Entrevista:O Estado inteligente

sábado, fevereiro 23, 2008

Livros Riquistão, de Robert Frank

Viagem ao país da extravagância

Um guia para quem deseja conhecer o Riquistão – a terra
virtual em que vivem os novos ricos americanos


Jerônimo Teixeira

Oren Slor
The Producer, tela do pintor John Currin, o mais cáustico observador da elite americana: fortunas instantâneas
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Trecho do livro


"Os ricos são diferentes de você e de mim", escreveu F. Scott Fitzgerald no conto The Rich Boy, de 1926. "Sim, eles têm mais dinheiro", retrucou seu amigo e rival Ernest Hemingway. O jornalista americano Robert Frank, autor de uma coluna sobre riqueza no The Wall Street Journal, acha que Fitzgerald está com a razão. Os ricos, por definição, têm mais dinheiro – mas eles ainda se distinguem da média (ou da classe média) por uma série de características culturais e comportamentais. Nos Estados Unidos, os super-ricos teriam se distanciado da sociedade em geral, a ponto de hoje viverem em uma ilha de privilégio, um país sem fronteiras, batizado por Frank no título de um saboroso livro recém-lançado no Brasil: Riquistão (tradução de Alessandra Mussi; Manole; 248 páginas; 49,90 reais). É uma turma de fato muito diferente, às vezes exótica, que desfila pelo país que Frank inventou. O novo rico não se contenta apenas em ter seu jatinho particular: ele faz questão de ter um assento de couro de jacaré na privada do avião.

A riqueza é um tema complicado, repleto de armadilhas para quem deseja retratá-la com objetividade. De um lado, há o impulso fácil de atribuir uma mancha moral a todos os ricos, de culpá-los pela pobreza e por todos os males do mundo. E existe também a sedução oposta: o deslumbramento diante do glamour dos endinheirados. Frank escapou habilmente das duas arapucas. Nem heróis, nem vilões, os personagens de Riquistão formam uma nova geração de ricos, que tomou o lugar dos herdeiros das velhas fortunas. São os beneficiários de uma era de inovação tecnológica e fluxo de capitais sem precedente na história dos Estados Unidos e do mundo. Muitos fizeram fortunas no fim dos anos 90, antes que estourasse a chamada "bolha" da internet, que elevou às alturas as ações de empresas ligadas à rede (o estouro da bolha, é claro, também arruinou muita gente – e há um capítulo melancólico em Riquistão sobre um ex-bilionário que viu suas ações virar pó em 2000 e hoje vive endividado). Mas não é só a internet que produz fortunas. Milhões, às vezes bilhões, foram acumulados com brinquedos para piscina, bibelôs de porcelana e xampus.

Nunca houve tantos ricos nos Estados Unidos. Só em 2005, surgiram 227 000 novos milionários no mercado financeiro americano. Um ano antes, pela primeira vez na história, a população de milionários nos Estados Unidos ultrapassou a da Europa inteira. Esse novo contingente de ricaços tem uma mentalidade muito diversa da dos magnatas legendários do século XIX e início do século XX. Os grandes heróis do capitalismo americano, gente como John D. Rockefeller ou Henry Ford, zelaram para que os impérios que construíram durassem por gerações. Os ricos de hoje, ao contrário, abraçaram a natureza volátil do capital: montam empresas já de olho na possibilidade de vendê-las por uma nota preta assim que se apresentar a oportunidade.

Com base em dados de consultorias e do banco central americano (Fed), Frank calcula que existam cerca de 7,5 milhões de lares americanos com patrimônio entre 1 milhão e 10 milhões de dólares – mas esse é apenas o "baixo Riquistão", a classe mais chinfrim do país. No topo da pirâmide, estão cerca de 400 bilionários (em 1985, existiam apenas treze). Esse crescimento da riqueza trouxe pressões extras sobre a classe média alta, que se endivida na tentativa de emular os mais ricos. Os riquistaneses, afinal, são praticantes do que o economista americano Thorstein Veblen chamou de "consumo conspícuo" (veja o quadro abaixo): os produtos que eles compram servem sobretudo para propagandear a afluência do proprietário. Frank conta o caso de um ricaço de Palm Beach que se tornou alvo de deboche de seus pares por presentear a namorada com um Mercedes SLK de 50.000 dólares – e teve de trocá-lo pelo modelo SL, de 110.000 (em tempo: lançado nos Estados Unidos no ano passado, Riquistão não diz nada a respeito do impacto da recente crise imobiliária americana sobre os novos ricos. Mas, no blog que Robert Frank mantém no site do The Wall Street Journal, já se atestou uma queda de 52% nas vendas da Jaguar no mês passado, em comparação com janeiro de 2007).

