Marchinhas contra o abismo
RIO DE JANEIRO - Há uma certa sensação de abismo no ar. Nunca antes neste país se viu tanta liberdade -o Congresso, os jornais, os tribunais, os botequins, os púlpitos, as bocas-de-fumo, os bordéis, está tudo aberto e funcionando. E, no entanto, tem-se a impressão de que isso não basta para fazer com que as coisas mudem.
O Senado absolve Renan Calheiros e deixa o país com gosto de perereca na boca; os homens de bem reagem, chamam seus absolvidores de sacripantas para baixo e ninguém se ofende. O governo precisa de um imposto imoral para cobrir seus rombos também imorais; a grita contra é de ensurdecer, mas, como se fosse uma fatalidade divina, o tal imposto será -com trocadilho- imposto do mesmo jeito. Os exemplos abundam.
Talvez os instrumentos tradicionais para espernear e para lutar pelo pudor público já não sejam eficientes. Eliminada a hipótese de jogar bombas ou ovos, só vejo uma saída: as marchinhas de Carnaval.
De 1930 a 1960, elas ajudaram o Brasil a desafogar. Entre outras questões, as marchinhas foram contra Brasília, os funcionários públicos ociosos e os puxa-sacos, e a favor de Getúlio Vargas, dos carecas e do rinoceronte Cacareco. Eu sei, nem todos esses itens eram fundamentais, mas os tempos também eram outros, menos cínicos.
Pois já se pode usar de novo a marchinha para protestar. A Fundição Progresso, na Lapa carioca, está promovendo seu terceiro concurso nacional de marchinhas. Para quem quiser se aventurar, os vencedores levam prêmio em dinheiro, matéria no "Fantástico" e CD na Som Livre. As inscrições (www.fundicao.org) terminam no dia 11 de outubro e já passam de 2.000.
Se, no próximo Carnaval, uma marchinha abortar uma fraude ou derrubar um ministro, não se esqueça: eu avisei.
Entrevista:O Estado inteligente
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