria, pois, quando o Brasil viveu um período de crescimento mais acelerado, em momento algum se ouviu a presidente dizer que nosso desempenho resultava do bom momento mundial.

Pelo contrário, o mérito era do governo, embora o PIB brasileiro tenha se expandido a uma taxa pouco inferior à média global. Da mesma forma, quando o país se encontrou entre aqueles que saíram de forma mais vigorosa da crise, dizia-se que era uma ilha de prosperidade. Somos e deixamos de sê-lo ao sabor das conveniências do governo.

Igualmente, a presidente enche a boca para falar da inflação baixa de julho, resultado pontual, fortemente influenciado pela redução das tarifas de transporte urbano, mas não veio a público para externar sua preocupação com a inflação alta no primeiro quadrimestre do ano.

A inflação alta é "sazonal", ou "resultado de um choque agrícola", mas a inflação baixa (em um único mês!) é mérito governamental. E, posso apostar, quando a inflação voltar a se acelerar mais para o final do ano, a presidente não assumirá a responsabilidade, mas voltará a invocar razões sazonais e pontuais, que, na visão do governo, só são importantes para explicar a inflação alta; jamais a inflação baixa.

Segundo a presidente, tudo também vai bem no campo do gasto público ("O deficit da Previdência é 1% do PIB. As despesas com pessoal, de 4,2%, as menores em dez anos"), apesar de o dispêndio, medido como proporção do PIB, encontrar-se no nível mais alto da história (18,3% do PIB).

Já o investimento federal, mesmo vitaminado desde o ano passado com a contabilização dos recursos do programa Minha Casa, Minha Vida, cresce como rabo de cavalo e responde por modesto 1,3% do PIB nos últimos 12 meses, insuficiente para atender os requisitos de expansão da infraestrutura.

Na verdade, na primeira metade deste ano os gastos correntes aumentaram (descontada a inflação) cerca de R$ 26 bilhões; o investimento caiu R$ 1,8 bilhão. Assim, mesmo o aumento das receitas, pouco superior a R$ 5 bilhões, não foi capaz de impedir a visível redução do superavit primário federal (oficial), de R$ 52 bilhões no primeiro semestre de 2012 para R$ 35 bilhões no mesmo período de 2013.

Esse aumento do gasto, porém, é ainda "vendido" como uma atuação anticíclica, convenientemente deixando de lado que, mesmo nos anos bons, em nenhum momento houve sequer tentativa de redução da despesa pública, em particular a despesa corrente, que, a valer o que dizia a ministra-chefe da Casa Civil do governo Lula, "é vida". Só a visão persistentemente assimétrica pode explicar a tentativa de negar o caráter expansionista da política fiscal.

Ao final, a entrevista da presidente é reveladora: se alguém ainda imaginava ser possível uma correção de rota no rumo da política econômica, seu conteúdo deve ter convencido mesmo os otimis- tas mais renitentes a remover o proverbial cavalinho da chuva. Vai sobrar para Chico e também para Francisco.

Confiança abalada - CELSO MING


O Estado de S.Paulo - 31/07

Em dois dias, três índices diferentes, medidos por institutos diferentes, apontaram para uma forte redução da confiança no governo por parte do consumidor, da indústria e do comércio.

Há duas semanas, a presidente Dilma Rousseff, criticou os propagadores do pessimismo que azedam tudo e criam um ambiente ruim para recuperação da atividade econômica. E culpou os analistas da economia, sem precisar melhor o seu alvo.

O governo é incapaz de reconhecer seus erros na condução da economia, divulga só o que lhe interessa, maquia resultados e distorce fatos.

Nenhum estrago à credibilidade do governo foi maior do que as práticas argentinas do secretário do Tesouro, Arno Augustin, de submeter as contas públicas de 2012 a artifícios contábeis. Até agora, ninguém entendeu como o ministro da Fazenda, Guido Mantega, pode garantir um superávit primário (sobra de arrecadação para pagamento da dívida), em 2013, de 2,3% do PIB.

As contas públicas são opacas. O presidente do Banco Central, Alexandre Tombini, admitiu em entrevista ao Estadão (21/7) que "a política fiscal não é clara". E, antes dele, o ex-ministro da Fazenda Delfim Netto declarou ao Estadão (8/6) que a percepção do mercado é de que "a situação fiscal do Brasil é uma esculhambação". E, ainda ontem, o próprio Delfim advertiu que essa contabilidade criativa distorce as estatísticas da dívida pública líquida.

Também ontem, o economista-chefe do Grupo Credit Suisse, Nilson Teixeira, advertiu que, para a recuperação da confiança é necessário que o governo aponte o resultado real das contas públicas, "sem manobras contábeis".

O governo não apenas gasta demais, mas, sobretudo, gasta mal; investe pouco e administra pior ainda seus projetos de investimento. Em praticamente todos eles, temos a síndrome das obras de transposição do Rio São Francisco, que não terminam nunca e custam cada vez mais, para benefício sabe-se lá de quem.

Por que, por exemplo, a presidente Dilma insiste em afirmar que a inflação fechará este ano "na meta", quando se sabe que a meta de inflação é de 4,5% e não os 6,5% (que incluem a margem extra de tolerância) a que ela se refere? Todas as projeções apontam para uma inflação acima dos 5,5% em 2013. Por que não admitir que esse estouro é gol contra e não uma vitória sobre a alta de preços, especialmente quando se leva em conta a deterioração do poder aquisitivo do assalariado.

Não há comentário da área econômica do governo que não atribua os números ruins da atividade econômica aos graves problemas externos - que os analistas, é claro, acabam piorando com seu pessimismo. Apesar disso, também o governo garante que a virada vem vindo aí e que tudo vai melhorar, inclusive as avaliações da população em relação ao desempenho da presidente Dilma. Ora, se estamos mal porque o mundo vai mal, então como é que se pode esperar pela melhora, se os prognósticos são de uma piora do comportamento da economia mundial?

A maneira como o governo administra a economia e as contas públicas é parte essencial do problema da falta de confiança. E as críticas que lança a esmo contribuem para a prostração.

segunda-feira, julho 29, 2013

Adeus à Jornada Luiz Paulo Horta


Que houve problemas de organização, todo mundo sabe. Mas, na minha cabeça, vão ficar da Jornada algumas imagens inesquecíveis. O que pode ser mais bonito: o Papa acossado pelas mães que lhe levavam crianças para serem beijadas, ou os bandos de jovens, com suas bandeiras, caminhando pelas praias do Rio com um excesso de alegria transbordando pelo rosto? Ou a imagem final de Copacabana, coberta de gente, num dia em que o Rio mostrava toda a sua cenografia deslumbrante? Eram retratos de um possível paraíso terrestre que, para mim, deixaram na sombra os transtornos materiais. Aliás, a ideia da peregrinação não é exatamente a dos confortos prosaicos.

Mas, Jesus Cristo, de onde veio tanto entusiasmo? Não diziam que a Igreja estava se acabando, vergada ao peso de escândalos? Ela parecia bem viva, nesses últimos dias.

Mas não cabe, aqui, o menor triunfalismo — que seria, aliás, o próprio oposto do papa Francisco. Assistimos, nesses dias, a muitos milagres, e rivalidades de crença pareciam muito longe do cenário. Ontem, em Copacabana, uma faixa dizia: "Papa Francisco, sou evangélico mas te amo!". O padre, bispo e cardeal Bergoglio, por toda a vida, foi um praticante do ecumenismo. Ele sabe que o mundo de hoje é pluralista, complexo, inseguro de si mesmo, e que ninguém está à espera de uma cruzada.

