Entrevista:O Estado inteligente

sábado, outubro 07, 2006

O risco é de 1 em 200 milhões


Essa é a possibilidade matemática de que dois
aviões se choquem a mais de 10 quilômetros
de altura. No caso do Boeing da Gol, começa-se
a elucidar a seqüência de erros que culminou
na pior tragédia da aviação brasileira


Rafael Corrêa e Rosana Zakabi


Eraldo Peres/AP
Destroços do Boeing na selva de Mato Grosso: o avião se despedaçou no ar e 154 corpos se espalharam num raio de 20 quilômetros

Décadas de estudos sobre acidentes aéreos mostram que um erro não derruba avião. É preciso que quatro ou cinco falhas se combinem para produzir uma tragédia. Foi o que aconteceu na sexta-feira, 29 de setembro passado, quando um Boeing 737-800 da companhia aérea Gol, que fazia o vôo 1907 entre Manaus e Brasília, se espatifou na selva amazônica depois de se chocar com um jatinho Legacy que voava no sentido contrário. Todos os 148 passageiros e seis tripulantes do Boeing morreram, fazendo do desastre o maior da história da aviação brasileira. O Legacy sofreu avarias na extremidade da asa esquerda e na cauda e conseguiu fazer um pouso de emergência numa base da Força Aérea Brasileira ao sul do Pará. Seus cinco passageiros, o piloto e o co-piloto saíram ilesos. Ambos os aviões eram novos em folha. O 737 da Gol, entregue no início de setembro, tinha apenas 200 horas de vôo. O Legacy, modelo executivo fabricado pela Embraer em São José dos Campos, fazia o seu vôo inaugural com destino aos Estados Unidos, onde seria entregue ao comprador, uma empresa de táxi aéreo.

Como é possível ocorrer um choque entre dois aviões de última geração, dotados da mais moderna tecnologia, voando numa área de baixo tráfego aéreo e em céu de brigadeiro? O mistério será esclarecido. Três das quatro caixas-pretas – onde são gravados os dados do vôo e as conversas dos pilotos – dos dois aviões foram recuperadas. Os controladores de vôo estão sendo interrogados e as imagens de radar deixadas pelos aviões nos centros de rastreamento civis e militares estão preservadas. Tragédias muito mais misteriosas do que essa, que deixaram sinais apenas tênues dos acontecimentos, foram cabalmente esclarecidas. É questão de tempo até que as autoridades possam reconstituir cada detalhe do fatídico vôo 1907.


Brazilian Air Force/Handout/Reuters
Militares com a caixa-preta do Boeing

Até a sexta-feira passada, porém, tudo o que se podia fazer era eliminar as hipóteses mais absurdas e focalizar as evidências mais sólidas já produzidas pelos investigadores do acidente. Os dados disponíveis permitiam traçar a explicação mais provável para o acidente. O erro número 1, sobre o qual não pairam dúvidas, é que o Legacy voava fora da altitude recomendada. Todo avião que cruza os céus, em qualquer parte do mundo, é obrigado a seguir o seu plano de vôo, um conjunto de instruções que inclui a altitude, a velocidade e o trajeto que o aparelho deve percorrer para ir de um aeroporto a outro. O plano de vôo serve também para os centros de controle em terra monitorarem o tráfego aéreo, evitando que duas aeronaves trafeguem em rota de choque. No caso do acidente na Amazônia, o Legacy voava a 37.000 pés de altitude, a mesma do Boeing da Gol, quando seu plano de vôo prescrevia 36.000 pés. Esse equívoco surpreende também porque na rota em que estavam, que é de sentido duplo, os aviões trafegam em altitudes de número par – as de número ímpar são reservadas às aeronaves que rumam para o sul. Como o Legacy voava de São José dos Campos, no interior de São Paulo, para Manaus, onde faria uma escala, o piloto jamais poderia seguir numa altitude medida em número ímpar.

Os controladores de vôo do Cindacta 1 – órgão responsável pela fiscalização dos vôos em boa parte do Sudeste e no Centro-Oeste do país – dizem ter tentado entrar em contato com o Legacy várias vezes, pelo rádio, depois que a aeronave passou pelo espaço aéreo sobre Brasília. Seu objetivo era avisar ao piloto que ele deveria baixar 1.000 pés, até alcançar a altitude correta. Os controladores afirmam que não obtiveram resposta. Minutos depois, nova surpresa: os controladores teriam constatado que, a bordo do Legacy, o aparelho chamado transponder, que transmite os dados sobre velocidade, altitude e rota para outros aviões nas imediações e para as bases em terra, não estava funcionando. Sem o transponder ativo, o controle terrestre não consegue detectar a altitude correta do avião – conta apenas com os dados pouco precisos fornecidos pelos radares básicos, que enxergam os aviões como pontos no céu.


