Fernando Dantas
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso acha que 'falta convicção' ao PSDB para defender o legado do seu governo. 'O PSDB e os diversos partidos que me apoiavam votavam a favor por pressão do governo, mas não faziam o debate ideológico; à primeira crítica do PT, eles ficavam atemorizados', disse ele ao Estado, em entrevista concedida no Instituto Fernando Henrique Cardoso, em São Paulo.Responsável pelo Plano Real, que domou a hiperinflação no Brasil, ele garante que não se sente incomodado com o fato de hoje a esmagadora maioria da população atribuir ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva o qualificativo de 'maior responsável' pelo controle da inflação, como mostrou pesquisa do Estado com o Instituto Ipsos Public Affairs, publicada no domingo passado. Para o ex-presidente, é 'natural' que a população olhe mais o momento presente do que a história. E a timidez tucana em assumir claramente suas posições e seus programas é o outro fator, na sua análise, que faz com que Lula possa colher quase todo o crédito pelas melhorias do País na última década.
Para Fernando Henrique, o partido precisa mudar, 'olhar o futuro', para poder avançar. Para isso, o PSDB 'tem que ter um programa no qual acredite, tem que dizer ao País o que quer, e convencer a população de que estas coisas são boas'. A seguir, a entrevista:
Como o sr. vê o fato de o presidente Lula aparecer em pesquisa recente como o principal responsável pelo controle da inflação?
Em primeiro lugar, é normal que isto aconteça. Como estes processos de mudança são cumulativos, quem vem depois sempre será visto como o que fez mais, que fez melhor. O problema é que, verdadeiramente, a mudança de rumo foi no governo anterior. Agora o que houve foi continuidade. Embora o Lula não goste de reconhecer, houve continuidade, e graças isto houve progresso. Mas a população sempre registra o momento final, ela não registra a história. Quem não conhece o comportamento de massa pode estranhar isto. A reação de massa, crescentemente, é àquilo que naquele momento está sendo transmitido. Se você for olhar a televisão hoje, o que ela transmite? A estabilidade atual. A televisão não vai ficar recordando o passado. Por outro lado, se a pergunta feita fosse 'quem fez o Real', a resposta talvez fosse outra. Mas o que importa mais é que o País conseguiu a estabilidade, e isto foi positivo.
Seria humano que o senhor se sentisse ao menos um pouco frustrado pelo fato de crédito da estabilidade ter passado para Lula.
Eu não tenho esta visão, tenho uma outra concepção da história, sou sociólogo. Mesmo quando eu estava no governo, quando me acusavam, eu não me punha como se fosse 'eu' pessoalmente que estava sendo acusado. Agora, é do mesmo jeito. Eu acho que tudo isto é um processo. Você pode perguntar, é injusto? Não, eu acho que as pessoas estão vivendo as suas vidas hoje e desfrutam da estabilização. E tem outra coisa, se eu tivesse a postura que você mencionou, eu deveria ter sido candidato a presidente da República de novo, lutar pelo que eu fiz, continuar na mídia. Eu decidi outra coisa, e portanto eu também sou culpado. Eu decidi não ser mais candidato, não entrar mais na briga política. O meu olhar hoje é o de um sociólogo, uma pessoa interessada pelo Brasil, que tem responsabilidades públicas. Eu não posso me queixar. Se a minha atitude tivesse sido a de ficar reivindicando o que eu fiz, deveria estar na briga política.
Mas o senhor também não acha que faltou o PSDB assumir a defesa do seu legado?
Eu não tenho dúvida, concordo plenamente. Esta questão é antiga, e não é só do PSDB. A modernização sempre foi vista no Brasil com um pé atrás. Não é só no Brasil, é em qualquer lugar do mundo. Mudar só é bom depois que você ganha. Quando se faz um processo de mudança - Maquiavel já dizia -, os que vão perder gritam logo, os que vão ganhar não sabem. Os que estão ganhando agora não sabem que estão ganhando porque nós mudamos lá atrás. E o próprio partido entra nisto, ele tem dificuldade na hora, o PSDB e os outros, de assumir as mudanças. Eu acho que aí é um lado político mesmo. Eu acho que tem faltado ao PSDB mais convicção. Convicção para dizer que 'fizemos porque acreditamos, e porque é bom para o Brasil'. Isto é indiscutível.
E esta convicção faltou nas campanhas eleitorais?
Sim, e mesmo antes, quando eu era presidente. O PSDB e os diversos partidos que me apoiavam votavam a favor por pressão do governo, mas não faziam o debate ideológico. À primeira crítica do PT, eles ficavam atemorizados. Isto tem que mudar, e não é para recuperar o crédito do que foi feito no meu governo. Quanto a isto, a história que se incumba, não é meu problema. Mas para o PSDB poder avançar, ele tem que ter um programa no qual acredite, tem que dizer ao País o que quer, e convencer a população de que estas coisas são boas. É olhar o futuro, e não para trás.
A privatização foi um tema em que muitos críticos apontaram uma postura tímida do PSDB...
Eu não sou privatista em geral. A privatização é um instrumento que em certas circunstâncias se aplica, e pode dar certo, como deu no Brasil. Isto não quer dizer que tudo tem que ser privatizado. O truque que foi usado na campanha do Lula é inacreditável. Era falar da privatização da Petrobrás e do Banco do Brasil. Ora, eu nunca quis privatizar os dois. Então, não se trata de fazer uma luta de privatistas contra não-privatistas. O que interessa é 'o que é melhor para o Brasil agora, em tal questão'. Quer reestatizar a telefonia? Quer ver se você ainda vai ter o seu celular, estatizando a telefonia? Por que falar em privatização ou reestatização da Companhia Vale do Rio Doce? O povo não sabe o que é isso. Está muito distante, não vai ser feita, o próprio Lula já se colocou contra. Isto é só política ideológica. Então inverte a questão, e pergunta: 'Você quer perder seu telefone, quer pagar mais por seu telefone, quer ver corruptos tomando conta dos seus telefones?' Tem que fazer a luta política.
Como o senhor viu a divulgação da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), que mostrou que a pobreza caiu mais no primeiro governo Lula do que nos seus oito anos de mandato?
Eu acho muito bom. Caiu mais sim, mas porque antes houve um Plano Real. O Brasil melhorou, e a PNAD mostra que houve uma mudança de rumo. Quando ela aconteceu? No meu governo. Todos estes programas, a rede de proteção social vem de lá. E a diminuição da pobreza, o grande golpe inicial, foi no meu primeiro mandato, e depois continuou. Em outras áreas, como a mortalidade infantil, é diferente, porque à medida que você vai reduzindo, vai sendo mais difícil reduzir ainda mais. Então este governo é menos do que o meu. No saneamento básico, a mesma coisa. Agora, redução da pobreza é cumulativa. E, quanto à questão do salário mínimo real, o aumento começou em 1993, não foi nem no meu governo. E vem vindo desde lá até agora. Eventualmente, no último ano, houve um aumento mais forte do salário mínimo do que nos últimos anos. Este ano, deve diminuir o aumento. Não tem importância, o que importa é a tendência, e a tendência começou lá atrás.