Mas ele quer os jovens na rua — isso ele disse com todas as letras. Usou uma forma trinária que me lembrou demais o grande Alceu de Amoroso Lima: "Ide,/ sem medo/ para servir".

É todo o Bergoglio que está nessas palavras. "Ide": sair de si, do bem-bom caseiro, abrir o coração para os mistérios da vida, reservar um espaço para o "outro" que está do seu lado, que pode parecer um chato, mas sempre tem algo de bom. Ele poderia citar o famoso rabino Nachman de Bratislava (século XVIII), que dizia: "Devemos julgar os outros favoravelmente. Mesmo se alguém é completamente mau, devemos procurar o pedacinho de bem que está nele. Nesse pedacinho de bem, aquela pessoa não é má". Continuava o rabino: "Se, naquela pessoa, você encontra esse pedacinho de bem, e a julga favoravelmente, você faz ela passar do lado da culpa para o lado do mérito". E concluía: "Devemos aplicar essa técnica a nós mesmos. Uma pessoa deve trabalhar muito a sério para estar sempre alegre, e para fugir da depressão". Não é isso puro Bergoglio? Não foi o Cristo quem disse: "Não julgueis para não serdes julgados"?

Acho que parte da mágica que intuímos esses dias, como um sopro de luz e de vida, vem da passagem (ou da proximidade) de um mestre espiritual. Sim, Bergoglio é simpático, um paizão. Mas, reparem, ele não ri o tempo todo, ele não faz gestos teatrais. Onde é que você já viu manter três milhões de pessoas, como ontem, silenciosas durante cinco minutos, porque ele pediu um tempo de oração? O demagogo não faz isso, não quer que as pessoas pensem por si mesmas, quer exercer uma espécie de hipnotismo barato.

O papa Francisco quer que você pense, que você medite sobre esse tesouro inesgotável que é a tradição cristã. Da Virgem Maria, de quem é devoto, ele pede a graça de "guardar essas coisas no seu coração".

Ele quer que os jovens rezem — e que depois vão para a rua, inclusive para renovar a política. Não é uma religião de portas fechadas, de caráter sectário. É uma religião aberta para o mundo — mas que, do encontro com o Cristo, extrai a sua identidade.

Ele sabe em que mundo estamos vivendo. Mas sabe que o desejo da transcendência mora no coração do homem, insatisfeito numa cultura que só oferece o material e o sensório.

Ao mesmo tempo, ele faz a dicotomia "transcendência mais encarnação". O cristão recebe a visita do infinito; mas enquanto há vida, estamos acampados nessa terrinha, cercados de gente que pede justiça, pão e liberdade.

E aqui é preciso relembrar o lema trinário do papa Bergoglio: "Ide/ sem medo/ para servir". É o que ele tem feito a vida toda, e pode fazer para toda a Igreja.



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domingo, julho 28, 2013

O Estado e a sociedade - MERVAL PEREIRA


O GLOBO - 28/07
O primeiro governo Lula representou uma experiência inédita de inovação no recrutamento nas bases partidárias, sindicais e locais. Nas áreas de gênero e etnia (afrodescendentes) também iniciou um padrão de crescente participação, todavia, em patamares ainda irrisórios.

O trabalho "Elites burocráticas, dirigentes públicos e política no Poder Executivo do Brasil, 1995-2012", da cientista política Maria Celina Soares D"Araujo, da PUC-Rio, compara o perfil dos altos dirigentes públicos no Brasil de 1995 a 2012, abrangendo os governos de Fernando Henrique Cardoso, Lula da Silva e os dois primeiros anos de Dilma Rousseff, num total de 18 anos de gestão pública federal, e chega à conclusão de que o primeiro governo Lula "foi um caso atípico na densidade da interface entre sociedade e Estado".

Na coluna de ontem, vimos como o governo Lula destaca-se na utilização de petistas e sindicalistas no primeiro nível de assessoria, os DAS 5 e 6 e os cargos de Natureza Especial. Outra marca forte dos governos do PT observada nesta pesquisa é a presença de dirigentes públicos recrutados nos estados e municípios, em especial no primeiro governo Lula.

O trabalho analisa os vínculos do grupo de dirigentes com outras organizações e associações da sociedade civil, procurando detectar quantos desses dirigentes tiveram algum engajamento cívico ou associativo antes de assumir o cargo. Ele leva em conta movimentos sociais, experiências em gestão local e em conselhos vinculados a políticas públicas, bem como filiação a associações profissionais.

O engajamento associativo dos dirigentes públicos por governo mostra que os de Lula foram os que mais utilizaram experiências em movimentos sociais (46,5% no primeiro, 45,1% no segundo), enquanto nos de Fernando Henrique apenas 24% dos assessores tinham essa experiência, e 36% no governo Dilma.

O trabalho destaca "um estável percentual de cerca de 20% dos ocupantes de cargos de DAS níveis 5 e 6 que procedem do próprio órgão do serviço público federal em que passaram a atuar em cargo de confiança". Juntando-se aos servidores de outros órgãos ou esferas "vemos que a grande maioria foi recrutada no serviço público desmontando, pelo menos parcialmente, a tese de que esse seria um espaço privilegiado para a nomeação aleatória de protegidos políticos".

Os não servidores em cargos de DAS cresceram percentualmente nos governos do PT, mas nunca chegaram a ocupar um terço desses indicados. Maria Celina D"Araujo ressalta, porém, que "não se pode desconsiderar que entre esses servidores de carreira há pessoas altamente partidarizadas ou politicamente engajadas, especialmente no caso do PT, partido com forte atração entre os funcionários públicos em geral".

Ainda sobre engajamento político deste grupo, foi examinado o envolvimento dos dirigentes públicos filiados a partidos em cargos de direção nas organizações partidárias a que pertenciam. No governo Fernando Henrique, o percentual era de 7,5%, subindo para 10,7% e 12,3% nos consecutivos governos Lula, baixando para 9,6% no governo Dilma.

Ou seja, conclui Maria Celina, em todos os casos, a julgar pela exiguidade dos cargos de direção em cada partido frente ao número de filiados, esse percentual é expressivo levando a supor que acesso a cargos de direção partidária, independente do partido, é um atalho eficaz para a administração pública. Provavelmente o inverso também é verdadeiro.

Dada a alta inserção do PT em governos locais tornou-se imprescindível localizar em que nível da federação foram recrutados os dirigentes que eram funcionários públicos, diz ela. Os dados parecem coerentes com a lógica partidária e com o perfil de cada presidente. Lula da Silva em seu primeiro mandato foi o que mais recrutou dirigentes nos municípios e nos estados, num total 27,5%.

Dilma voltou a aumentar o recrutamento nos municípios (5,4%), mas diminuiu a participação dos estados e aumentou a do nível federal. A presença de funcionários municipais nesses cargos era praticamente nula no governo Fernando Henrique o que atesta a tese de um maior compromisso dos governos do PT com o aproveitamento de suas bases locais, em alguns casos, considerados espaços de excelência.

Aquém da imaginação - DORA KRAMER


O Estado de S.Paulo - 28/07

O papa Francisco e os jovens - os hóspedes - saíram-se muito bem. Já o poder público - o hospedeiro - saiu-se muitíssimo mal da Jornada Mundial da Juventude que, durante uma semana, expôs em detalhes as deficiências que marcam uma grande distância entre a fantasia de querer e a capacidade do País de fazer grandes eventos.

