Entrevista:O Estado inteligente

domingo, setembro 02, 2007

Entrevista do ministro Joaquim Barbosa

''''Fiz uma espécie de desconstrução da denúncia''''

Relator do caso do mensalão no STF diz que julgamento esbarrou no mérito e pode apressar um pouco o processo

Leonencio Nossa


Uma história simples e bem montada conquista o leitor. O ministro Joaquim Barbosa, do Supremo Tribunal Federal (STF), revela que optou por essa máxima ao resumir as 14 mil páginas do processo do mensalão num enredo com início leve e explicações no meio para garantir um final compreensível. Em entrevista ao Estado, o relator do caso observa que o clímax no julgamento da denúncia era o trecho sobre os negócios do ''''núcleo político-partidário'''' do esquema, supostamente chefiado pelo deputado cassado José Dirceu (PT-SP). ''''Costurei uma historinha'''', resume. ''''Quando cheguei à quadrilha, tudo já estava muito claro.''''

Num gabinete funcional com poucos objetos, sem sofisticação, Barbosa relata que, no julgamento histórico, só estava preocupado em se colocar na situação de quem iria ouvi-lo. A estratégia deu certo. Por maioria absoluta, o plenário decidiu mandar para o banco dos réus todos os 40 acusados pelo Ministério Público.

''''As pessoas, nas ruas, compreenderam'''', afirma o ministro. A atuação de Barbosa à frente do caso foi elogiada pelos ministros veteranos do Supremo, Celso de Mello e Marco Aurélio, e surpreendeu grandes nomes da advocacia, contratados pelos denunciados.

O ministro comenta, também, que em um caso tão complexo não há como não esbarrar no mérito. ''''É quase impossível, num julgamento como esse, com voto tão longo, você não tangenciar, ainda que levemente, o mérito'''', observou.

Barbosa recebeu o Estado sentenciando: ''''Não me venha com perfil, estou cansado de perfil.'''' Também exigiu o cumprimento do trato de que não comentaria as frases infelizes dos colegas de Supremo publicadas nos últimos dias. A seguir, a entrevista:

Ministro, eu não vou fazer um perfil. Mas o sr. me permite começar com uma pergunta incômoda?

Eu já disse que não vou falar da atualidade, dessas declarações... Nada disso...

Nem sobre aquela frase do ''''salto social''''?

Nada, nada, imagina!!!

O sr. se baseou no processo do caso Collor, aberto por 6 votos a 3 em 1993 (Collor foi absolvido no ano seguinte). A denúncia do mensalão teve um placar mais folgado. O sr. esperava esse resultado?

O caso Collor foi mais curto, mais simples, simplório. Não tinha tantas imputações, não tinha o mesmo número de pessoas com imputações repetidas, nada disso. Foi muito mais simples.

Como o sr. avalia as novas provas levantadas pelo procurador?

As provas que estavam nos autos eram apenas as do momento. O que veio depois eu não pude usar. Na tramitação, o procurador vai requerer o que ele pretende. E eu vou examinar.

O sr. concorda com a visão de alguns de que o julgamento foi diferente porque se avançou em muitos aspectos do mérito?

O julgamento foi todo ele calcado nos dados, no documento do processo e na narrativa que fiz. Me preparei para que não ficassem dúvidas. É quase impossível num julgamento como esse, com voto tão longo, você não tangenciar, ainda que levemente, o mérito. Afinal de contas, nessa parte do julgamento você também está tratando do mérito, só que de maneira superficial.

O julgamento da denúncia, como ocorreu, pode apressar um pouco mais o processo?

Não tenha dúvida. Agora tudo vai seguir um roteiro do que ficou decidido no meu voto e nas decisões tomadas em cima do voto. Esse meu voto vai ser o roteiro do que virá agora. O trabalho já está facilitado.

Muitos avaliam que o sr. foi enfático no voto, especialmente quando disse que o agora réu José Dirceu era o ''''chefe supremo e mentor do esquema''''.

Essa interpretação não é correta. Eu remeti ao procurador, eu estava interpretando o que o procurador quis dizer. O que o procurador disse é que ele era isso, isso e isso. Estava analisando, explicitando aquilo que o procurador quis dizer. Não concordo que seja um voto duro, não. Muito pelo contrário. Acho que faço questão de escolher bem as palavras.

Escolher bem as palavras num processo de milhares de páginas é sempre muito difícil. Como o sr. chegou à síntese?

Com muita reflexão, muita discussão com a minha equipe. É um trabalho de fazer, refazer, pensar, repensar. Um trabalho de crítica. Me coloco na situação de quem vai me ouvir.