A competição ostensiva estende-se também ao tamanho das mansões e dos iates. Essa briga de peixes grandes inflaciona o mercado de imóveis e planos de saúde, por exemplo, o que prejudica os mais pobres e aumenta a desigualdade. Mas os economistas também falam de um fenômeno chamado trickle down (algo como "pingadinho para baixo"): as orgias de consumo desenfreado dos super-ricos criam empregos e derramam riqueza para os que estão abaixo. Riquistão não dá uma palavra final sobre esse caráter ambivalente da riqueza – mas o tom do livro é otimista. Riqueza produz mais riqueza: Frank diz que já viu um pedreiro entrar em uma revendedora Ferrari para comprar um carro. Havia feito uma pequena fortuna construindo muros e pátios de mármore para os ricos.

Teoria da festança

Em Riquistão, o jornalista americano Robert Frank cita Thorstein Veblen (1857-1929) para explicar a compulsão dos ricos por comprar brinquedinhos de luxo – iates, carros, relógios de 600 000 dólares. A referência a Veblen tornou-se obrigatória sempre que se fala nos hábitos dos ricaços. Em seu primeiro livro, A Teoria da Classe Ociosa, de 1899, o economista americano cunhou a expressão "consumo conspícuo" para definir o pendor exibicionista tão comum aos milionários. "Por ser o consumo de bens de maior excelência prova de riqueza, ele se torna honorífico", dizia Veblen. As festanças promovidas pelos ricos são um bom exemplo: sua função primordial é demonstrar que o anfitrião pode desperdiçar recursos. O objetivo não é reunir os amigos, mas impressionar os rivais. A Teoria da Classe Ociosa está mais para um ensaio etnográfico sobre a riqueza do que para uma obra de análise econômica. As tendências teóricas heterodoxas de Veblen, somadas a seus modos excêntricos, dificultaram a carreira acadêmica do autor. Descendente de noruegueses que só aprendeu inglês na escola e falava com sotaque, Veblen mostrava pouco apreço pelos alunos e perdeu posições em universidades importantes por causa de seus escandalosos casos extraconjugais. Ele passou os últimos três anos de vida recluso em um chalé nas montanhas da Califórnia.


LIVROS

Trecho de Riquistão, de Robert Frank

1
CAMPO DE TREINAMENTO DE MORDOMOS

Treinamento Doméstico para os Novos-ricos

Dawn Carmichael está compenetrada segurando dois pratos de robalo em crosta de amêndoas ao molho marroquino. A moça loira, ex-barista da Starbucks, veste conjunto azul e camisa branca, com um guardanapo dobrado em pregas sobre o braço esquerdo. Ela está alinhada com outros três empregados na cozinha, que lembra uma caverna, da Starkey Mansion, uma opulenta construção georgiana no centro de Denver. Quando receber o sinal – duas batidas na porta da cozinha –, o grupo entrará na sala de jantar, cumprimentará os doze convidados e começará a primeira apresentação pública do Balé de Serviço.

O Balé de Serviço é uma complexa rotina em que todos os garçons devem servir os convidados em perfeita sincronia, o que exige horas de ensaio. Trata-se de uma das habilidades mais difíceis ensinadas na Starkey Mansion, mais conhecida como Campo de Treinamento de Mordomos.

A srta. Carmichael visualiza a rotina: servir à esquerda, dar dois passos para a direita, passar o segundo prato da mão direita para a esquerda e servir novamente. Ao atender a mesa, ela deve inclinar-se o suficiente para colocar o prato delicadamente, sem se aproximar demais para não incomodar os convidados. Depois de servir, tem de dar um passo para trás, aguardar o olhar dos outros garçons e sair da sala no sentido anti-horário.

Cada passo deve parecer uma dança coreografada, cujo clímax é chamado "cruzamento" – um pas de deux com pratos, no qual os mordomos deslizam o segundo prato da mão direita para a esquerda girando rapidamente o corpo, criando a ilusão de que o prato está suspenso no ar enquanto passa de uma mão para a outra.

O Balé de Serviço foi desenvolvido para demonstrar todas as qualidades desejáveis de um futuro mordomo – disciplina, agilidade, equilíbrio e intimidade com louças e talheres – e consiste em uma das tarefas mais difíceis ensinadas no Campo de Treinamento de Mordomos.

