Entrevista:O Estado inteligente

domingo, setembro 16, 2007

Vitória da mediocracia Gaudêncio Torquato

A História das nações é um continuum de grandezas e vilezas, civismo e apatia, vigílias e sonhos, energias e fumaças, primaveras e outonos. Quando a pátria, que simboliza o sincronismo de espíritos e a comunhão de esperanças, adormece dentro do país - neste caso, uma simples expressão geográfica - fenecem os ideais, a crença nas instituições, as utopias, a força de vontade para mudar o rumo das coisas. Nesse momento, a democracia deixa de ser o sopro para alimento das grandes virtudes para se transformar em fermento da decadência moral dos governantes. É quando dá lugar ao conceito de mediocracia, cuja definição transparece no pensamento de Platão quando diz que "a democracia é o pior dos governos, mas o melhor entre os maus". Em todos os tempos da História se registram ciclos em que os malefícios da democracia suplantaram os benefícios. E isso ocorre nas ocasiões em que os entes políticos declinam de sua identidade, submetendo-se ao império da servidão.

O jogo democrático, lembre-se, não é imune às ignomínias e artimanhas dos jogadores que disputam a loteria do poder. Sob esse prisma, ao dizer que sua absolvição pelo Senado "é uma vitória da democracia", o senador Renan Calheiros não está errado. Esquece, apenas, que a vitória se deve ao demérito, e não ao mérito dos praticantes da democracia e ocorre em pleno outono da política. A batalha ganha pelo presidente do Senado é o atestado da derrota do conceito de pátria enquanto aspiração à grandeza e, ainda, a confirmação do Brasil como espaço a ser conquistado, lembrando a conquista do Eldorado, os primórdios da colonização e a disputa pelas riquezas. Venceram os medíocres, os bárbaros, os confabuladores da velha política, a lei do mais forte e, claro, o PT, que o presidente Lula considera o partido mais ético do País. Já a Câmara Alta (designação esdrúxula), que alguns consideram ter assinado o seu atestado de morte, continuará "vivinha da silva". Poderá passar um tempo na UTI da "avacalhação", como alguém a definiu, certamente pensando nas vacas do senador Calheiros, mas resistirá e continuará a cometer desatinos. Primeiro, porque parcela significativa de seus membros acredita que a banalização da imoralidade acaba insensibilizando os cidadãos e estes esquecerão os fatos ao longo do tempo. Confia-se na hipótese de que a memória do brasileiro é curta e a crônica da criminalidade política, de tão densa, acabará substituindo o affaire anterior pelo mais recente.

Há alguma verdade nisso. Basta ver como a quadrilha dos mensaleiros, que parece coisa vencida, só agora começa a ser esquadrinhada pelo Supremo Tribunal Federal. Há um fenômeno, porém, que tende a ser importante eixo de mobilização social, a partir de setores organizados. Trata-se de uma opinião pública virtual, em processo de intensa expansão, e que deriva do boom crítico-informativo da internet. A massa discursiva que se veicula, diariamente, na malha eletrônica ganha força e poder de influência, arregimentando setores, relembrando fatos e circunstâncias, nomeando agentes políticos, enquadrando figurantes nas histórias. Há, portanto, ao lado de uma opinião pública global - cujos limites e impacto encontram dificuldades para um mapeamento eficaz, em função do campo de abstração aberto por alguns de seus componentes -, uma esfera de formação de pensamento mais palpável, até porque se expressa, diariamente, por meio de redes sociais e blogs, que funcionam como porta-vozes de uma coletividade menos dispersa e mais homogênea. Trata-se de uma formidável bateria de esquentamento do material jornalístico veiculado na mídia massiva. Esta é a nova força a ser considerada no observatório da cena social e política do País. Para quem despreza a teoria dos círculos concêntricos - irradiação de ondas críticas do meio para as margens sociais -, vale conferir: essa locomotiva começa a puxar um novo trem na linha do pensamento.

A absolvição de Renan macula a imagem dos representantes em todas as esferas (contribui para consolidar a imagem de que todos os políticos são iguais), amplia a distância entre a comunidade e o sistema político e corrobora as experiências de democracia direta, que se expandem na esteira das organizações sociais. A lógica para a hipótese se assenta na idéia de que, se os políticos se afundam no poço da decadência moral, resta, ainda, um lugar que abriga virtudes: os núcleos de referências de grupos, como clubes, movimentos, sindicatos, associações profissionais, igrejas e credos. O vácuo entre a política tradicional e a sociedade é, portanto, preenchido por cadeias organizadas. Tal fato indica a tendência para se buscar nova modelagem política, comprometida com valores do que podemos chamar de "democracia da vizinhança". Há, ainda, um ator que tira proveito das coisas ruins que ocorrem ao seu redor: Luiz Inácio. Quanto pior a política, melhor para o presidente. O homem nasceu, mesmo, com a estrela petista virada para a Lua. Enquanto sobra sopapo para deputados nos corredores do Senado, estupidez que desmoraliza a classe política, Lula desfila em carruagem pela Dinamarca. E burila a imagem: distante das coisas ruins, milagreiro, bolso aberto para os pobres, recebido com pompa e circunstância por reis e rainhas. Reina sobre os destroços do Congresso.

Não se pense, porém, que Renan tenha entrado no céu. Tem ainda dois processos a enfrentar. Resistirá à obstrução da oposição e renunciará à presidência da Casa? É bem possível que ceda os anéis para não perder os dedos. Depois da absolvição, foi rezar na Igreja de São Judas Tadeu. Renan Filho, prefeito de Murici (AL), em Juazeiro, na Bahia, pagou promessa ao padre Cícero. Nossos políticos, submetidos ao fogo das denúncias, têm a mania de arrumar parceria com os santos. Não se conhece um milagre sequer que tenha salvado político. Até porque os santos fazem ouvidos moucos às baixezas da política.

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