Está saindo do forno, infelizmente apenas em uma edição em espanhol da Corte Nacional Eleitoral da Bolívia, o Atlas Eleitoral Latino-Americano, que seu coordenador, o sociólogo Salvador Romero Ballivián, classifica de o trabalho mais completo que existe sobre as recentes eleições na região. Parceria do Instituto de Altos Estudos da América Latina (IAEAL), da Sorbonne, o Atlas analisa as últimas 12 eleições presidenciais na Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, Honduras, México, Nicarágua, Peru e San Salvador. Nesses países, nada menos que 11 eleições ocorreram entre 2005 e 2006, fato por si só promissor para a democracia na região.
O trabalho é resultado de um grupo de pesquisadores que vem buscando analisar eleições presidenciais, tendo a cartografia como ferramenta, estudo que teve origem na França no início do século 20, com base no livro clássico do pesquisador André Sigfried. No Brasil, o estudo foi feito pelo professor Cesar Romero Jacob, da PUC do Rio de Janeiro.
O diretor do IAEAL, o francês Georges Couffignal, não tem dúvidas ao afirmar que as eleições demonstram “o desejo das populações de utilizar os processos democráticos para escolher seus dirigentes”, contestando pesquisas recentes do Pnud e do instituto chileno Latinobarômetro, que sugeriam um enfraquecimento do conceito de democracia na região.
Esse tipo de estudo suscita algumas questões: como realizar análises transversais de realidades nacionais tão distintas? A realidade latino-americana é extremamente complexa, e há um longo trabalho pela frente, pois uma eleição só é pouco para definir tendências do comportamento sobre o território, diz o professor Cesar Romero. Ele, no entanto, também destaca como elemento importante que sobressai no estudo o fortalecimento da democracia na região.
“Nesses dois anos, nada menos que 85% do eleitorado da América Latina votam durante dois anos para presidente, o que é um fato inédito e promissor para a consolidação da democracia”.
Mesmo que, a partir da democracia, aconteçam movimentos perigosos em países como a Venezuela, a Bolívia, o Equador, com tentativas de manipulação do equilíbrio de poderes característicos da democracia, com interferências diretas no Legislativo e no Judiciário, Cesar Romero acha que esse processo de consolidação democrática “é conflituoso mesmo, não é feito em linha reta”.
A questão da clivagem direita/ esquerda e o populismo na região são analisados por Georges Couffignal, que coloca em dúvida a afirmação de que há uma tendência à esquerda na América Latina, preferindo destacar um traço comum aos eleitos, o pragmatismo político. Cesar Romero acrescenta que “pode haver vitórias de partidos de esquerda, mas elas não significam necessariamente uma guinada à esquerda do ponto de vista das políticas adotadas”.
Ele pergunta: “O que haveria de comum entre a Michelle Bachelet, no Chile, e o Hugo Chávez? Ambos estariam dentro da família de esquerda, mas são completamente diferentes. O que há em comum entre Lula e Evo Morales, na Bolívia? Ou se analisarmos os presidentes tidos como de direita, como Álvaro Uribe, na Colômbia, e Calderon, no México, também não são a mesma coisa”.
Para Cesar Romero, é muito difícil fazer esse corte direita/ esquerda em uma realidade tão complexa, “inclusive porque na verdade existem os limites impostos pela globalização, que não permite aventuras, mudanças radicais isolacionistas”.
Para estar integrado na economia global, o governante não pode romper certos paradigmas, e dentro dessa lógica, ele cita Hugo Chávez, “que seria o mais contundente, mais eloquente representante da esquerda da América Latina” e que vive uma situação paradoxal: é um radical antiamericano, pelo socialismo do século XXI, mas retórico, pois, suas divergências com os Estados Unidos não impedem que continue sendo um dos seus maiores fornecedores de petróleo.
“O paradoxo que desorienta a esquerda é a China pedir ao Brasil para ser reconhecida na Organização Mundial do Comércio como uma economia de mercado”, lembra Cesar Romero. Ele considera que uma das coisas interessante de ser visto nesse processo de 12 eleições é o sonho da esquerda da América Latina de, ao chegar ao poder, ter a perspectiva de “civilizar” o capitalismo, a bandeira dos partidos de esquerda tradicionalmente desde o século XIX, só que, nesse processo, a esquerda acaba sendo “domesticada” na sua maneira de fazer política.
“Ao entrar na via parlamentar, ela acaba nesse processo descobrindo que uma coisa é estar fora de poder e outra é estar ‘no poder’, onde você tem responder às questões concretas para todos, e não apenas para o seu eleitorado.
No poder, a esquerda tem que manejar os instrumentos do Estado e portanto, muita de sua retórica é inviável”.
O francês Couffignal compara o processo eleitoral na América Latina com o que já existe na Europa e, na mesma linha, Cesar Romero exalta a alternância no poder: “O regime democrático implica alternância no poder, e isso significa que assim como a esquerda pode chegar ao poder pelo voto, pode sair também pelo voto”.
Ele lembra que dentro de três anos estaremos comemorando as lutas de independência na América hispânica, que começam por 1810, inspiradas no princípio do liberalismo europeu. “E nós estamos ainda tentando construir um regime democrático”.
(Continua amanhã)
O “pacote de abril de 1977” não aumentou o número de senadores, de dois para três. Apenas determinou que um dos três fosse eleito indiretamente, pelo mesmo colégio eleitoral que vigorava para a eleição dos governadores estaduais, criando o senador “biônico”. O número de três senadores por estado e Distrito Federal vem da primeira carta republicana, de fevereiro de 1891.
Entrevista:O Estado inteligente
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