O Globo |
14/2/2008 |
O presidente da República e a primeira-dama vão a um restaurante estrelado, fazem uma refeição de classe, tomam uísque e vinhos. Como não há jantar grátis, restam três possibilidades: 1. o presidente paga a conta com seu dinheiro pessoal, na física; No primeiro caso, está tudo muito bem resolvido. Ninguém tem nada com isso. Pode haver algum ruído - do tipo "o governante de um país pobre não deveria freqüentar restaurante tão caro" - mas é pura má vontade. Mais ou menos como dizer que Barack Obama, por representar minorias pobres, não poderia usar ternos tão bem cortados. A segunda possibilidade traz uma questão ética. O presidente e a primeira-dama não podem aceitar cortesias sem mais nem menos. Mesmo porque esse tipo de coisa tende a sair do controle. O sujeito começa aceitando um inocente Romanée Conti no jantar e termina recebendo um apartamento de uma empreiteira. Havendo óbvios conflitos de interesses - todos os presenteadores são, no mínimo, pagadores de impostos e dependem de algum tipo de regulamento público - é preciso que o sistema de presentes e cortesia seja regulamentado. Isso se faz no mundo privado e no público. No momento atual do Brasil, talvez o mais prudente fosse simplesmente proibir que o presidente e a primeira-dama recebam qualquer tipo de presente no âmbito privado. Se acharem isso exagerado, será preciso estipular um valor máximo para os presentes e/ou determinar que seja registrado. O registro, em si, já inibe. "Um vestido de renda (ou um terno de lã de seda) recebido do estilista tal, no valor de..." No caso da troca de presentes entre autoridades, em cerimônias oficiais, não há problema: a lembrança nunca é da pessoa física do presidente ou da primeira-dama, mas do governo. Tem de ser registrado no almoxarifado e pertence ao gabinete de trabalho ou à residência presidencial, não a seus eventuais ocupantes. A terceira possibilidade - quando o governo paga a conta - levanta questões éticas, políticas e econômicas. Por exemplo: o governo deve pagar o jantar do presidente quando este não está a serviço, mas em um óbvio momento de lazer pessoal? Não - é a resposta republicana clássica. Outros, entretanto, argumentam que um presidente, a rigor, nunca está a passeio. Trabalha mesmo quando está de férias ou em casa no domingo, porque está sempre disponível para discutir um assunto com um ministro, assinar um papel, receber um parlamentar. Ou seja, seu emprego é 24 horas. Decorrem daí duas conclusões. A primeira é que, sendo sua vida permanentemente pública, tem de ser inteiramente custeada pelo governo. Simples assim. Se o patrão, no caso, o povo que paga os impostos, quer ter um funcionário 24 horas, tem que pagar por isso. (Na Espanha, por exemplo, toda vez que se debate sobre os gastos da família real, o pessoal responde: querem ter rei e rainha? Pois, paguem por isso.) Mas decorre daí a segunda conclusão, obrigatória: se o presidente está sempre a serviço, então tudo o que faz é público. Todas as suas despesas, portanto, têm que ser registradas e publicadas, pois o patrão tem o direito de saber o que o funcionário faz com os recursos que coloca à sua disposição. E isso inclui o dinheiro gasto em restaurantes. Além disso, o governo só pode custear os gastos do presidente e da primeira-dama, que é uma representação oficial, mas não os de seus familiares. Filhos do presidente, por exemplo, não deveriam voar de graça no avião presidencial, se não estiverem a serviço do Estado. É óbvio, mas convém registrar: o avião é público, não do presidente. Se há ameaças aos filhos do casal presidencial, o governo deve pagar a segurança deles. Isso porque a ameaça decorre diretamente na função pública dos pais. Mas o governo só pode pagar as despesas da segurança, não os gastos dos filhos - e todas as despesas têm de ser publicadas. Saber que os agentes de segurança de tal pessoa comem dois quilos de carne por semana não ameaça ninguém. Tempos atrás, em conversa com militares do Exército, que se queixavam da divulgação de itens de despesa de general e discutiam o que se podia ou não podia ver com a verba do gabinete, ouvi uma boa resposta: só pode fazer aquilo que pode sair na imprensa sem causar constrangimento. |
Entrevista:O Estado inteligente
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