O compadre Lula é bom companheiro e um sujeito muito carismático, mas nunca morreu de amores por princípios. O jornalista Clóvis Rossi, que não mente, foi testemunha de uma declaração que vale como um auto-retrato do nosso presidente. Foi em Madri. Afundado no sofá do bar do suntuoso Hotel Palace, assim falou Lula: "Você não governa com principismo. Principismo você faz no partido quando pensa que não vai ganhar nunca as eleições. Quando vira governo, governa em função da realidade que tem." Anota Rossi que essas palavras lembram aquela famosa entrevista de Lula em Paris, a respeito do caixa 2: "O PT só faz o que todo mundo faz no Brasil." Pautar-se por princípios, segundo ficamos sabendo, é apegar-se ao "principismo", coisa de otário. Sempre se aprende. (Cf. Clóvis Rossi, Folha de S.Paulo, 18/9.)
A questão é a seguinte: a desmoralização vergonhosa do Legislativo e seu descrédito junto à população não significam crise de ordem moral (a simples desonestidade dos políticos), nem se originaram no próprio seio do Parlamento. A crise é de ordem política, tem origem na relação desequilibrada entre os Poderes Executivo e Legislativo, e foi induzida de fora para dentro no Legislativo por força do gigantismo truculento do Executivo. Este roubou a autonomia e a dignidade do Legislativo no escambo perverso do "toma-lá-dá-cá" que se institucionalizou no governo Lula.
A verdade é que Lula subornou e castrou o Congresso, dobrando sua independência e minando sua autoridade com medidas e desmedidas próprias de um presidencialismo monocrático que não admite parceria com outros Poderes. O Congresso esfrangalhado, sem voz nem vez, esvaziado pela megalomania do Executivo com seu uso e abuso de medidas provisórias, a cooptação sistemática dos líderes da oposição, as alianças oportunistas, o tráfico de cargos, verbas e vantagens, o Congresso, desfibrado e desmoralizado, abdicou de suas funções constitucionais e se colocou nas mãos do dono e senhor do Executivo, como seu instrumento e mero joguete. Daí à formação do mensalão e à absolvição de Renan Calheiros foi só um passo. Os congressistas não se corromperam, o Congresso é que foi usado pela vocação absorvente da Presidência, que data no Brasil desde a Proclamação da República. Lula levou às últimas conseqüências um estado de coisas que ele não criou, já encontrou instalado quando assumiu o poder.
Lula se explica pela lei da inércia. Nem Marx, nem Gramsci, mas Galileu. Foi pela inércia que adotou a política econômica do governo anterior; pela inércia se recusou a acrescentar algo à cartilha henriquista para aperfeiçoá-la; pela inércia obedece a uma agenda conservadora que impede qualquer mudança efetiva de base no País; graças à inércia luta pela prorrogação da CPMF.
Estamos dizendo que o modelo presidencialista dá sinais de exaustão na República Federativa do Brasil, uma anomalia que remonta à Proclamação da República, e que persiste até hoje, em escalada progressiva desde Sarney, Collor, Itamar, FHC e culminando em Lula. O sistema presidencialista dá margem ao arbítrio e aos caprichos sem limites do poder unipessoal, colocado acima do interesse do País.
O fenômeno não passou despercebido à perspicácia de Miguel Reale, ao ressaltar: "Ora, o regime presidencialista, por sua própria natureza, sobretudo no sistema imperial que tem vigorado no Brasil, propicia amplo campo a decisões presidenciais, aparentemente fundadas na Constituição, mas, na realidade, resultantes da vontade suprema ou dos humores imprevisíveis do chefe da Nação" (Miguel Reale, Razões do Parlamentarismo, 1993, inserido no livro De Olhos no Brasil e no Mundo).
Com efeito, a leitura inocente das Atribuições do Presidente da República, na Constituição (artigo 84), dá idéia de que o exercício do poder presidencial está rigorosamente pautado no artigo citado e seu parágrafo único. Mas a realidade é outra. O poder pessoal, livre das prudentes medidas de contenção referidas por Reale, insinua-se pelas frestas dos dispositivos constitucionais, desafiando qualquer limite prévio. Por exemplo, a lista das competências privativas do presidente da República nada dispõe sobre a ordem das prioridades a serem observadas em seu governo. Fica ao arbítrio do presidente decidir por onde iniciar seu plano de ação, movido por suas opções pessoais, oportunísticas e ideológicas. A primeira iniciativa de Lula no primeiro mandato foi o Fome Zero, que gorou. No segundo mandato, o PAC, que empacou.
No sistema parlamentarista é diferente: o governo se constitui em função de um programa político a ser realizado, e neste programa já consta a ordem de prioridades essenciais à administração eficaz e impessoal do aparelho de governo. Como distingue Reale, no presidencialismo o programa depende do homem no poder, ao passo que no parlamentarismo é o homem que depende do programa.
Finalmente, atente-se para estas palavras de Reale, que parecem escritas hoje: "Não obstante pareça o contrário, invocando-se a falta de credibilidade de nossos atuais parlamentares, é no regime presidencial que mais facilmente floresce o fisiologismo político, levando deputados e senadores, desprovidos de luz própria (e são a maioria), a girar como satélites em torno do Chefe do Executivo nacional, supremo distribuidor de benesses, imperando a norma de que ?é dando que se recebe?."