Como ficou demonstrado, "imagina na Copa" não é apenas um bordão travesso ou mera abstração do contra. É produto da confrontação diária de que a má qualidade dos serviços prestados aos brasileiros não corresponde à pretensão de ofertá-los em larga escala a multidões de visitantes.

Engarrafamento, falha de planejamento, falta de transporte, filas imensas nos pontos de ônibus sempre insuficientes, caos nas estações do metrô, nada a que os locais não estejam acostumados.

Da mesma forma estamos familiarizados com a desculpa de que "nessa época do ano choveu além do previsto", apresentada pela prefeitura do Rio ante a impossibilidade de se realizar a vigília de oração e a missa de despedida do papa no lodaçal em que se transformou o campo preparado (?) em Guaratiba, na zona oeste da cidade.

Os moradores dessa e de outras regiões - não só do Rio, aqui uma espécie de maquete dos enguiços existentes Brasil afora - estão habituados a sofrer os efeitos das chuvas tidas por nossas autoridades como ocorrências imprevisíveis. As pessoas morrem, perdem suas casas, ficam desamparadas e é sempre a mesma coisa: culpa da abundância inesperada de São Pedro.

Os transtornos da Jornada funcionaram como um resumo de repercussão amplificada do grito dos cidadãos que foram às ruas. Também daqueles que, nas pesquisas, registram concordância com as manifestações deflagradas pela saudável ousadia da juventude imune aos efeitos da anestesia de um falso Brasil reinventado na imaginação (para não dizer manipulação) do ex-presidente Luiz Inácio da Silva.

No embalo dessa fabulação, deixou-se de lado o ensinamento do velho dito: "Quem não tem competência não se estabelece". Várias das reclamações que se viram nas placas de junho estavam retratadas nos desacertos da Jornada de julho, em logística e duração incomparável com a Copa do Mundo e a Olimpíada.

O enredo criado por Lula quando dos espetáculos promovidos para celebrar a escolha do Brasil como sede dos dois certames não combina com os fatos. Não resistiu ao primeiro teste da realidade de falta de estrutura, disciplina, seriedade, realismo e responsabilidade para fazer frente ao tamanho do compromisso assumido.

O ensaio na primeira viagem internacional de Francisco cobre de descrédito o País, que saiu da Jornada menor do que entrou. O papa, generosamente bem humorado, pediu desculpas ao prefeito pela "bagunça" que estava fazendo na cidade, quando eram os anfitriões os responsáveis pela série de confusões.

No início, temia-se que a repetição dos protestos e atos de vandalismo tumultuasse o ambiente. No fim, o que tumultuou foi justamente a inépcia do poder público, alvo das manifestações cuja motivação ficou patente. Ao mesmo tempo, comprovou-se a razão pela qual as autoridades não souberam dar aos manifestantes uma resposta à altura.

A despeito da improvisação, a festa que hoje se encerra foi bonita. Pelo conteúdo de espiritualidade que estimula positivamente e cria uma atmosfera de boa vontade, bem entendido. A mesma condescendência, porém, não haverá quando do campeonato de futebol e dos Jogos Olímpicos.

Se o mundo deu agora um mau (e merecido) testemunho a respeito da ineficácia da organização, não é nem de se imaginar, mas de se constatar previamente, a dimensão do vexame que se avizinha no horizonte.

Travessa da política - MIRIAM LEITÃO


O GLOBO - 28/07

O plebiscito surgiu como proposta numa hora de tumulto do país e pareceu a alguns uma forma de a presidente fugir de problemas; a outros, uma forma de tirar força do Congresso. Para o ministro Joaquim Barbosa, independentemente do contexto em que apareceu, a ideia de haver mais plebiscitos e referendos no país é boa. "É uma forma de revigorar a democracia."

O argumento de Barbosa na entrevista que me concedeu - veja na editoria País - foi que assim que se falou em "plebiscito" o país foi atingido por uma "demofobia" (medo do povo). Esse medo de que o povo não entenda ou não saiba escolher não se justifica, segundo ele, porque, explicado bem, tudo pode ser entendido. E na consulta basta formular bem a pergunta:

- Ouvir o povo é sempre uma boa ideia, dar a palavra ao povo. Quantas democracias têm plebiscito e referendos frequentemente? Nos Estados Unidos, França, Itália. Na União Europeia, as adesões aos sucessivos pactos foram feitos através de referendos.

O presidente do Supremo já vem dizendo que o sistema eleitoral brasileiro tem que ser alterado, acabando-se com a fórmula atual do cálculo de sobras, que permite que um candidato com muito voto eleja políticos quase sem voto; pensa que o suplente tem que ser eliminado e propõe, no lugar, que haja eleição em caso de morte de senador, por exemplo:

- Os TREs estão preparados para fazer rapidamente uma nova eleição parcial.

Ele define como "abominável" o sistema de lista fechada, mas usa o mesmo adjetivo para o sistema atual, em que os partidos, sem qualquer transparência, aproveitam-se das sobras do quociente eleitoral:

- É uma burla da vontade do eleitor, que votou em alguém e vai eleger mais quatro ou cinco políticos escolhidos pela cúpula do partido.

Ele é um defensor do sistema distrital, convencido de que resolveriam esses problemas que ocorrem hoje na democracia brasileira:

- O sistema distrital é mais transparente, expressa mais a vontade do eleitor e cria a identificação direta do eleitor com o eleito.

Sobre os Tribunais Regionais Federais, cuja criação ele decidiu suspender, a explicação que deu é que isso é rotineiro. Atribui as críticas à falta de informação sobre como funcionam as instituições. Decidir nas férias dos ministros é uma prerrogativa do presidente, explicou. Depois, o assunto volta ao ministro para o qual foi distribuído. Mas, já entrando no mérito, ele diz que o Judiciário brasileiro tem garantias contra interferências políticas. O risco de aceitar que o Legislativo crie tribunais é que ele pode querer também suprimir.

- Permitir que políticos interfiram de alguma maneira criando ou suprimindo tribunais é abrir as portas para a fragilização do Judiciário. Isso, a sociedade não quer, e a Constituição não permite.

Lembrei que ele votou no presidente Lula e na presidente Dilma e foi escolhido por Lula, mas, mesmo assim, teve que fazer o voto que levou à condenação de lideranças fundamentais do PT. Quis saber se havia sido doloroso para ele. Ele respondeu com segurança:

- Nem um pouco, ali eu estava cumprindo meu dever, como sempre cumpri nestes 39 anos e meio de serviços ao Estado brasileiro. Como é o presidente que nomeia os ministros, ele não pode escolher um amigo, ou um cupincha, um subordinado. Ao contrário, tem que escolher alguém com postura de estadista. Alguém que vai encarar um processo como esse de maneira mais natural. Eu não tomo conhecimento, ignoro a qualidade e as condições das partes que estão sendo julgadas. Uma das tragédias do Brasil é a justiça criminal de classe.

Pedi que ele apontasse um dos problemas do Brasil, e ele disse que é o mesmo que outros países: falta de líderes e visão de longo prazo. O mundo inteiro está com falta de lideranças, na sua opinião. Acha que no Brasil o problema surge da ditadura, que criou um vácuo, e do sistema político eleitoral, que tem impedido o surgimento dessas lideranças. Pessoas que poderiam ir para a política, mas se perguntam: por que vou me meter nisso? Por que vou frequentar esse tipo de gente?

