O perigo do livro oficial que relata crimes do estado
contra militantes na ditadura é reviver o revanchismo
Ronaldo França
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Ao lançar, na semana passada, o livro Direito à Memória e à Verdade, sobre os crimes praticados durante a ditadura militar, o presidente Lula avançou sobre um terreno de delicada estabilidade. Não pelo que a obra traz. O livro, editado pela Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, do Ministério da Justiça, relata em profundidade as investigações sobre o desaparecimento e a morte de centenas de militantes políticos naquele período. Dar às famílias desses militantes uma satisfação sobre o que ocorreu e, o que é ainda mais urgente, desvendar o destino dos restos mortais de seus familiares atende a um pleito justo. A abertura dos arquivos da ditadura – muitos ainda ocultos – é um passo importante para que a ferida imposta pelas atrocidades daquele período possa cicatrizar. O desafio é seguir por esse caminho sem produzir fissuras no terreno da democracia, que o Brasil conseguiu pavimentar com sabedoria.
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Em 500 páginas, o livro descreve em detalhes a selvageria que se instalou nos porões da ditadura contra os militantes de esquerda – boa parte, nunca é demais repetir, disposta a qualquer coisa para instalar uma ditadura comunista igualmente sangrenta no país. Revela-se ali que teria sido rotineira a prática de decapitar os guerrilheiros no Araguaia. Há relatos de abusos sexuais contra presas e de como sessões de tortura ajudaram a produzir a farsa dos militantes arrependidos. O lançamento do livro durante um ato oficial no Palácio do Planalto, na semana passada, com a presença do presidente da República, de ministros de estado e senadores, irritou os militares. Afinal, era a chancela presidencial à narrativa. A reação foi clara. Os comandantes das três forças militares não compareceram. Mesmo os oficiais lotados no palácio deram seu recado. Acostumados a trabalhar fardados, desta vez foram vestidos em trajes civis, o que foi entendido por todos como um sinal de descontentamento. O ministro da Defesa, Nelson Jobim, com seu estilo contundente e o senso de autoridade em permanente prontidão, avisou: "Que as Forças Armadas brasileiras recebam este ato como absolutamente natural. Não haverá indivíduo que possa a isso reagir e, se houver, terá resposta". Os militares reagiram. Classificaram a frase de Jobim como uma "afronta desnecessária". De fato, foi. A Lei da Anistia, promulgada em 1979, teve o mérito da eqüidade. Mas os ressentimentos por tudo o que aconteceu ainda existem, o que é compreensível, principalmente quando não se conhece o destino de familiares. O Brasil, porém, já tão adiante no caminho da democracia, não pode namorar com o precipício.