Prender e manter preso
O novo diretor da Polícia Federal diz que aprimorar
a qualidade das provas é a melhor forma de garantir
que os corruptos fiquem atrás das grades
Ronaldo Soares
Ana Araújo | "Se somarmos todos os furtos e |
Luiz Fernando Corrêa, o novo diretor da Polícia Federal, assumiu o cargo com a missão de liderar 13.454 homens, cuidar da vigilância de 16.886 quilômetros de fronteira e combater o crime organizado. Internamente, ele terá de enfrentar um mal difícil de extirpar da vida pública: a corrupção. Aos 49 anos – 27 deles dedicados à instituição –, Corrêa também terá como desafio manter o ritmo empreendido por seu antecessor, Paulo Lacerda, que comandou 412 ações em pouco mais de quatro anos. Sua principal meta é aprimorar a qualidade das provas produzidas nos inquéritos. "A prova tem de ser 101%. Contra isso não há quem possa se insurgir politicamente." Para ser bem-sucedido, ele precisará superar ainda a desconfiança de que sua indicação significaria a politização da PF, motivada por seu passado sindical e por suas supostas ligações com o ministro da Justiça, Tarso Genro. "Nunca fiz política partidária", afirma esse gaúcho de Santa Maria, que, com a cuia de chimarrão ao lado da mesa, concedeu a seguinte entrevista a VEJA.
Veja – A politização mina a eficiência de uma instituição como a Polícia Federal. Como combatê-la?
Corrêa – Não há politização na PF.
Veja – Mas o senhor mesmo admitiu que, ao ser sondado para ocupar o cargo, foi avisado de que sua indicação era apenas uma "tendência", dependia de acertos políticos.
Corrêa – Eu me referia à política administrativa. Assim como foi política a escolha que fiz de novos integrantes da cúpula da PF, como os delegados Roberto Troncon (diretor de combate ao crime organizado) e Romero Lucena (diretor executivo). Quantas pessoas eu não contrariei aqui dentro, porque tinham a expectativa de suceder ao Getúlio Bezerra ou ao Zulmar Pimentel, que ocupavam essas funções? Isso é política. Agora, foi política partidária? Não. Sou um quadro técnico. Trabalhei no governo de diversos presidentes da República e não ocupei cargos porque não tinha status funcional para tanto naquele momento. No governo do presidente Fernando Henrique Cardoso eu era o número 2 da superintendência do Distrito Federal. Na operação de desocupação da fazenda dele, quem deu a ordem de prisão dos sem-terra fui eu. Eu estava a serviço do FH? Não. Havia uma propriedade invadida e eu era o delegado da circunscrição. O maior atestado de que eu não tenho nenhuma ligação partidária foi minha relação com todos os estados da federação como secretário nacional de Segurança Pública. Nos Jogos Pan-Americanos, trabalhei com todos os estados. São Paulo, se percebesse nesse ato qualquer utilização partidária, teria liberado seus policiais? Ali eu fiz política de segurança pública.
Veja – No ano passado, o então ministro da Justiça, o chefe da PF, envolveu-se na quebra do sigilo do caseiro Francenildo Costa. No caso do "dossiê dos aloprados", a Polícia Federal mostrou-se dividida e houve até a tentativa de esconder a foto do dinheiro. Isso não é politização?
Corrêa – Você só se referiu ao escalão político. Você não viu o doutor Paulo Lacerda (ex-diretor da PF) nessas reuniões. Não foi ele. O papel político do Ministério da Justiça é do ministro.
Veja – Mas no caso do dossiê...
Corrêa – Não gostaria de me ater a casos da gestão anterior. Vamos falar daqui para a frente.
Veja – Como será?
Corrêa – Estou aqui sentado, estoura uma operação em qualquer lugar do Brasil e vem uma eventual pressão política. Não é somente a minha postura pessoal que impedirá isso. O que vai criar um anteparo é a qualidade da prova. Se ela for frágil, permitirá interpretação, poderá haver desconfiança de uso político da polícia. Mas, se ela for cabal, não tem papo, não tem interpretação. Contra um fato tecnicamente provado é até temerário alguém se insurgir politicamente. Essa é minha orientação aos diretores: nos inquéritos, principalmente os que forem contra policiais ou políticos, a prova tem de ser 101%. A blindagem da PF está na qualidade da prova.
Veja – O senhor e o ministro Tarso Genro viveram na mesma cidade, Santa Maria, no Rio Grande do Sul. O senhor também é ligado aos sindicatos de sua categoria. Tudo isso não demonstra uma ligação política?