Por isso ele acha fundamental modernizar o sistema político. A longa entrevista na Livraria da Travessa, no Rio, foi interrompida por pessoas que estavam por perto. Uma vez, por um crítico; outras três vezes, por pessoas que disseram que votariam nele.

Em berço esplêndido - CELSO MING


ESTADÃO - 28/08

Um expressivo número de relatórios e de análises técnicas vem advertindo para o forte impacto negativo sobre a indústria brasileira que começa a ser causado pela importante revolução energética em curso nos Estados Unidos. No entanto, nem o governo nem os dirigentes da indústria parecem mobilizados para uma resposta adequada para o que vem vindo aí.

A novidade, que já tem três anos, é a abundante produção de gás de xisto que vai sendo colocado no mercado dos Estados Unidos a preços correspondentes a cerca de 20% dos praticados tanto no Brasil como na Europa.

Esse tema já foi objeto de vários comentários neste espaço, mas é preciso recuperar o principal. Trata-se da produção de gás por meio de microfraturamento de formações de xisto (rochas que contêm petróleo e gás) por meio de injeção a alta pressão de uma mistura de água, areia e certos compostos químicos.

Hoje cerca de 2 mil empresas nos Estados Unidos atuam nesse negócio. Em mais alguns anos deverão dobrar e contribuir para a autossuficiência em gás e petróleo dos Estados Unidos, que a Agência Internacional de Energia prevê para 2025.

Independentemente das importantes consequências geopolíticas a serem provocadas pelo fim da dependência americana do suprimento de países problemáticos, a perspectiva de abundância de gás a preços baixos deverá deflagrar nova onda de industrialização nos Estados Unidos e nos países que vierem a adotar a nova tecnologia.

A presidente da Petrobrás, Graça Foster, tem repetido que, nas atuais condições, não há possibilidade de competir com esse gás. Em outras palavras, essa é uma forte ameaça à indústria brasileira, especialmente as eletrointensivas e aquelas altamente dependentes do gás natural como matéria-prima, como os setores do vidro, cerâmica e petroquímica, que deverão enfrentar uma concorrência dizimadora.

Este governo, sempre tão disposto a proclamar as excelências de sua política industrial, ainda não esboçou nenhum movimento em direção à definição de uma estratégia para enfrentar essa nova situação.

O Brasil tem vastos reservatórios de xisto. A Agência Nacional do Petróleo (ANP) avalia que apenas três formações (Parecis, Recôncavo Baiano e Parnaíba) têm potencial para produção de 17 trilhões de metros cúbicos de gás.

O primeiro leilão de concessão de gás não convencional está agendado para novembro, mas até agora não há clareza nas suas regras. O pressuposto é o de que as operadoras terão liberdade para adotar a nova tecnologia do microfraturamento. Mas os eventuais interessados terão de operar quase às cegas, por falta de mapeamento geológico que indique a extensão e as características das jazidas.

Também falta balizamento ambiental para esse tipo de atividade, dado o risco de contaminação dos lençóis freáticos e a forte demanda de suprimentos de água. Esse é um fator que, por si só, aumentará os riscos e reduzirá o potencial de receita do Tesouro em bônus de assinatura.

Solidariedade na ilha - JOÃO UBALDO RIBEIRO


O GLOBO - 28/07

'A presidenta, coitada. Eu estive pensando que não haveria melhor maneira de começar o programa Braços Abertos do que com ela'



Contam os mais antigos que, faz algumas décadas, em Salinas da Margarida, em plena festa da padroeira Nossa Senhora do Carmo, Zecamunista encerrou um comício do Partidão com um discurso incendiário no qual, agitando o punho na direção do céu, xingou o padre e repetiu várias vezes que a religião é o ópio do povo. Acabado o comício e pouco antes de o delegado levá-lo em cana novamente, ele foi muito cumprimentado por cidadãos que se agradaram especialmente dessa parte do ópio, mas, mal ele se recuperava da surpresa, descobriu que o pessoal não sabia o que era ópio e, na maior parte, achava que se tratava de um elogio fino, desses que a gente não entende direito, mas finge que entende, para não passar por iletrado.

Tudo indica que ele nunca superou esse trauma da juventude, pois não se manifesta mais sobre o assunto, a não ser quando muito provocado. Nem mesmo a visita do Papa suscitou qualquer manifestação da parte dele, que assistiu ao noticiário na televisão do Bar de Espanha muito composto e sem gritar nenhuma palavra de ordem. Na verdade, circula até uma fofoca, quiçá invenção de algum marido sem espírito esportivo, ou parceiro de pôquer ressentido, altamente difamatória para um bolchevique de quatro costados, segundo a qual ele conseguiu a colaboração de alguém que conhecia alguém que iria estar com Sua Santidade, para ver se descolava uma bençãozinha para a estampa de São Caetano que tem em casa e de quem se murmura à boca pequena que ele é devoto. São Caetano é o paciente, compreensivo e laborioso padroeiro dos jogadores, apostadores e dos que precisam de sorte em geral, mas Zeca desmente tudo com indignação, embora, se desafiado a renegar o santo, disfarce, mude de assunto e, no máximo, responda que não aceita provocações da direita e não entra em discussões pequeno-burguesas. De forma que, diante de uma história tão eivada de dúvidas e controvérsias, não chegou a causar surpresa o anúncio que ele fez, de que a visita do Papa o tinha inspirado.

— Eu confesso que fui influenciado pelo Papa — disse ele. — Somente depois da visita dele foi que eu me toquei.

— Você se converteu?

— Me respeite! Eu nunca traí meu currículo, eu sou subversivo desde os oito anos, boicotei a páscoa da escola duas vezes e já tomei muito porre de vinho de padre, roubado da sacristia, me respeite. Somente um ignorante é que acha que um materialista cem por cento, como eu, não pode sentir solidariedade humana. Não tem nada de conversão, ele apenas me levou a conceber um novo projeto aqui para a ilha, só que desta vez não é visando o lucro, é por uma recompensa moral, por assim dizer espiritual. E também pode ajudar na imagem aqui da ilha, a hospitalidade é muito importante para o turismo.

— É como aquele outro plano que você bolou, para fazer aqui a cadeia dos condenados do mensalão?

— Não aquele eu abandonei, só vai ter preso mensaleiro na outra encarnação e, como eu não acredito em outra encarnação, é nunca mesmo, esqueça essa besteira, foi tudo brincadeira deles. Não, agora é um projeto muito diferente, ainda não achei um bom nome para o programa, mas creio que talvez Braços Abertos ficasse bem. O primeiro em que eu pensei foi Aconchego da Consolação, mas achei com pinta de filme mexicano de antigamente. Braços Abertos, que é que você acha? Você acha que ela ia compreender o espírito da coisa e até recuperar sua crença na humanidade?

— Zeca, o que é que você andou bebendo? Não entendi nada, ela quem?

— A presidenta, coitada. Eu estive pensando que não haveria melhor maneira de começar o programa Braços Abertos do que com ela, todo mundo ia saber da iniciativa e ver como a ilha seria a solução para muitos. Eu tenho o coração mole, fico comovido com o sofrimento dela.

— Eu não sei de sofrimento nenhum dela.