Esse didatismo, a leitura e a síntese geralmente não são comuns no mundo do Direito.

Vocês ainda não tinham prestado atenção no meu voto. Isso é muito comum nos meus votos, essa busca de três coisas: simplicidade, clareza e objetividade. Meus votos são curtos, secos. Naqueles processos em que eu não sou o relator, minhas intervenções são curtas. Em geral, um parágrafo, às vezes uma frase. Isso é deliberado. Nos processos em que eu sou o relator, vou ao ponto. Ao ponto com essa busca da clareza e de simplicidade.

O rebuscamento distancia a Justiça das pessoas comuns?

Isso aí é um traço negativo a meu ver do Direito no Brasil. Infelizmente, veio do ensino jurídico. As pessoas acham que falar empolado é bonito. Tem gente que treina para isso.

O voto do sr., o mais longo da história, segundo o ministro Celso de Mello, pode servir de lição para quem estuda Direito?

Nesse aspecto didático sim. Eu tive essa preocupação. Eu fiz uma espécie de desconstrução da denúncia. Utilizei a estrutura da denúncia. A tradição aqui é examinar a situação de cada denunciado. Um por um. É assim que se faz em matéria penal. Pensei: isso não vai dar certo com 40 denunciados. Vai ser uma confusão, não vai dar. Então vamos estudar cada tópico, cada item da denúncia é uma historinha. Vou analisar. Vou costurar essa historinha para apresentá-la de maneira sintética e clara. Esse é um primeiro passo. O segundo passo, que acho que foi fundamental, foi a escolha dos tópicos, o momento de apresentar cada um deles. Eu comecei pelo quinto, não pelo primeiro.

Por que essa inversão?

Por uma razão simples. O julgamento começou às 5 da tarde. Os ministros já estavam cansados. Escolhi o tópico mais simples. Mais neutro. Era uma imputação apenas em relação ao pessoal do Banco Rural. Sem maiores complexidades. Eu queria terminar às 6, 7 horas.

Por que no segundo dia o sr. não continuou a leitura com o item seguinte, o seis?

Aí é que estava a preocupação didática. A idéia era começar pelo três, que era o início da descrição do que se chamou na denúncia de ''''desvio de verbas''''. Mostrando como se processava o desvio de verbas estabelecia-se o início do entendimento do resto. O item três é aquele que fala do Banco do Brasil, do dinheiro do Visanet e do deputado João Paulo Cunha. É o pontapé inicial para entender toda a sistemática. A segunda razão é que o item seis era o maior de todos, era o clímax da história. Eu tinha que calcular muitas horas para contar essa parte. O item seis se dividia em duas partes, corrupção ativa e passiva. Primeiro apresentei a corrupção passiva. Ficou mais fácil para compreender o restante. Cada item foi iluminando o seguinte, foi basicamente isso.

Onde o sr. aprendeu essa técnica?

Aprendi basicamente no meu doutorado na França. O francês prima pela clareza. O texto do francês é formal, tem lá suas regrinhas. Mas quem escuta ou lê de imediato um trabalho jurídico francês, quem lê as quatro primeiras páginas de um trabalho de cem já sabe o que está lá.

A leitura do clímax foi o momento mais difícil do voto?

Não teve dificuldade. Da minha parte tinha a expectativa de como ia ser. Mas, à medida que o tempo foi passando, foi se tornando mais tranqüilo.

A participação de alguns colegas do sr. facilitou o seu voto? Dos ministros Cezar Peluso, Marco Aurélio e Celso de Mello, por exemplo.

Essas intervenções são normais. Há quem gosta de intervir, há quem não gosta. Isso é a regra, é o básico num julgamento de colegiado.

Quando o sr. sentiu que tinha ganhado o plenário?

Não fui preparado para ganhar ou perder. Fui preparado para apresentar mesmo. Só.

Mas, no início, havia uma divisão. Depois houve consenso.

Até o último momento você espera ficar vencido nesse ou naquele voto. O último tópico era da quadrilha. Quando eu cheguei à quadrilha, tudo já estava muito claro.

O sr. poderia explicar por que o ex-deputado Dirceu era o mentor e chefe supremo do esquema e todos prestavam obediência a ele?

Ali estava simplesmente tentando dizer com outras palavras o que estava na denúncia do procurador. Só isso.

Havia a expectativa de o seu voto sofrer algum tipo de influência externa pelo fato de o sr. ter sido indicado pelo presidente Lula.

O meu trabalho não sofre intervenção de ninguém. Não é nesse caso, não. É em todos os casos. Sou conhecido aqui por isso. Por gostar de tomar decisões solitariamente.

