Entrevista:O Estado inteligente

domingo, setembro 23, 2007

FERREIRA GULLAR

Carta aberta a um pombo


Foi sua atitude gentil que me fez reparar: os pombos são indivíduos urbanos como nós

MEU QUERIDO pombinho, amigo alado, morador de rua aqui da Duvivier. Não sei se devo dizê-lo morador ou voador de rua, já que com grande freqüência vejo-o esvoaçando ou mesmo voando de um ponto a outro por opção ou necessidade suas, às vezes para catar comida na calçada ou sorver água em poças que a chuva deixou, mas também para cortejar alguma pombinha de quem se enamorou. Como você distingue uma pombinha de um pombinho, não sei, são mistérios do amor.
Alonguei-me demasiado nessa introdução, sem entrar no assunto motivo desta carta, que você certamente não lerá. Mesmo assim, se lhe escrevo, caro amigo, é para agradecer-lhe a atitude gentil que teve ao deixar-me passar à sua frente, cedendo-me a vez, no momento em que ia cruzar a rua, gentileza rara nos humanos que, como você e eu, transitam por estas calçadas. Comoveu-me ver com que civilidade refreou o passo para que eu cruzasse à sua frente, sem perda de tempo, uma vez que aparentava pressa. Essa sua atitude me fez refletir sobre os pombos que junto conosco, humanos, habitam a cidade do Rio de Janeiro. Devo admitir que foi sua atitude gentil e civilizada que me fez reparar nisto: os pombos são hoje indivíduos urbanos como nós.
E então me detive a refletir na maneira como se comportam, caminhando ao nosso lado nas calçadas, bicando um grão aqui, outro ali, despreocupados, confiantes, certos de que ninguém lhes fará mal. Às vezes, se um transeunte distraído ou afoito os atropela, eles saltam ou se esquivam, não fogem assustados porque sabem que ninguém está ali para caçá-los. Pois é, mas isso não acontece com pássaros que vivem nas matas ou em sítios longe das cidades. Esses se comportam como bicho-do-mato, assustados e, se vêem um homem ou mesmo uma criança, fogem. Não é à toa que a palavra urbanidade tem o sentido que tem.
É verdade que nem sempre foi assim. Não faz muito tempo, havia gente que tinha como esporte predileto matar pombos. Um desses, que conheci, era mestre Bernardo, autor de alentado volume intitulado "Tiro ao Pombo". Já falei dele numa crônica antiga, em que ressaltava a importância dos pombos para a vida das cidades, mas falava mais como poeta, ao dizer que os pombos eram monumentos fluidos, errantes, que levantam vôo e migram de um ponto a outro das praças, como na de São Marcos, em Veneza. Era uma visão um tanto distante, que não levava em consideração o pombo como companheiro de calçada, transeunte educado e gentil.
- Bons tempos estes de hoje!, diria eu, se fosse pombo, porque, no tempo de mestre Bernardo, a coisa era feia. Os pombos eram metidos em gaiolas, levados para os campos de tiro e, lá, jogados para o alto, um a um, para servir de alvo aos atiradores. Promoviam-se campeonatos de tiro ao pombo, e quem mais pombos matasse ganhava uma medalha.
Mestre Bernardo era pai de uma amiga minha e foi ela que me levou a sua casa para conhecê-lo. Na verdade, pretendia entrevistá-lo para a revista em que trabalhava a propósito de seu livro. Tinha curiosidade em conhecer alguém que levava tão a sério o esporte de atirar em pombos, a ponto de escrever sobre o tema um volume de quase 600 páginas. O encontro foi marcado na hora do almoço, porque mestre Bernardo queria que eu provasse de uma especialidade sua: pombo guisado com arroz de lentilha. Fingi que comia enquanto ele chupava os ossinhos de pombos que matara, a tiros, na véspera.
Assim é a vida humana, diferente da dos demais bichos que não têm por esporte matar, alegremente. Nós, humanos, não nos contentamos em seguir as leis naturais, que regem o comportamento de todos os animais. De fato, vivemos insatisfeitos como nossa condição de bicho humano e, por isso, estamos permanentemente a inventar e reinventar a vida, usando e abusando de tudo que está a nosso alcance. Não sei se existe uma história oral dos pombos, se contam uns aos outros o que lhes sucedeu no passado; se o fazem, talvez saibam que, por muito tempo, nós os usamos para levar e trazer mensagens, especialmente durante as guerras. Como ainda não tinha sido inventado o telégrafo, usávamos o pombo como correio, valendo-nos de sua mania de sempre voltar ao pombal de origem. Se com isso se abusava de seu direito de ir-e-vir, era muito melhor que servir de alvo à espingarda de mestre Bernardo.
Mas essas são coisas velhas, porque o pombo de hoje, urbanizado, goza do direito de cidadania como qualquer habitante de nossa cidade. Ou mais até, já que é pequeno demais para ser alvo de balas perdidas.

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