— Você desconhece a política, eu conheço a política. Você veja, coitadinha, nada deu certo, ela não levou sorte. Praticamente tudo foi para trás, a bagunça é grande, quem era para ajudar atrapalha muito mais do que ajuda, ninguém se entende direito, é um pega pra capar muito feroz, cadê o meu pra lá, cadê o meu pra cá, só estão com ela enquanto acharem que dá futuro. E agora já começaram a se engalfinhar e a disputar o que vai aparecer e o que vai sobrar. Ninguém mais liga para ela, que não sabe se expressar direito e, quando começa a falar, parece que vai dar um cascudo em alguém, coitadinha. Eu fico com pena, é muito duro, às vezes eu penso que ela está ali, querendo fazer pose de cáiser prussiano, mas com vontade de chorar, é desumano.

— Eu nunca tinha pensado nisso.

— É que você também é desumano. Mas eu vou fazer um convite a ela para vir esquecer as mágoas aqui. Agora não, ainda é muito cedo, ela ainda não acreditará, se alguém contar a ela o que vai acontecer. Mas daqui a pouco, a começar pelos atuais bajuladores, vai ter gente sem querer atender ao telefonema, vai ter gente mandando dizer que não está, vai ter mais gente ainda dizendo a ela uma coisa e fazendo outra, vai ter até um cara do cafezinho sem as mesmas mesuras de antigamente, outros vão deixar de lembrar o aniversário, é um conjunto de coisas sutil, mas muito cruel, eu fico comiserado. Aqui ela vai ser recebida com carinho e compreensão, vai até conseguir fazer amigos.

— Que é isso, amigos ela já tem.

— Possivelmente, mas agora não dá para ela saber quem são eles. Ela ainda tem muito susto pela frente e o Braços Abertos chegou para ajudar. O Papa aconselha amar o semelhante. E a semelhanta, como diria ela.

Afiando as unhas - ELIANE CANTANHÊDE


FOLHA DE SP - 28/07

BRASÍLIA - Contra fatos, não há argumentos. Só esperneio, ameaças e a criação de inimigos fictícios.

Na economia: a arrecadação federal parou no tempo, praticamente igual à do ano passado; o corte de R$ 10 bilhões no Orçamento não convenceu; o rombo nas contas externas cresceu 73% no primeiro semestre, em relação a 2012; os brasileiros gastaram o recorde de US$ 12,3 bilhões (?!) no exterior em apenas seis meses.

Mas o pior é que a geração de empregos, centro do discurso otimista da presidente Dilma em pronunciamentos internos e mundo afora, começa a sentir o peso de PIB baixo e inflação no teto da meta. O índice ainda é bom, mas a queda de 20% em relação ao primeiro semestre do ano passado fez o governo revisar para baixo a previsão de vagas para 2013.

Na política: Dilma expôs publicamente sua birra com o PT ao se recusar a ir à reunião do Diretório Nacional petista, apesar de estar a poucos quilômetros do local do evento.

Se a relação com o próprio partido está nesse pé de guerra, imagine-se com os demais partidos da base aliada. Assim como o PSD, que tinha uma pesquisa pró-Dilma antes das manifestações, mas subiu em cima do muro depois, também PTB, PDT, PP estão olhando de longe, de binóculo. E o que eles veem é que, pela primeira vez, o número dos que aprovam o governo é menor do que os que desaprovam.

Mas o pior é o PMDB, que, mesmo tendo a Vice-Presidência da República, faz uma enquete interna perguntando, um a um, se é o caso ou não de manter a aliança com o PT em 2014. Isso serve para mexer com os nervos de Dilma e com o instinto de sobrevivência dos governistas em geral.

Tudo, porém, vai mudar daqui para a frente, pois Lula ressurgiu de Lilongwe e está "afiando as unhas" para enfrentar os verdadeiros culpados pelo caos na economia e na política: "as forças conservadoras".

Não concorda com ele? Então vá se queixar ao bispo, porque o formidável papa Francisco já vai embora.

sábado, julho 27, 2013

A máquina petista de Dilma - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 27/07

Uma pesquisa sobre a elite da administração pública, os ocupantes de cargos de Direção e Assessoramento Superiores níveis 5 e 6 e de Natureza Especial - 1.146 nomeações nos governos Fernando Henrique, 1.150 no primeiro governo Lula da Silva e 1.198 no segundo e 1.233 nomeações em 2011 e 2012 no governo Dilma Rousseff -, coloca luz sobre as relações partidárias, sindicais e políticas das nomeações e traz uma novidade intrigante, diante da crise de relacionamento entre ela e o PT: Dilma fez o mais partidário dos governos petistas.

O trabalho "Elites burocráticas, dirigentes públicos e política no Poder Executivo do Brasil, 1995-2012", da cientista política Maria Celina Soares D'Araujo, da PUC-Rio, compara o perfil dos altos dirigentes públicos no Brasil de 1995 a 2012, num total de 18 anos de gestão pública federal.

Nas nomeações dos três presidentes são detectados diferentes padrões de recrutamento que ajudam a entender compromissos políticos e perfil ideológico de cada um, mesmo quando pertencentes ao mesmo partido. A professora Maria Celina identifica no trabalho que profissionalização, educação formal e experiência pautaram as indicações, mas "o tom político-partidário e associativo não pode ser minimizado, especialmente quando se analisa o primeiro governo Lula da Silva".

Ao identificar haver qualificação e profissionalização entre esses dirigentes, o trabalho desmente" a mítica de que esse seja espaço para clientelismo deslavado". Há grandes variações em cada governo, mesmo quando o partido do presidente permanece o mesmo. A julgar por vínculos com sindicatos, Maria Celina diz que "Dilma está mais perto de Fernando Henrique do que de Lula da Silva, em especial, em seu primeiro governo".

O governo Lula, especialmente o primeiro, demonstrou maior compromisso com bases sindicais, não só entre filiados a sindicatos como em relação a dirigentes de centrais. Nada menos que 45,3% dos cargos foram ocupados por sindicalistas, e 10,9% por membros de centrais sindicais no primeiro governo Lula, caindo no segundo governo para 36,1% de membros de sindicatos e subindo para 10,9% de filiados a centrais. No governo Dilma há apenas 21% de sindicalistas, e 3,5% de membros de centrais sindicais.

Da mesma forma, o envolvimento desses dirigentes com movimentos sociais, associações comunitárias e profissionais são mais expressivos nos governos do PT, em especial no primeiro governo Lula, o que o torna "um caso único de forte envolvimento entre altos dirigentes, partidos, sindicatos e movimentos
sociais".

Se os vínculos com os sindicatos vão num decrescente nos governos do PT, o mesmo não se pode dizer em relação ao partido, ressalta o trabalho.O perfil partidário dos dirigentes públicos mostra que a filiação partidária desse grupo ficou em torno de um quarto, nos governos do PT, e menor que isso no de Fernando Henrique. Ou seja, "a maioria dos dirigentes públicos não é filiada a partido".

Pelo levantamento, "percebe-se nitidamente que burocracia, política e dirigentes públicos não podem ser tratados de forma excludente", ressalta a cientista política. Os dados indicam concentração de petistas entre filiados a partido nos governos do PT. Nos governos Lula, a média de filiação foi de cerca de 25%, enquanto no de Dilma está em 23% e nos de Fernando Henrique ficou em 18%. Desses, 80% eram petistas no primeiro governo Lula, 70% no segundo, e 81,8% no governo Dilma. Nos governos de Fernando Henrique, cerca de 49% eram do PSDB. Segundo Maria Celina, "essas nomeações refletem, em algum grau, preferências políticas e, provavelmente, recursos adicionais de poder nas mãos do partido do/a presidente".