Fotos Força Aérea Brasileira
O Legacy conseguiu descer na base militar do Cachimbo, mesmo sem parte da asa e da cauda (detalhe). O piloto Joe Lepore (de camiseta branca) e o co-piloto Jan Paladino (de boné) estão proibidos de deixar o Brasil
Marcos Xavier/TV Cidade Verde/AE

A impressão dos controladores do Cindacta foi a de que o piloto do Legacy ignorou os chamados por rádio e preferiu desligar o transponder para voar sem monitoramento terrestre. E que motivos ele teria para isso? Segundo fontes da Aeronáutica, uma das hipóteses é que o piloto estaria testando o avião no primeiro vôo do aparelho, e para isso teria de fazer manobras que fugiriam ao plano de vôo. Sem o transponder, essas manobras ficariam invisíveis ao comando de terra. A terceira surpresa viria após o acidente, quando o transponder voltou a funcionar, permitindo que o piloto emitisse sinais de emergência para os radares e pedisse socorro.

O piloto do Legacy, Joe Lepore, e o co-piloto, Jan Paul Paladino, ambos americanos e funcionários da empresa de táxi aéreo que comprou o Legacy, admitiram na semana passada que voavam a 37.000 pés, mas negam com veemência que tenham desligado o transponder ou desprezado as tentativas do Cindacta 1 de chamá-los por rádio. Sua versão é oposta à dos controladores. Lepore e Paladino dizem que, ao cruzar os céus de Brasília, tentaram repetidamente contatar o controle em terra para confirmar se deveriam mudar de altitude, sem sucesso. Segundo eles, como não conseguiram contato, optaram por manter a aeronave em 37.000 pés – altura determinada pelo plano de vôo para o trecho entre São José dos Campos e Brasília. A Aeronáutica admite que há falhas de comunicação na região em que ocorreu o acidente, mas alega que elas não chegam a impossibilitar o contato dos controladores de terra com as aeronaves que cruzam a região diariamente.


Ana Claudia Jatahy
A amazonense Helen Garcia, de 37 anos, foi vítima de dois acidentes aéreos. O primeiro, quando tinha 1 ano de idade. Ela havia contraído coqueluche e acreditava-se então que as bactérias morriam em altas altitudes. Por isso, as crianças doentes eram embarcadas em vôos. O avião caiu na floresta e os passageiros foram resgatados pelos índios. Na semana passada, Helen voava com o marido, o procurador Mário Braule Pinto, e o filho Pedro Henrique, de 4 anos, no avião da Gol

Há duas hipóteses para o transponder do Legacy ter ficado inoperante após passar por Brasília. A primeira: o piloto o desligou. A segunda: o equipamento teve problemas técnicos. De qualquer forma, sua falta acarretou uma nova etapa na seqüência de erros que resultou no desastre. Sem o transponder, o sistema anticolisão dos aviões atuais, chamado TCAS, fica inoperante. O TCAS monitora os aviões num raio de até 50 quilômetros e informa o piloto sobre o risco de eventuais colisões. Quando o choque é iminente, o aparelho aciona um alarme e informa o piloto sobre a melhor manobra de evasão a ser feita. Para que dois aviões em rota de colisão não façam a mesma manobra de fuga e acabem se chocando, os TCASs "conversam" entre si e "tomam" decisões conjuntas. Só que o TCAS depende do transponder para funcionar. Como o transponder do Legacy estava desligado ou com defeito, o TCAS do Boeing não conseguiu detectar sua aproximação e desviar.


