Entrevista:O Estado inteligente

domingo, setembro 30, 2007

João Ubaldo Ribeiro O golpe já começou (2)


Quando escrevi, há dois domingos, uma coluna com este mesmo título, não imaginava que iria, pelo menos tão cedo, abordar o assunto novamente. Peço desculpas a quem não leu o primeiro ''''capítulo'''', pois é claro que não posso repeti-lo. Mas não tem importância, porque ele, em última análise, procurava apenas lembrar como o Senado e a Câmara de Deputados são hoje, de modo geral, malvistos ou mesmo abominados pela maior parte do povo, e uma das conseqüências é a extinção do primeiro já ser amplamente sugerida, o que abre um caminho talvez tortuoso, mas claro, para a extinção da segunda.

Enfatizei o papel alarmante que ambas as Casas vêm desempenhando nesse processo. Com o caso Renan, o Senado parece estar à frente na competição pela impopularidade, mas isso, acredito eu, é temporário. A Câmara continua a também ser detestada, tida como mera fonte de corrupção, ineficiência e irresponsabilidade. Isso acaba se estendendo aos políticos e às atividades políticas de qualquer espécie. Para generalizar, admito que um pouco grosseiramente, o povo acha que político e ladrão, ou patife, são sinônimos. E parece que as duas instituições, com exceções individuais aqui e ali, que não afetam significativamente o quadro mais amplo, ainda não avaliaram com suficiente seriedade a contribuição decisiva que vêm dando a essa situação.

Quando e se isso acontecer, talvez já seja tarde demais e a ''''saída natural'''' certamente não será a democracia precária em que vivemos, apesar de ela ter sua robustez amiúde louvada, quase sempre da boca para fora e levianamente. Ela não é robusta coisa nenhuma e, sem o Congresso, desaparecerá. A ''''saída natural'''', com praticamente toda a certeza, será um ''''governo de salvação nacional'''', uma ''''frente avançada pelo bem do Brasil'''', uma ''''união nacional patriótica'''', uma ''''aliança democrático-progressista'''', ou qualquer rótulo bem soante desse tipo, dos quais há vasto repertório entre ditaduras e governos autocráticos. Ou seja, repetindo uma afirmação em que, também alarmantemente, cada vez menos se acredita: se com o Congresso estamos mal, sem ele estaremos pior.

Há os cínicos, primários, ignorantes e afins que sustentam que a repulsa à maneira, digamos, nojentinha, com que os políticos se têm conduzido reflete simplesmente o desconhecimento popular da famosa ''''governabilidade''''. O país assiste a um jogo de distribuição de cargos e vantagens aos partidos da chamada base governista e, quando alguém estranha a maneira despudorada, indecente e danosa aos interesses do país (pois dificilmente a aptidão para o cargo ou mesmo a necessidade dele é levada em conta), com que isso se faz, é taxado de ingênuo e até antidemocrata. Em qualquer país do mundo, a governabilidade é garantida por esse loteamento do poder - pontificam com o ar cansado do sábio que pela décima vez tenta ensinar algo ao néscio. É que nós somos atrasados e não temos maturidade para perceber isso.

Mas temos, sim, porque, se é verdade que a governabilidade nesses tais outros países é quase sempre obtida por meio de de negociações políticas, esta não é feita para a distribuição imoral de ''''gente nossa'''' onde couber, não importando a qualificação dessa gente, ou mesmo a inexistência de necessidade administrativa para ela. É feita com partidos de perfil definido, em torno de programas, filosofias de ação, políticas concretas e não de empreguismo desenfreado e descarado. A negociação é normal e necessária. A safadeza política, o clientelismo e o quero-o-meu não são. É isso que aqui choca, desaponta e murcha a esperança. E continuam a persistir na noção de que somos todos burros e ninguém está enxergando nada. Burros são eles, que, de tão sabidos, é que vão dar com os ditos burros n''''água, se persistirem nessa insensatez e na convicção de que podem continuar a nos impingir o que bem entendem.

Como também disse no capítulo um, não acredito na existência séria de golpismo no Brasil de agora. ''''Fora Lula'''' é uma palavra de ordem golpista, sim, que deve ser fortemente repelida por quem se quer democrata. Contudo, é mais um berro sem muito eco do que uma tendência política a ser levada em conta. E o governo tampouco dá indícios de que é golpista. Mas aí é que está o ponto G (G de ''''golpe''''): não é preciso, está tudo correndo no automático, o serviço está sendo feito pelo Congresso, pelos partidos e pela repercussão de seus atos junto ao povo.

Resta a polissilábica e sonorosa discussão dos especialistas sobre se o governo que viria seria de direita ou de esquerda. Besteira, desperdício de papel, erudição mal-digerida, comprometimento quase religioso com alguns princípios ou dogmas e muito pensamento voluntarista. Independentemente de discussões sobre o que é direita e o que é esquerda, os fatos têm de ser levados em conta. E um dos fatos principais é que, nem com essa valiosíssima ou imprescindível colaboração do Congresso e a desmoralização dos políticos, o partido do governo não tem nomes, nem de muitíssimo longe, que sirvam de alternativa para Lula. Ele não pode passar sem Lula, e Lula pode perfeitamente passar sem ele, como, aliás, já tem dado a entender, na minha opinião. Não só sem ele como sem qualquer outro partido, porque os outros se desfazem na sua inoperância e irrelevância para o homem comum. Só restou, visível e forte, o lulismo. Portanto, podem os muitos que assim desejam continuar a ficar discutindo os rumos ideológicos que o país tomará, se a crise política continuar e chegar a um ponto insustentável. Ao presidente nunca interessou muito esse negócio de esquerda ou direita. Agora com mais razão, pois tanto fizeram e deixaram fazer, que só dá ele. E ele brinca nas onze, todo mundo sabe, é só informarem para que lado ele chuta.

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