Se aferirmos o percentual de dirigentes filiados aos partidos da base, veremos que "claramente o governo Fernando Henrique foi o que mais distribuiu poder entre os partidos aliados". Nada menos que 32,6% dos assessores pertenciam aos partidos da base governista, como 18% eram de outros partidos.Os presidentes petistas não só privilegiaram crescentemente a base do governo como acabaram, no caso de Dilma, excluindo completamente a composição com outras forças. No governo Dilma, apenas 18% dos principais assessores são de partidos da base e nenhum de fora. Nos governos Lula, apenas 5% dos cargos foram ocupados por membros de partidos de fora da base. 

A má-fé do terror oficial - RUTH DE AQUINO

REVISTA ÉPOCA


A lambança na JMJ só se compara à má-fé das versões oficiais dos protestos contra Cabral



O papa Francisco bota fé nos jovens. E você? Bota fé na PM e no governo do Rio de Janeiro? O grau de lambança na logística da Jornada Mundial da Juventude só se equipara à má-fé das versões oficiais sobre os protestos contra a corrupção e Sérgio Cabral. Faltou “inteligência” na repressão fardada e infiltrada. Uma repressão seletiva, que fere manifestantes e jornalistas, mas deixa rolar depredações e saques com total impunidade – como aconteceu naquela madrugada no Leblon, até hoje mal explicada. Quem engoliu a história do “pacto com a OAB” para não reprimir crimes comuns contra lojas e patrimônio público?

PMs sem identificação e policiais à paisana – os P2, fantasiados de manifestantes, identificados com uma pulseirinha preta – criaram no Rio um clima de intimidação física e psicológica. Há relatos de sequestro-relâmpago, ameaças de morte, armação de flagrantes, acusações montadas de formação de quadrilha. Há detenções arbitrárias “para averiguação”. Um clima que, como diz Cabral, “afronta o Estado democrático de direito”. Também afronta a democracia o decreto inconstitucional de Cabral exigindo, “em 24 horas”, das operadoras de telefone e provedores de internet, dados telefônicos e informações sobre suspeitos. Ele refraseou o decreto, mas a OAB continua a tachá-lo de ilegal. É essa “a agenda positiva” de Cabral para eleger seu vice Pezão? Cabral teve a pior avaliação entre 11 governadores, segundo o Ibope. Só 19% o apoiam hoje.

O episódio com Bruno Ferreira Teles, manifestante preso “por porte de artefato” perto do Palácio Guanabara, revelou o festival de contradições da PM. Vídeos e fotos no Facebookforam essenciais. Em liberdade condicional por habeas corpus, Bruno provavelmente ainda estaria preso se não fossem essas imagens. O procurador Eduardo Lima Neto, presidente da comissão criada pelo governo para investigar vandalismo, o denunciou por “tentativa de homicídio”.

O que mostram os vídeos e fotos? Bruno com casaco e óculos de proteção, sem mochila e sem máscara, na linha de frente da manifestação contra Cabral, junto à grade, gritando. Subitamente, um coquetel molotov é lançado por trás dele. Um policial à paisana, com camiseta e mochila pretas, tenta prender Bruno. Bruno dá uma “voadora” no P2. PMs perseguem Bruno e atiram. Ele cai desacordado. Um PM dá um choque no rapaz com a pistola Taser. Alguém o refreia: “Ele já está no chão!”. Bruno é arrastado pela rua por policiais. Recobra a consciência e é algemado. Policiais mostram o colete metálico que ele usava – como “prova de vandalismo”. Um PM grita: “Foi ele que tacou o primeiro coquetel molotov”. Bruno nega. “Ele é preso de quem?”, pergunta um oficial. “Do P2”, responde o PM. Na delegacia, o subcomandante da PM acusa Bruno formalmente de ter jogado o artefato. Ele é autuado em flagrante na presença de representantes do Ministério Público e passa a madrugada na cadeia.

Nas redes sociais, acusa-se um P2 de ter lançado o coquetel molotov. Não há prova. A PM diz ser “uma hipótese absur­da imaginar que um policial possa cometer um ato bárbaro contra um companheiro de farda”. O assessor de direitos humanos da Anistia Internacional, o cientista político Mauricio Santoro, enxerga sinais de que policiais à paisana desestabilizem passeatas para justificar a reação da PM. Isso é muito perigoso. Já vimos esse filme antes e ele não acaba bem, não é, presidente Dilma?

A geógrafa Carla Hirt, de 28 anos, foi presa, agredida, ferida com bala de borracha e acusada de formação de quadrilha com mais seis rapazes que não se conhecem. Pagou R$ 700 de fiança “para não ser levada para (o presídio de) Bangu”. O videógrafo Rafucko foi preso e algemado – e diz que o PM encheu sua camiseta com pedras portuguesas para montar uma acusação, rejeitada pela delegada. O sociólogo Paulo Baía foi vítima de sequestro-relâmpago por encapuzados armados, quando saía para caminhar no Aterro do Flamengo. “Disseram pra eu não dar mais nenhuma entrevista falando da PM.” O estudante Rodrigo D’Olivera Graça, de 19 anos, diz ter sido colocado por quatro encapuzados “no banco de trás de um Sandeiro branco” e ameaçado caso não saísse das ruas. Aconselho a comissão de Cabral a investigar todas as denúncias graves relacionadas aos protestos, se estiver preocupada com direitos humanos.

Cinegrafistas e jornalistas passaram a ser alvos de PMs no Rio. Câmeras foram quebradas. Um policial prendeu “para averiguação” Filipe Peçanha, do Mídia Ninja, que transmite as manifestações por internet. Outro PM deu golpe de cassetete na cabeça do fotógrafo Yasuyoshi Chiba, da AFP. A versão da PM era: “Atingido por coquetel molotov lançado por manifestante”. É condenável divulgar como “verdades” os releases da PM sem investigar antes. Não bote fé. 

Muito a melhorar - CELSO MING

O Estado de S.Paulo - 27/07


Há duas semanas, uma matéria da revista The Economist dava conta de que grandes redes varejistas mundiais começam a se ressentir da forte migração de consumidores para as compras pela internet.

No Brasil, apesar dos avanços, isso está longe de ocorrer, porque problemas não equacionados ainda afastam clientes e contribuem para emperrar as vendas online.

Embora só metade da população (46,5%) tenha acesso à internet, como mostram dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) colhidos em 2011, as perspectivas são promissoras. Nos últimos cinco anos, o número de compradores triplicou no País e a estimativa é de 8 milhões de novos clientes em 2013, o que perfará 50 milhões de consumidores. A consultoria e-bit, especializada na área, também prevê um faturamento de R$ 28 bilhões para o setor até o final deste ano (veja o gráfico).

Além de frete gratuito e preços mais baixos, alguns fatores têm atuado para aumentar o atrativo do varejo online. Um desses fatores é a comodidade de fazer compras sem ter de sair de casa e enfrentar exasperantes congestionamentos de trânsito e problemas de estacionamento. Outro, a vasta oferta de informações disponíveis na internet, que permitem comparações quase instantâneas de preços, fornecedor por fornecedor, com a vantagem adicional de dar acesso à opinião de outros compradores sobre a qualidade do produto.

Mas há problemas. Apenas no primeiro semestre de 2013, a Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor de São Paulo (Procon-SP) recebeu 23 mil reclamações contra o setor de comércio eletrônico, das quais 43% se referem a atrasos ou entregas nunca realizadas.

