Os contribuintes precisam trabalhar dobrado
para pagar tributos embutidos nos produtos
Julia Duailibi e Cíntia Borsato
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A CPMF, o "imposto do cheque", que suga 0,38% de cada operação bancária feita por pessoas e empresas, é uma jabuticaba sul-americana. Somente a Argentina e a Colômbia também a utilizam. No Brasil, ela incide, sem perdão, sobre todas as etapas de produção. Por que ela é tão rara no mundo? Porque se convencionou, nos países com sistemas tributários lógicos, que nenhum tributo deveria ter efeito cumulativo. Caso contrário elevam-se os preços e produzem-se distorções incontornáveis. Essas distorções são especialmente graves em um país como o Brasil, em que a carga tributária já responde pela metade do preço da maioria dos produtos que consumimos. Como mostra a ilustração nesta página, os impostos representam 42% do preço de carros. Nos xampus e aparelhos de DVD, esse porcentual já supera 50%. Essa carga é típica de estados de bem-estar social. Nos países em que escolas e hospitais caem aos pedaços, torna-se um escárnio. Na prática, os contribuintes brasileiros precisam trabalhar dobrado para pagar os impostos e as contribuições embutidos nos preços.
Sem atentar para esse fardo, a Câmara dos Deputados aprovou, na semana passada, em 1º turno, a recriação do "imposto do cheque", que tinha data para acabar, em dezembro. Mas o governo quer empurrar sua validade para 2011. Para ser aprovada, a prorrogação deve ainda passar por mais uma rodada de votação na Câmara e por outras duas no Senado – é preciso votar duas vezes em cada Casa por se tratar de matéria constitucional. Durante o esforço concentrado para manter a CPMF, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, afirmou, na semana passada, que o tributo "não causa o malefício que se diz" porque sua alíquota, de 0,38%, é muito baixa. Não é bem assim. Por ser cumulativo, paga-se muito mais do que isso. A CPMF representa 2,36% do preço final de um automóvel, por exemplo. Isso porque, da matéria-prima bruta até o consumidor, existem seis etapas. Paga-se o tributo em cada uma delas, sem que as empresas possam compensar o fardo na etapa seguinte.
A pedido de VEJA, o Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT) fez outra simulação reveladora. Uma pessoa que tem 4.000 reais por mês para gastar com a aquisição de bens e serviços, por exemplo, entrega ao governo 76,80 reais via CPMF em transações simples, como o pagamento de aluguel ou a compra de sabonete. Se aplicasse esses recursos num fundo de renda fixa por quatro anos, período pelo qual o governo deseja estender a CPMF, teria 4.500 reais. Em dezoito anos, seriam quase 50.000. Em seus onze anos de existência, a versão atual da CPMF, que deveria durar apenas dois anos, já sugou dos brasileiros mais de 250 bilhões de reais. Só no Ministério da Saúde foram injetados cerca de 121 bilhões de reais desse valor sem que hospitais tenham melhorado ou epidemias, como a dengue, desaparecido (veja reportagem). Nas mãos do governo, esse dinheiro tende a se perder no ralo do desperdício e da corrupção.
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O que a CPMF não fez
pela saúde no Brasil
O tributo medieval não resolveu nenhum dos quatro
problemas a que se destinava quando foi criado, em 1996
Victor De Martino
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Além de sua perversão inigualável na constelação de tributos brasileiros, a contribuição provisória sobre movimentação financeira tem uma característica única: seu impacto sobre a sociedade pode ser mensurado por critérios objetivos. Com base em cada um deles, é possível comprovar cabalmente o fracasso de seus propósitos oficiais. Não é retórica. Quando a CPMF foi adaptada a seu atual formato, em 1996, o então ministro da Saúde, Adib Jatene, seu principal entusiasta, destacou as quatro metas que deveriam ser atingidas com a injeção maciça de recursos na saúde. O dinheiro da contribuição serviria para:
1) erradicar a dengue;
2) reduzir a incidência de malária para 100 000 casos por ano;
3) cortar pela metade a taxa de mortalidade infantil, que era de 41 óbitos por 1 000 nascidos vivos;
4) elevar o valor pago pelo SUS por consulta ambulatorial.
Onze anos depois da reimplantação do tributo, nenhuma dessas metas foi cumprida (veja quadro). O número de casos de dengue, doença que deveria ter sido erradicada, só faz crescer. Em 2006, foram 345.900 relatos, um aumento de 88% em relação a 1996. Naquele ano, 183.800 ocorrências foram assinaladas, com apenas um óbito. Uma década depois, além de esse número ter dobrado, a dengue causou a morte de 76 pessoas. Em relação à malária, a meta era a redução da incidência da doença de 441.500 para 100.000 casos anuais, mas a infecção cresceu 24%. Para piorar a situação, moléstias já controladas ou até mesmo erradicadas em países desenvolvidos continuam a matar no Brasil. É o caso da doença meningocócica, uma infecção bacteriana que provocou 706 óbitos em 2005, e da tuberculose, com 78.000 casos registrados no país, praticamente o mesmo índice da década de 80. A taxa de mortalidade infantil caiu 27%, mas não os 50% pretendidos. E o valor pago pelo SUS por consulta aumentou, mas ainda está longe da meta traçada.
Em valores corrigidos, a CPMF já destinou cerca de 121 bilhões de reais à Pasta da Saúde, desde 1997. Não é pouco dinheiro – uma grande companhia, como a Gol, levaria mais de trinta anos para obter essa receita. Só nos primeiros oito meses de 2007, o tributo sugou 23,8 bilhões de reais da sociedade. Mesmo assim, o governo ainda conseguiu que a Câmara aprovasse em primeiro turno a prorrogação da contribuição até 2011. A primeira versão da cobrança, o IPMF, foi criada em 1993. Como se tratava de matéria tributária de natureza constitucional, teve de ser incluída na Carta por meio de emenda. Por isso, as prorrogações também têm de ser feitas por meio de emenda, o que exige o apoio de pelo menos três quintos dos parlamentares do Congresso.