Quatro vezes ao ano, aspirantes a mordomo de todo o país se reúnem no campo de treinamento em Starkey, cujo nome oficial é Starkey International Institute for Household Management [Instituto Internacional de Administração Doméstica Starkey]. A missão do instituto: formar mestres nos cuidados e na alimentação dos ricos. Os alunos passam oito semanas na mansão cozinhando, limpando, polindo, tirando o pó, lavando e dobrando. Aprendem a passar punhos franceses em segundos, deixando-os impecáveis. Aprendem a cortar um charuto Pardona 1926, a tirar o pó de uma pintura a óleo De Kooning e a combinar um chardonnay com notas de carvalho com um frango caipira assado.

Aprendem quanto tempo leva para limpar uma mansão de quase 4.200 m2 (entre vinte e trinta horas, dependendo dos objetos de arte e antigüidades), onde encontrar lençóis de 1.020 fios (www.kreiss.com) e como pedir um sorvete Chunky Monkey da Ben & Jerry à meia-noite se o patrão estiver em um iate no Mediterranean (serviço de concierge britânico). Os futuros profissionais saberão como dividir uma casa de mais de 2.700 m2 em "zonas" para limpeza e manutenção. Criarão "coleções de artigos de papelaria" – envelopes e papéis de carta exclusivos desenvolvidos especialmente para refletir a riqueza e o status do proprietário da residência. Aprenderão que não se guardam estolas de zibelina em armários de cedro (esse tipo de madeira as resseca) e que um automóvel Bentley nunca, jamais, deve entrar em um lava-rápido.

A maior parte dos alunos mora na mansão durante o treinamento, seguindo as rígidas regras de Starkey. Todos usam uniforme cáqui, camisas brancas bem-cortadas, blazers azuis e sapatos marrons. Ninguém é chamado pelo primeiro nome; todos são "sr." ou "srta.", para ressaltar a importância dos limites. Os alunos devem se levantar sempre que um visitante entra na sala. Quando há uma xícara de café a ser cheia, uma colher a ser polida ou um visitante a ser cumprimentado, os estudantes de Starkey entram rapidamente em ação. Os futuros mordomos estão tão focados em servir que, quando um intervalo é anunciado, levantam-se de seus lugares para encher os copos de água dos colegas.

No fim do curso, os aspirantes dominarão a arte de paparicar os privilegiados. Os ricos, como aprenderão, gostam de suas embalagens de xampu e pasta de dentes sempre cheias até a boca. Se os patrões tiverem quatro residências, provavelmente exigirão que as gavetas das cômodas e os armários dos banheiros sejam organizados exatamente da mesma forma em todas as casas para que não tenham de perder tempo procurando meias ou comprimidos. Aprenderão também que os ricos têm pavor de germes. "Eles têm mania de saúde", disse Raymond Champion, instrutor-chefe de Starkey, parado em frente ao quadro branco na sala de aula no porão da mansão. "São pessoas muito bem-sucedidas e que, podem apostar, querem viver para sempre. Como irão trabalhar com indivíduos muito atentos aos germes, é melhor vocês se acostumarem, pois tais microorganismos são enormes nesse mundo."

Nenhum mordomo sai de Starkey sem conhecer as outras duas prioridades dos milionários – animais de estimação e coleções. Em Starkey, essas são as chamadas categorias BYJ (bet your job, algo como "podem lhe custar o emprego").

Durante uma aula, Champion contou a história de uma família sulista que tinha uma mansão repleta de apitos para atrair pássaros, e uma das missões do mordomo era limpar esses objetos diariamente. Havia ainda o sujeito com quinhentos carros que tinham de ser lavados à mão e a herdeira que mantinha um celeiro lotado de gatos e três empregados em período integral encarregados exclusivamente de manter o local limpo, além de um serviçal responsável por jogar sementes para atrair pássaros ao redor do celeiro, o dia todo, a fim de entreter os gatos.

"O rapaz que alimentava os pássaros ganhava mais do que qualquer um de nós", contou o instrutor-chefe.

Acima de tudo, os alunos de Starkey aprendem a nunca julgar os patrões, chamados de "senhores". Se um senhor quiser alimentar seu Shih-tzu com fatias de filé mignon refogado todas as noites, o mordomo deverá servir o prato ao animal com um sorriso. Se um senhor estiver em Palm Beach e quiser enviar seu jato particular para Nova York a fim de buscar uma garrafa de Chateau LaTour de sua adega em South Hampton, o mordomo tem de tomar as providências necessárias sem questionar.


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