Entre as explicações do presidente da Câmara Brasileira de Comércio Eletrônico, Ludovino Lopes, para esses problemas estão as péssimas condições de infraestrutura e falta de segurança das estradas, sujeitas a roubos e desvios de mercadorias no trajeto até o consumidor.

São desafios enfrentados por outros segmentos da economia e que, em parte, podem ser cobertos por seguro ou procedimentos de segurança. Além disso, não justificam a falta de transparência e de consideração de tantos fornecedores para com seus clientes. Prover atendimento eletrônico eficaz, que confirme o recebimento das demandas do comprador, está entre as normas estabelecidas pelo Decreto 7.962 que, desde 14 de maio deste ano, regulamenta o Código de Defesa do Consumidor (CDC) para o setor.

Também é exigido que as empresas deem satisfação às queixas em até cinco dias úteis. Se a norma fosse cumprida, muitos aborrecimentos seriam evitados. Nesses casos, os clientes são, muitas vezes, levados a repetir à exaustão dados pessoais e outras informações apenas para cobrar um mínimo de eficiência das empresas. Pesquisa realizada pelo Instituto Ibero-Americano de Relacionamento com o Cliente (IBRC) aponta que apenas 47% das empresas cumprem o prazo estabelecido pelo CDC.

São indicações de que, mesmo com o propalado sucesso, o comércio eletrônico ainda precisa melhorar seus serviços no Brasil.

Os erros da semana - MÍRIAM LEITÃO

O GLOBO - 27/07



Foi uma semana de frio inusitado no Brasil todo, até em cidades pouco acostumadas com isso, como o Rio. De presença intensa do Papa Francisco, com palavras e gestos aos quais é difícil ficar indiferente, concordando ou discordando. De confirmação da queda da popularidade da presidente e de governadores. De indicadores econômicos com a fraqueza da economia.
A viagem do Papa mostrou que o Rio exibiu falhas flagrantes de planejamento e logística. A pior delas foi o alagamento do Campo de Guaratiba. A chuva previsível afundou na lama um espaço onde havia riscos enormes de tal fato acontecer. O trânsito frustrou os visitantes e atormentou a vida dos moradores. Os governantes estavam achando que bastavam alguns dias de feriado que tudo se resolveria; só que a vida segue seu curso, muitas atividades não podem, nem querem parar. Houve momentos em que os cariocas se sentiram sem direito de ir e vir.
A estrutura de TI mostrou sua falha. Para atender ao crescimento da demanda, a qualidade da conexão piorou muito; a telefonia celular, que sempre foi péssima, virou uma calamidade. A cidade é hoje uma coleção de pontos cegos das várias operadoras.
Tudo isso tem um custo de imagem difícil de mensurar. Cada um desses visitantes de outros países será propagador do que não funcionou, a imprensa estrangeira vai usar todo o seu poder de propagação para falar das dificuldades que enfrentou para realizar seu trabalho.
Na chegada do Papa Francisco, a presidente submeteu o líder da Igreja Católica a um discurso cansativo e despropositado. Quando ela apresentou os avanços do país, fazendo o corte político - ao falar apenas "nos dez últimos anos" -, excluiu parte do Brasil. Um estadista, em momentos assim, fala em nome de todo o país, e quem não professa a fé petista sabe que os avanços sociais brasileiros foram conquistas do período democrático; com marcos importantes na Constituição de 1988 e na estabilização de 1994. Ela poderia enaltecer os avanços conduzidos pelo seu grupo político, dentro de um contexto mais amplo, mas o melhor seria fazer um discurso não eleitoreiro. Há momento para tudo debaixo do céu, e aquele não era de campanha política.
A pesquisa da CNI-Ibope confirmou o movimento, ainda não encerrado, de perda de apoio da presidente Dilma. Parte dessa perda se deve à enorme distância entre a maneira como sua campanha eleitoral a apresentou e o que ela demonstrou ser: a gerente que tudo administraria com competência e a estadista em movimento constante num país de trens modernos e ágil mobilidade não têm relação com a realidade dos últimos anos. Os obstáculos ficaram mais fortes, a crise de mobilidade urbana e interurbana se agravou, e o governo de 39 ministérios tem se mostrado cada vez menos administrável. Outra desdita foi jogada sobre ela por seus próprios companheiros com a campanha para que volte o ex-presidente Lula.
A economia está dando sinais cada vez mais eloquentes de dificuldade. Esta semana foi a de ficar de frente com o crescimento de 70% do déficit em transações correntes; e com mais uma encenação de corte de gastos. Depois de espremido, nada ficou da redução das despesas anunciada pelo ministro Guido Mantega e pela ministra Miriam Belchior. Até o Banco Central tinha pedido que o governo anunciasse de forma clara as metas fiscais e como se chegou a esse número. Dizer que vai cortar em gastos de viagens, em material de limpeza, em contas de luz, e na decisão de enviar menos recursos para o deficitário INSS é não informar com clareza a situação fiscal do país

Fascismo em nome de Deus - DRAUZIO VARELLA

FOLHA DE SP - 27/07

Um Estado laico tem direito de submeter a sociedade inteira a uma minoria de fanáticos?


Há manhãs em que fico revoltado ao ler os jornais.

Aconteceu segunda-feira passada quando vi a manchete de "O Globo": "Pressão religiosa", com o subtítulo: "À espera do papa, Dilma enfrenta lobby para vetar o projeto para vítimas de estupro que Igreja associa a aborto".

Esse projeto de lei, que tramita desde 1999, acaba de ser aprovado em plenário pela Câmara e pelo Senado e encaminhado à Presidência da República, que tem até 1º de agosto para sancioná-lo.

Se não houver veto, todos os hospitais públicos serão obrigados a atender em caráter emergencial e multidisciplinar as vítimas de violência sexual.

Na verdade, o direito à assistência em casos de estupro está previsto na Constituição. O SUS dispõe de protocolos aprovados pelo Ministério da Saúde especificamente para esse tipo de crime, que recomendam antibióticos para evitar doenças sexualmente transmissíveis, antivirais contra o HIV, cuidados ginecológicos e assistência psicológica e social.

O problema é que os hospitais públicos e muitos de meus colegas, médicos, simplesmente se omitem nesses casos, de forma que o atendimento acaba restrito às unidades especializadas, quase nunca acessíveis às mulheres pobres.

O Hospital Pérola Byington é uma das poucas unidades da Secretaria da Saúde de São Paulo encarregadas dessa função. Lá, desde a fundação do Ambulatório de Violência Sexual, em 1994, foram admitidas 27 mil crianças, adolescentes e mulheres adultas.

Em média, procuram o hospital diariamente 15 vítimas de estupro, número que provavelmente representa 10% do total de ocorrências, porque antes há que enfrentar as humilhações das delegacias para lavrar o boletim de ocorrência.

As que não desistem ainda precisam passar pelo Instituto Médico Legal, para só então chegar ao ambulatório do SUS, calvário que em quase todas as cidades exige percorrer dezenas de quilômetros, porque faltam serviços especializados mesmo em municípios grandes. No Pérola Byington, no Estado mais rico da federação, mais da metade das pacientes vem da Grande São Paulo e de municípios do interior.

Em entrevista à jornalista Juliana Conte, o médico Jefferson Drezzet, coordenador desse ambulatório, afirmou: "Mesmo estando claro que o atendimento imediato é medida legítima, na prática ele não acontece. Criar uma lei que garanta às mulheres um direito já adquirido é apenas reconhecer que, embora as normas do SUS já existam, o acesso a elas só será assegurado por meio de uma força maior. Precisar de lei que obrigue os serviços de saúde a cumprir suas funções é uma tristeza".

