Entrevista:O Estado inteligente

domingo, setembro 16, 2007

Democracia e Constituição Celso Lafer

Quem governa? Um, poucos ou muitos? Como governa? Bem ou mal? São estas as questões por meio das quais Aristóteles organizou os grandes temas da reflexão política. Refletindo sobre a agenda política, vou partir das indagações aristotélicas para apontar que nas condições contemporâneas, caracterizadas pela dinâmica igualitária, a democracia é o melhor caminho para lidar com os conflitos da sociedade. Complementarei esta afirmação indicando que a boa qualidade da governança democrática requer o Estado Democrático de Direito, regido pela Constituição. Para recorrer a outra formulação clássica, esta exprime a superioridade do governo das leis em relação ao governo dos homens, pois é um modo de governar direcionado tanto para impedir o abuso do poder quanto para garantir a segurança jurídica da previsibilidade e calculabilidade das condutas.

A democracia é um regime de igualdade e de liberdade política no qual o poder flui de baixo para cima e não se impõe do alto para a base da sociedade. Como explica Bobbio, requer o respeito a certas regras do jogo político, nas quais se incluem eleições livres e periódicas. Não há democracia sem eleições, mas só a existência de eleições não configura uma democracia. É por isso que apenas o critério da existência de eleições periódicas não atribui à Venezuela de Chávez uma identidade democrática.

A igualdade democrática de um governo que emana do povo pressupõe a inclusão de todos no processo deliberativo eleitoral, sem discriminação de qualquer espécie e sem as distorções da fraude eleitoral.

A liberdade democrática pressupõe, igualmente, o pluralismo de posicionamentos e informações. Não existe democracia sem uma atmosfera de liberdade e sem espaço para a formação de opinião pública. Daí a relevância de certos direitos básicos, como a liberdade pessoal, ou seja, liberdade de viver sem medo, que diferencia uma democracia de uma autocracia; a liberdade de consciência e de religião; a liberdade de imprensa; a liberdade de reunião e de associação e também de direitos econômico-sociais, asseguradores do efetivo espaço da opinião pública, como a liberdade de viver ao abrigo da necessidade e o direito à educação.

É neste contexto que, no trato dos conflitos, se coloca a importância da afirmação de um Estado laico e imparcial que não se atribua o monopólio da verdade. Daí, entre nós, a crítica ao "aparelhamento" do Estado. É neste quadro que se insere a temática da afirmação do pluralismo. O pluralismo dos e nos meios de informação; o pluralismo político que a pluralidade de partidos e das alternativas de políticas públicas favorece; o pluralismo econômico que a desmedida concentração do poder econômico obstaculiza, quando abusivo. Daí, aliás, o sentido das normas de concorrência e do direito do consumidor na democracia contemporânea.

A democracia, porque está lastreada numa concepção pluralista da sociedade, presume que não existe um caminho único para alcançar o bem comum. O conflito entre distintas alternativas e visões sobre o bem comum nela se resolve pelo princípio da maioria. O princípio permite uma decisão coletiva contando cabeças, e não cortando cabeças, na formulação de Bobbio.

Numa democracia existem três limites à aplicação da regra da maioria. O primeiro é que nenhuma decisão tomada por uma maioria deve limitar o direito da minoria de se tornar maioria, mantida a paridade das condições. Como observa Michelangelo Bovero, esta é uma cláusula de salvaguarda da sobrevivência da democracia. Está voltada para impedir os riscos da autocracia eletiva e do caudilhismo pós-moderno que postulam "todo o poder ao vencedor". É ela que explica o papel institucional da oposição, que é parte do equilíbrio dos Poderes numa democracia. É o que justificou a oposição do PT ao governo do presidente Fernando Henrique; é o que justifica a oposição do PSDB ao governo Lula, ou a preocupação com um seu terceiro e sucessivo mandato, ou, ainda, com a idéia de uma Constituinte exclusiva.

Os dois outros limites à regra da maioria provêm da concepção do constitucionalismo afirmada no artigo 16 da Declaração Francesa de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: "Toda sociedade na qual a garantia dos direitos não é assegurada nem a separação dos poderes determinada, não tem Constituição."

As Declarações preservam os direitos fundamentais, que, como visto acima, são indispensáveis no governo das leis para o pleno funcionamento das regras do jogo democrático. Protegem os que não estão no poder e os mais débeis. A separação dos Poderes é o outro componente do governo das leis. Tutela o princípio da legalidade e da imparcialidade e contém o abuso do poder, que é a permanente tentação do governo dos homens. Abusos se configuram quando o poder, minando a confiança da cidadania, se vale, por exemplo, de procedimentos legalmente não prescritos ou arbitrários ou quando atua não no interesse público, mas no interesse pessoal de governantes ou dos seus partidários, promovendo a interconexão ilícita entre o dinheiro e o poder.

No exame deste tema, que é o do pouco escrúpulo no trato do bem comum, o padre Vieira distingue o pecado da omissão, "que com mais facilidade se comete e com mais dificuldade se conhece e raramente se emenda", dos pecados de conseqüência, "que mesmo depois de acabados ainda duram". O lamentável exemplo do pecado de conseqüência da semana passada foi a indecorosa decisão do Senado de absolver o seu presidente, Renan Calheiros, pois tem como conseqüência a perda de credibilidade da instituição. A meritória contraposição a este evento - que ilustra o papel da separação de Poderes na contenção de abusos - foi a recente decisão do Supremo Tribunal que, seguindo o límpido voto do ministro Joaquim Barbosa, acatou a denúncia dos poderosos envolvidos no caso do "mensalão".

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