Corrêa – O ministro nasceu em São Borja, fez sua vida em Santa Maria, mas é de uma geração adiante da minha. Eu me criei em Santa Maria, fui para Bagé, e de lá para Porto Alegre, para trabalhar na Polícia Federal. Ele foi meu prefeito lá, mas nunca tivemos nenhuma conversa. Só tivemos diálogos mais próximos quando ele já era ministro. Não existe vínculo anterior. Rechaço essa afirmação, não porque seja uma mácula, mas porque não procede. Sou sim filiado a todas as entidades de classe da polícia, mas não tenho nenhum vínculo com as centrais sindicais. E não faço política partidária. Nunca fiz.
Veja – Uma das críticas à PF é a tensão permanente entre grupos internos, o que favoreceria o surgimento de disputas...
Corrêa – O que existe aqui, como em qualquer instituição, são pessoas que pensam de forma diferente, e não grupos. A PF tem se notabilizado por resistir às influências políticas. Não há nenhum ato meu ligado ao PT no passado. Essas verdades sabidas que a imprensa produz é que são danosas. Fazem um vínculo meu com o partido porque ascendi ao posto de secretário nacional de Segurança Pública na gestão do ministro Márcio Thomaz Bastos. Fui nomeado por este governo, como fui feito agente no governo Figueiredo. Nem por isso posso ser tachado de homem da repressão.
Veja – Atribuem-se em parte a essas disputas internas casos como o ocorrido recentemente, em que ministros do Supremo Tribunal Federal desconfiaram que estavam sendo monitorados e levantaram suspeitas contra a PF.
Corrêa – Posso garantir que, se isso aconteceu, não partiu da Polícia Federal. A tecnologia que a PF utiliza foi toda feita para produzir provas, e não para fazer espionagem. A tecnologia que usamos permite que o sistema seja auditado a qualquer momento. Cada um que entra no programa fica registrado, não tem jeito. Essa questão foi apurada pela direção anterior e os resultados foram encaminhados ao Supremo, que considerou satisfatórias as informações.
Veja – É comum ouvir que a PF nunca trabalhou tanto e com tanta independência... Por que a PF começou a trabalhar com mais eficiência de uma hora para outra?
Corrêa – Tivemos, no primeiro governo do presidente Lula, com o ministro Márcio Thomaz Bastos e o doutor Paulo Lacerda, um fortalecimento da instituição. Mas a Polícia Federal não surgiu agora. Ela vem num processo de aprimoramento institucional iniciado ainda antes do governo Lula. Houve um planejamento estratégico feito lá atrás, em 2002. O atual governo teve o enorme mérito de adotar uma política de melhoria de sua capacidade operacional, e com isso a PF conquistou muita credibilidade e está tendo um papel até pedagógico no sentido de romper essa sensação de impunidade no país.
Veja – O senhor anunciou que está trabalhando no planejamento para daqui a quinze anos. Como imagina a cena policial no Brasil em 2022?
Corrêa – Isso exige uma projeção muito complexa. Mas já podemos prever algumas coisas. Temos de nos preocupar com os crimes ambientais. Isso terá de ser assimilado pela cultura da segurança pública do Brasil em todos os níveis, até na guarda municipal. A vida é o bem mais protegido em nosso sistema penal. Para garanti-la, temos de cuidar do meio ambiente. Outras tendências são o crescimento e o refinamento dos crimes cibernéticos. O que estamos fazendo é a prospecção de cenários, em que especialistas de diferentes áreas do conhecimento serão chamados a se manifestar e analisar na cena internacional e interna os fatores com impacto potencial em nossa vida.
Veja – O senhor criticou as ações policiais pirotécnicas. É o fim da era das prisões espetaculares, com presos algemados em cadeia nacional de televisão?
Corrêa – O que queremos é uma polícia que não precise de uma exposição agressiva de um detido. Vou dar um exemplo: a polícia não possui carros adequados à condução de presos. Nós os colocamos na parte de trás dos veículos, que são compartimentos para malas. Isso não é compatível com uma polícia moderna. Também não queremos o uso da algema como forma de humilhação. Mas elas estarão lá, sim. Elas são uma garantia para o preso e para o agente público. Já passei por uma situação que serve de parâmetro: um sujeito algemado, com as mãos para trás, tentou bater com a cabeça na quina da mesa para se autolesionar. Ele só não conseguiu porque era alto e estava algemado. Se não fosse isso, eu poderia ter sofrido ali uma falsa denúncia de maus-tratos. Mas quero deixar claro que essas mudanças não vão tirar a visibilidade, a transparência ou a eficiência das operações. A dinâmica das operações prossegue. Não sei se no dia em que vier a público esta entrevista não vai estar estourando alguma. Não há o intuito de diminuir a intensidade e a natureza das operações. Muito menos o de tornar a investigação secreta. A imprensa, se puder ter acesso às imagens, vai ter. Não haverá restrições.
