Ioiô da Professora era a prova viva
de que a Guerra de Canudos terminou
com derrota para todos
"Seu Ioiô? Aquele velho branco?" Assim reagiu a senhora a quem o escrevinhante que vos fala pedira informações, numa rua de Euclides da Cunha, no sertão da Bahia, na primeira das três vezes em que por lá esteve para reportagens sobre a Guerra de Canudos. "Velho branco" é uma identificação precisa. João Siqueira Santos, o "Ioiô da Professora", era um velhinho miúdo, óculos de grossas lentes e armação grande demais para o tamanho do rosto, pele branca e vasta e decisiva cabeleira branca. Morava numa casinha verde, conforme informou a senhora da rua. A casinha era muito procurada por pesquisadores, jornalistas e curiosos interessados na Guerra de Canudos. Beber na fonte representada por seu Ioiô dava a ilusão de ouvir uma testemunha do conflito, 100 anos depois. Ioiô da Professora (ao modo do sertão, o apelido o define como o filho de uma professora da cidade) morreu no mês passado, aos 98 anos, na Euclides da Cunha natal, cidade a 80 quilômetros de Canudos e na região por onde perambularam tanto Antônio Conselheiro e seus fiéis quanto as tropas em seu encalço.
O pai de Ioiô hospedara em casa, no famigerado ano de 1897, tempo em que Euclides da Cunha ainda se chamava Cumbe, oficiais que dali preparavam os ataques ao arraial conselheirista. Ioiô viria a se casar com a neta do "coronel" José Américo Camelo de Sousa Velho, o maior fazendeiro do Cumbe e inimigo visceral de Antônio Conselheiro, a quem atribuía em suas cartas, entre outros epítetos, os de "Conselheiro da Malvadeza", "monstro horroroso do Brasil" e "danado piolhento". Ioiô cresceu ouvindo as histórias que recontaria interminavelmente aos freqüentadores da casinha verde. Ele não era o único. João de Régis, João Butão, Paulo Monteiro, Antônio de Isabel, dona Ana do Bendegó (os nomes são preciosos) formavam um time de testemunhas, não diretas, que estas já haviam desaparecido, mas, digamos, testemunhas de segundo grau, de um dos episódios mais interessantes, trágicos e emblemáticos da história do Brasil. Eram pessoas que haviam convivido com pessoas que haviam vivido a guerra. Ioiô era, entre eles, o último sobrevivente. Agora é se contentar com as testemunhas de terceiro grau, as que conviveram com pessoas que conviveram com pessoas que viveram a guerra – se é que dá para se contentar com elas.
"Quando um negro velho morre na África, incendeia-se uma biblioteca." A frase, de Ortega y Gasset, era uma das preferidas do historiador José Calasans (1915-2001), mestre supremo da "canudologia" baiana que se seguiu a Os Sertões, de Euclides da Cunha, e um dos descobridores de Ioiô da Professora. Não é bem o caso de Ioiô porque a "biblioteca" contida em sua memória se conserva nas dezenas de livros e artigos que se alimentaram nela. Curioso foi acompanhar a utilização que Ioiô deu à "biblioteca" à medida que o sucesso entre os ouvintes lhe rendia desenvoltura crescente. Ele enfeitava as histórias com recursos de retórica e de teatro. "Vamos arretirar. Vem aí um Treme-Treme que não arrespeita sertanejo", dizia, caprichando na entonação, para descrever a reação à chegada do coronel Moreira César, o ferrabrás do Exército que prometia arrasar Canudos (e ali acabou morto). Punha nos lábios do Conselheiro frases como: "Esperem que vou fazer um milagre". Caprichava nos detalhes: "Aí o conselheiro chamou Pajeú. Veio Pajeú. Ele disse: – Sente-se". Ou então: "Ele entrou, tirou o chapéu...". Ou: "Vá buscar o padre Sabino, disse Moreira César". Pausa. "A ordem foi seca." Ioiô, um velhinho elétrico, sentava, levantava e gesticulava, enquanto desfiava seus relatos.
Os floreios, mais o fato de que misturava as memórias pessoais com trechos de Os Sertões, como notou o historiador Marco Antonio Villa, tornaram-no fonte menos confiável. Mas, no que perdeu em credibilidade, ganhou em fascínio. Não tinha a oferecer simples depoimentos. Encenava performances. Através delas, fazia a guerra continuar, por outros meios. Pena que estes eram apenas fugazes momentos de glória. Ao se despedir do ouvinte, Ioiô voltava a abrir o botequim (a "bodega", como se diz por lá) que mantinha na parte da frente da casa. Ou então a tocar a vida com a mulher (a neta do "coronel" José Américo), que, "doente das pernas", não saía da cama e do quarto se comunicava aos gritos com o marido. A casa era escura e suja. Na bodega, Ioiô atendia os cachaceiros da vizinhança.
Saía-se da casinha verde com a convicção de que a Guerra de Canudos terminara com derrota para todos os lados. Foi uma vergonha para o Exército, autor de um massacre contra gente simples e abandonada, uma tragédia para os seguidores do Conselheiro e, quanto à terceira parte envolvida – potentados sertanejos como o "coronel" José Américo –, mostrou que a posse de um latifúndio e o controle das rédeas do poder não impedem que, duas gerações depois, a neta venha a ser condenada a uma triste cama, num ambiente insalubre, enquanto o marido vende cachaça. Na bodega de seu Ioiô, até alguns anos atrás, a dose custava 50 centavos.