Agora, vamos ao ponto crucial: um dos artigos do projeto determina que a rede pública precisa garantir, além do tratamento de lesões físicas e o apoio psicológico, também a "profilaxia da gravidez". Segundo a deputada Iara Bernardi, autora do projeto de lei, essa expressão significa assegurar acesso a medicamentos como a pílula do dia seguinte. A palavra aborto sequer é mencionada.

Na semana passada, o secretário-geral da Presidência recebeu em audiência um grupo de padres e leigos de um movimento intitulado Pró-Vida, que se opõe ao projeto por considerá-lo favorável ao aborto.

Pró-Vida é o movimento que teve mais de 19 milhões de panfletos apreendidos pela Polícia Federal, na eleição de 2010, por associar à aprovação do aborto a então candidata Dilma Rousseff.

Na audiência, o documento entregue pelo vice-presidente do movimento foi enfático: "As consequências chegarão à militância pró-vida causando grande atrito e desgaste para Vossa Excelência, senhora presidente, que prometeu em sua campanha eleitoral nada fazer para instaurar o aborto em nosso país".

Quem são, e quantos são, esses arautos da moral e dos bons costumes? De onde lhes vem a autoridade para ameaçar em público a presidente da República?

Um Estado laico tem direito de submeter a sociedade inteira a uma minoria de fanáticos decididos a impor suas idiossincrasias e intolerâncias em nome de Deus? Em que documento está registrada a palavra do Criador que os nomeia detentores exclusivos da verdade? Quanto sofrimento humano será necessário para aplacar-lhes a insensibilidade social e a sanha punitiva?

Dilma não pode ser melhor que seu governo - ROLF KUNTZ

O ESTADO DE S. PAULO - 27/07


Nenhum governante, diz o bom senso, pode ter desempenho melhor que o de seu governo. No caso do Brasil, trata-se de uma administração fracassada, com dois anos e meio de estagnação econômica, inflação alta, contas públicas em mau estado, contas externas em deterioração e resultados gerais muito inferiores aos de outros latino americanos. Além disso, as possibilidades de melhora até o fim do mandato parecem muito escassas. Mas o senso comum dos brasileiros tem algumas peculiaridades notáveis. Parte substancial dos cidadãos considera a presidente Dilma Rousseff melhor que seu pífio governo. Enquanto só 31% avaliam o governo como ótimo ou bom, 45% aprovam o desempenho da presidente. Os dados são da última pesquisa CNI-Ibope e confirmam, de modo geral, as tendências indicadas em sondagens recentes.

Quanto à avaliação da presidente, é importante ressaltar o detalhe: a pergunta é sobre sua maneira de governar. Não se trata de sua pessoa. O entrevistado poderia considerá-la honesta, esforçada, gentilíssima, simpática e movida pelas melhores intenções, mas frustrada em seu empenho por divindades invejosas. O Olimpo é um ninho de maldades. Mas a história é outra, e aí está o dado intrigante. O modo de agir da chefe de governo é avaliado mais favoravelmente que a ação do próprio governo, embora ela seja responsável pela escolha dos ministros e, como todos sabem, centralizadora, mandona e habituada a distribuir broncas e a maltratar seus subordinados.

Essa notável dicotomia entre o presidente e a administração federal pode parecer misteriosa, mas é um velho componente da política nacional. Para milhões de brasileiros, houve sempre uma distância imensa entre a figura de Getúlio e as práticas de seus subordinados. O presidente João Figueiredo sempre foi mais popular que seu governo, embora seu período tenha sido marcado por uma recessão pavorosa, com muito desemprego, empobrecimento e fome. Nessa fase, muitas famílias só conseguiram consumir alguma proteína de origem animal, de vez em quando, porque supermercados passaram a vender separadamente asas de frango. Mas o presidente nunca foi tão mal avaliado quanto qualquer de seus ministros.

Apesar da estranha separação entre o Palácio do Planalto e os ministérios, ainda mais estranha no caso de uma presidente centralizadora, os brasileiros parecem ter noções claras de alguns dos principais defeitos da administração. A avaliação dos impostos e do uso do dinheiro público é inequívoca. Os entrevistados deveriam dizer se, em sua opinião, "o governo já arrecada muito e não precisa aumentar mais os impostos para melhorar os serviços públicos". Essa dupla afirmação foi classificada como total ou parcialmente verdadeira por 87% dos consultados. Para 82%, "a baixa qualidade dos serviços públicos deve-se mais à má utilização dos recursos públicos do que à falta deles". Para 91%, os impostos são elevados ou muito elevados.

A presidente discorda. Na quinta-feira, quando a CNI divulgou a nova pesquisa realizada pelo Ibope, o Diário Oficial registrou o veto ao projeto de extinção da multa adicional de 10% do FGTS nos casos de demissão sem justa causa. Segundo a mensagem presidencial, os parlamentares deixaram de indicar fontes para compensar a perda de cerca de R$ 3 bilhões e, além disso, a falta desse dinheiro forçaria o governo a reduzir investimentos em infraestrutura e no programa habitacional.

As duas alegações são furadas. A multa adicional, paga diretamente ao governo, foi criada para compensar o custo de esqueletos fiscais deixados pelos Planos Verão e Collor 1. Essa função, segundo informou há um ano e meio a Caixa Econômica, gestora do fundo, estaria concluída em julho do ano passado. Não tem sentido, portanto, cobrar dos congressistas a indicação de como compensar a "perda". Em segundo lugar, o governo jamais deveria ter tratado essa receita como recurso permanente.

Esse erro, uma velha tendência da administração brasileira, toma-se mais forte num governo propenso à confusão na área fiscal. A maior parte dos cidadãos acompanha muito de longe as aventuras da administração. Acaba sentindo, depois de algum tempo, os efeitos dos erros acumulados, como os problemas de saúde, segurança e educação. Nenhuma das grandes questões apontadas pelos entrevistados é nova na imprensa independente.

A comparação entre o governo atual e o do presidente Lula é outra aparente esquisitice revelada pela pesquisa. Para 46% dos entrevistados, o governo da presidente Dilma Rousseff é pior que o do antecessor. Em junho, 25% dos consultados haviam expressado essa opinião. Essa avaliação seria mantida, se as pessoas se dispusessem a pensar alguns minutos?

Afinal, o presidente Lula quase se limitou a aproveitar, durante a maior parte de seus oito anos, da herança de reformas deixada pela administração anterior e de um quadro internacional muito favorável até o fim de 2008. Elevou o salário mínimo, transferiu renda com recursos públicos e ampliou o mercado interno, sem nada ter feito para fortalecer a capacidade produtiva do País.

Sua melhor realização foi também a mais fácil. Ele jamais enfrentou para valer as tarefas mais complicadas. Além disso, rejeitou a proposta do ministro Antônio Palocci de iniciar um programa sério de equilíbrio das contas públicas. A presidente Dilma Rousseff apenas manteve o estilo de seu antecessor. Ao insistir nesse caminho, acelerou a desorganização das contas federais, alimentou a inflação e deixou a economia estagnar-se, porque as fontes internas e externas de dinamismo estavam esgotadas. "Dilma não é mais do que uma extensão da gente", disse Lula a companheiros, na terça-feira, num aparente impulso de veracidade. Não faz sentido, neste caso, avaliar a extensão sem levar em conta sua fidelidade à origem.

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