Como o sr. avaliou a repercussão?

Eu ainda estou digerindo.

O réu José Dirceu afirmou que o julgamento está sob suspeição. Como avalia essa declaração?

Os réus usam os argumentos que têm a seu alcance. Isso faz parte do jogo.

Em alguns pontos, a denúncia do procurador Antonio Fernando de Souza precisa de mais provas, como no caso de Dirceu...

Não posso dizer. Eu até agora examinei os indícios. Acabou a entrevista.

Mas, ministro, como repercutiu entre as pessoas a sua decisão?

A novidade de tudo isso é que o cidadão comum, as pessoas, nas ruas, compreenderam. Isso é gratificante, muito gratificante.

Êxito do ministro não surpreende, dizem colegas

Atuação no caso foi acompanhada com atenção por procuradores e na Uerj, onde trabalhou

Alexandre Rodrigues


O desempenho do ministro Joaquim Barbosa, na defesa da abertura do processo contra os 40 envolvidos no escândalo do mensalão, no Supremo Tribunal Federal (STF), foi acompanhado com especial atenção nos corredores da Procuradoria Regional da República e da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), os dois últimos endereços profissionais dele antes da chegada à mais alta corte do País. O êxito do ministro não surpreendeu os ex-colegas.

Além dos gols marcados no futebol dos procuradores, Barbosa já tinha deixado no Rio a memória do rigor técnico, da clareza e da impessoalidade que marcaram seu relatório. ''''Ele agiu como o conhecemos: sereno, porém rígido quando preciso. Foi incisivo sem ser descortês'''', avaliou o procurador-chefe federal da 2° Região, Celso de Albuquerque Silva, que ocupou a vaga deixada por Barbosa no Rio.

A performance de Barbosa foi comentada pelos procuradores do Rio no correio eletrônico interno - entre uma espiada e outra na TV Justiça. No entanto, diferentemente da correspondência virtual entre os ministros Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski durante o julgamento, os procuradores debateram sobretudo a objetividade do relatório.

''''Joaquim é um professor. Encadeou de forma didática o relatório, foi técnico e correto'''', elogiou o procurador Roberto Ferreira, que era procurador-chefe na época da indicação de Barbosa para o STF.

Reservado, sério e dono de um semblante fechado, que polemizava muitas vezes com colegas e servidores: essa é a descrição mais comum de Barbosa em relação à década que passou no Rio, até ingressar no STF em 2003. Mas o jeito discreto não impedia que o então procurador da área de tutela coletiva brindasse os colegas com brilhantes jogadas nas ''''peladas'''' de procuradores em clubes da Barra da Tijuca.

''''Bate um bolão! Se quisesse, poderia ter sido jogador profissional'''', disse o procurador Rogério Nascimento. ''''Tem boa canhota'''', confirmou Ferreira.

''''Joaquim não é mal-humorado. Tem uma ironia meio britânica, uma postura blasé. Quem conhece menos pode ter a impressão de arrogância, mas acho que não é nada além do que o reflexo das dificuldades naturais que uma pessoa negra enfrenta'''', disse Nascimento.

SALA DE AULA

A origem humilde em Paracatu (MG) e o esforço para viabilizar seus estudos é um tema do qual Barbosa nunca fugiu. Ele recorria à sua história para motivar alunos na Uerj, a primeira universidade do País a adotar políticas afirmativas, tema que estudou.

Luiz Roberto Barroso, professor de Direito Constitucional que foi colega de departamento de Barbosa até quando ele se licenciou do posto de professor-adjunto de Direito Administrativo e Constitucional, conheceu o ministro na França, onde fizeram o doutorado, mas nunca partilhou de sua intimidade. Para o professor, o recato ajudou Barbosa a relatar um caso tão polêmico sem se deixar influenciar. ''''Ele se preparou muito bem'''', disse Barroso.

O diretor da Faculdade de Direito, Maurício Mota, também acha que foi da sala de aula que o ministro extraiu o modelo de argumentação: ''''Suas aulas eram procuradas por sua exposição sempre clara, sem o abuso do juridiquês. É uma característica dele, que trouxe de sua experiência nos Estados Unidos.''''

Quem é: Joaquim Barbosa


Antes da nomeação ao STF, Joaquim Barbosa integrou o Ministério Público Federal, de 1984 a 2003, e foi chefe da Consultoria Jurídica do Ministério da Saúde, além de advogado

É doutor e mestre em Direito Público pela Universidade de Paris-II (Panthéon-Assas)

É professor licenciado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj)

Arquivo do blog