Veja – O que o senhor considera mais prejudicial ao Brasil: políticos corruptos ou traficantes de drogas?
Corrêa – Traficantes são péssimos, mas corruptos são piores. Se pegássemos todos os furtos e roubos praticados durante um ano, numa determinada localidade, e calculássemos o prejuízo, certamente seria menor do que o impacto danoso de um ato de corrupção sobre a vida do país. Às vezes, um número excessivo de pequenos delitos, se somados, causa um desconforto, uma sensação de insegurança. Mas a corrupção vai impactar na área fiscal e afetar os benefícios que viriam na forma de serviços, saúde, educação e mais segurança.
Veja – A lavagem de dinheiro está por trás das principais atividades criminosas. Como o senhor pretende enfrentá-la?
Corrêa – Houve um amadurecimento na capacidade de investigação da polícia na área financeira. O primeiro avanço veio durante a fase inicial do enfrentamento do tráfico internacional de drogas, quando passamos a investigar a vida financeira das quadrilhas. Essa escola feita no combate ao tráfico se disseminou depois para todas as áreas de investigação. Independentemente do delito, o método de lavar é sempre o mesmo, seja o de um sonegador que entende que sua conduta deve ser socialmente aceita, seja o de um traficante ou o de um matador. O Brasil, assim como qualquer economia estável, tornou-se um ambiente propício para a lavagem de dinheiro.
Veja – Mas isso é mesmo um efeito colateral da estabilidade econômica?
Corrêa – Claro que a estabilidade foi uma conquista preciosa. Mas o ambiente de intenso fluxo de comércio atrai as atividades ilícitas. Onde há um bom comércio exterior, um mercado imobiliário forte, uma área turística atraente, o cenário é favorável para a lavagem de dinheiro. Você já viu alguém lavar dinheiro no sertão? O lado bom disso é que em um ambiente de estabilidade fica também mais fácil combater o crime.
Veja – Um dos grandes problemas é a impunidade. O senhor foi o responsável pela prisão do ex-banqueiro Salvatore Cacciola. Como se sentiu ao vê-lo fugir depois de ser beneficiado por uma liminar?
Corrêa – Não houve exatamente impunidade. O que aconteceu foi que, quando o Cacciola foi preso, a Justiça entendeu que ele deveria responder em liberdade. Ele é que não cumpriu o papel de cidadão e fugiu. Mas houve uma condenação. Ele está preso agora em Mônaco em razão das provas que foram produzidas por nós.
Veja – O senhor é contra ou a favor da liberação das drogas?
Corrêa – Sou contra. Um país que não consegue controlar a diarréia infantil não vai conseguir controlar os males causados pela livre circulação de drogas. Temos de continuar reprimindo. Se a medicina chegar à conclusão de que não tem problema esta ou aquela droga, tudo bem. Mas, enquanto isso não acontecer, serei contra. É preciso também investir na educação. Senão fica como a pirataria. Todo mundo, no discurso, é contra. Mas todo mundo tem um CD ou alguma outra coisinha pirata em casa. Não quero repetir um discurso simplista, mas fazer passeata pela paz durante o dia em Copacabana e comprar cocaína à noite não dá, não é mesmo?
Veja – Como secretário nacional de Segurança Pública, o senhor teve uma visão ampla do crime no Brasil. Há luz no fim do túnel?
Corrêa – Sim. O problema não é a criminalidade, é a falta de articulação do estado. Falta articular repressão com prevenção. Isso passa essencialmente por uma mobilização social, envolvendo lideranças e conselhos comunitários. Só assim se descobre que, em vez de um carro da polícia parado lá todo dia, o cidadão muitas vezes precisa da rua mais iluminada ou então de algo ainda mais simples, como mudar o local do ponto de ônibus.
Veja – O senhor foi acusado de não ter repassado verbas aos estados. O que houve?
Corrêa – Olha, eu nunca abordei essa questão em público antes. Mas é preciso esclarecer. O que faltou mesmo foi capacidade de gestão dos estados e municípios. Havia uma perda de 40% dos repasses e os recursos acabavam voltando diretamente para o Tesouro porque deixavam de ser usados na segurança pública. Em segurança, como em qualquer outra área do poder público, temos de investir muito mais fortemente em gestão.