Falta um conselheiro Lafayette no Congresso Nacional. O jurisconsulto mineiro (1834-1917), famoso por suas tiradas, irritando-se, um dia, com os constantes apartes do senador Diogo Velho, brandiu a expressão usada por Aulo Pérsio no Senado romano: “Sacer locus, puer, extra mingite.” Encafifado, o senador Diogo valeu-se do barão de Cotegipe, ao seu lado, que cochichou a tradução: “O lugar é sagrado, menino, vá urinar lá fora.” Nunca mais foi incomodado pelo paraibano de Pilar, na Paraíba, conhecido como visconde de Cavalcanti. Nessa época de figuras proeminentes, o senador Rui Barbosa se prestava ao dever de mostrar aos pares que, entre março e outubro de 1896, ganhara na advocacia 680:000$. A honestidade era posta às claras. Hoje, as Casas Legislativas são referências depreciadas. Os grandes embates cedem lugar a uma linguagem tatibitate, centrada na defesa ou no ataque de atores, ou no repique da agenda ditada pelo Executivo. Ao Congresso falta autoridade. E sobra desleixo no cumprimento de preceitos que regem os Poderes, entre os quais a independência e a harmonia, nos termos da Carta Magna. Por ser cada vez mais rala a aura de grandeza que circunda os políticos, a instituição é a menos admirada pelos brasileiros, com 2% de credibilidade.
A constatação poderia ser uma obviedade, não fosse o fato de que é o Poder Executivo que mais desmoraliza o Poder Legislativo. Torna-se patente que o presidencialismo, sob o mando lulista, faz gato e sapato do Senado e da Câmara, transformando-os em extensões do Planalto. Nenhum governante, desde os militares, fez uso da instituição de modo tão instrumental quanto o atual. Se a democracia passa por momentos de declínio nos quadrantes mundiais, em face de crises econômicas que baixam sua qualidade, no Brasil a corrosão democrática sofre maior impacto em função da identidade salvacionista assumida pelo presidente da República, que desnivelou a régua dos Poderes. O papel do Parlamento se estreitou. Nem o Senado representa bem os Estados nem a Câmara, os anseios do povo. São dois espelhos partidos. E, ao se apropriar da estabilidade econômica alcançada pelo País, cuja paternidade o tucanato não soube defender, o lulismo passou a refazer a História e a interferir de modo inusitado na esfera parlamentar.
Para jogar nos cofres quase R$ 40 bilhões gerados pela alíquota de 0,38% cobrada da CPMF, o governo chega ao cúmulo de revogar três medidas provisórias (MPs), jogando no lixo critérios da relevância e urgência, que fundamentam o uso do instrumento. A confusão jurídica e a perplexidade aumentam diante da insinuação de que as revogações das MPs podem não ser definitivas. Bastaria autorizar o rolo compressor governista a rejeitar, mais adiante, as revogações. Num dia, Lula usa a prerrogativa excepcional para legislar; no outro, vale-se da mesma arma para anular medidas anteriores (urgentes e relevantes); e, num terceiro movimento, pode manobrar para repor a instância inicial ou reapresentá-la com modificação. Um samba do crioulo doido. O artifício pode até ser legal, mas é imoral. A Câmara vira bagaço de laranja. Por trás da manobra está uma verbinha apreciável para encompridar o cobertor do “pai dos pobres”.
O custo subiu às alturas. Os aliados cobraram liberação de emendas e cargos federais. Sempre foi assim, diz-se. Mas, convenhamos, a situação, agora, é vergonhosa. Assiste-se a um estupro da moralidade. Como o País passa por momentos de extrema competitividade política, inflaciona-se o preço do apoio parlamentar. Dessa forma, a administração petista engendra a maior desconstrução do ideário político que já se viu no País. Há outro aspecto. A desconfiança nos políticos beneficia o mandatário-mor. As lealdades da massa convergem para quem lhes ofereça mais agrado e simbolize força para resolver problemas. Quem se der ao trabalho de examinar a planilha da governança desenhada pela administração constata que, ao lado das MPs, o lulismo usa todas as ferramentas com força legislativa, como projetos de lei do Executivo em regime de urgência, instruções normativas (que se multiplicam na Esplanada dos Ministérios), portarias e atos declaratórios sobre os mais diversos temas. É um arsenal nunca visto. Se quiserem resgatar a dignidade, Senado e Câmara terão de dar um basta ao imperialismo do Planalto, a partir de um dique para barrar as medidas provisórias, estabelecendo uma agenda própria, que vá além de coisas como voto aberto e extinção da figura do suplente de senador sem voto. Sem uma reforma política em profundidade, a mixórdia continuará.
Se o governo arrebenta as paredes do edifício político, cimenta a base organizada com massa argentária. Controla passos de entidades como MST e centrais sindicais. Uma obra de engenharia que custa milhões. No caso das centrais, o preço é uma legalização que abre caminho para polpudos recursos provenientes do Imposto Sindical. Aliás, recente aferição feita pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil mostra que 45% da cúpula do governo é sindicalizada. Eis aí mais uma faceta do projeto de poder do lulismo. Um cala-a-boca no sistema de “porta-vozes do caos” faz parte da armação. A ferocidade leonina da CUT virou miau de gato de estimação. O cutismo frui as delícias do poder. A UNE já não grita alto - nem mesmo tomou partido no affaire Renan Calheiros - porque está sob o domínio do PCdoB, partido a que pertence um irmão do presidente do Senado.
Não é de admirar, portanto, que nossa mais alta autoridade, poderosa, garanta ao primeiro-ministro espanhol, José Luis Zapatero, que pedirá a Bush para “resolver o problema da crise” e não “deixá-la atravessar o Atlântico e chegar ao Brasil”. Com tanto poder, dá-se o direito de abrir as portas do Senado e da Câmara quando e como quiser. E exigir das duas Casas que andem a reboque do Executivo. A isso, o conselheiro Lafayette certamente teria respondido com o bom e velho latim.
Entrevista:O Estado inteligente
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domingo, setembro 23, 2007
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