Álbum de família
A botânica paraense Ângela Conte Leite, 55 anos (na foto com as filhas e o marido), reservou o fim de semana para viajar com o filho, Mário Lleras, 25 anos, e o neto Daniel Lleras, de 5 anos, para visitar outra filha em Brasília. "De uma hora para outra, a família perdeu representantes de três gerações", diz Inocêncio Gorayeb, cunhado de Ângela

Depois de quinze minutos de vôo sem transponder nem TCAS, o Legacy chocou-se com o Boeing. A hipótese mais provável é que a ponta dobrada da asa esquerda – chamada winglet – e a ponta do estabilizador esquerdo do jato executivo tenham atuado como navalhas que cortaram e arrancaram um pedaço da asa esquerda do Boeing. O que dá sustentação aerodinâmica ao avião é a diferença de pressão acima e abaixo das asas. Sem parte de uma delas, o aparelho se desgoverna e entra em queda, uma espiral fatal em direção ao solo. Boa parte do combustível do Boeing, que fica nas asas, teria se dispersado pelo ar – por isso não haveria ocorrido a explosão da aeronave. Devido à violência do mergulho, o avião começou a se despedaçar em pleno ar, espalhando destroços num raio de 20 quilômetros. É quase certo que houve despressurização da cabine depois do choque, reduzindo bruscamente os níveis de oxigênio. Numa situação como essa, os passageiros perdem a consciência em cerca de um minuto. Em menos de cinco minutos ocorre a morte por falta oxigênio. Portanto, é possível que os passageiros, ou parte deles, tenham chegado ao solo já sem vida.


Álbum de família
A psicóloga Joana Batalha Ignácio, de 28 anos, queria fazer uma visita-surpresa para a mãe, Maria de Fátima Batalha, em Belo Horizonte. Pegaria o vôo até Brasília e, de lá, seguiria para a capital mineira. Por isso, antes de embarcar, ligou para a mãe dizendo que não poderia visitá-la por causa de trabalho. "Quando soube da queda do avião, não imaginava que minha única filha poderia estar nele", diz Maria de Fátima

Mesmo que tenha havido contato visual entre as duas aeronaves antes do choque, a velocidade com que se aproximaram tornaria inviável uma manobra de desvio eficaz. O Legacy e o Boeing voavam a uma velocidade média de 800 quilômetros por hora. As duas velocidades somam 1 600 quilômetros por hora, mais do que alcança uma bala de pistola 9 milímetros. Também seria impossível que uma das aeronaves ouvisse o ruído da outra se aproximando – a soma de suas velocidades é superior à da propagação do som no ar. No momento do acidente, os tripulantes do Legacy sentiram um choque forte e ouviram um ruído seco, mas não se deram conta de que haviam batido em outra aeronave. A seguir, constataram as avarias na asa e no estabilizador. Três minutos depois da colisão, o piloto emitiu um sinal de emergência do transponder para os radares do sistema aéreo. Eles acabaram pousando 25 minutos depois, na base aérea de Cachimbo, no Pará. Só após o pouso souberam que haviam abalroado um Boeing, causando um desastre com 154 mortos.


Jovino Braga
A médica paraibana Fabiana Calandrini, 32 anos, viajaria para Brasília com o marido, o médico Denis Calandrini, e o filho, João, de 1 ano e 6 meses (com ela na foto acima), para a cerimônia de casamento do irmão de Fabiana, marcada para este fim de semana. Na última hora, Calandrini precisou adiar a viagem devido a um imprevisto no trabalho. Assim, Fabiana e o filho tiveram de embarcar sozinhos. O médico ficou de encontrá-los depois, na Paraíba

Choques de aviões em pleno ar são raros. Geralmente ocorrem nas proximidades dos aeroportos e envolvem um avião grande e um pequeno. Colisões em grandes altitudes e velocidade de cruzeiro, como a que envolveu o Boeing da Gol, são ainda mais escassas. Desde os anos 60 ocorreram apenas dois outros desastres nessas condições. Um deles foi nas proximidades de Nova Délhi, na Índia, em 1996, envolvendo um Ilyushin russo com bandeira do Cazaquistão e um Boeing 747 saudita. As investigações concluíram que o avião cazaque voava na altitude errada e que o piloto não cumpriu as instruções do controle de tráfego aéreo. A segunda colisão aconteceu na fronteira da Suíça com a Alemanha, em 2002, entre um Boeing 757 de carga e um Tupolev russo. O inquérito concluiu que o acidente foi provocado por um erro do controlador da torre de Zurique. O cruzamento do número de trombadas no ar com o de vôos realizados pela aviação comercial nos últimos cinqüenta anos mostra que o risco de acontecer uma colisão entre aviões em grande altitude e velocidade de cruzeiro é de 1 em 200 milhões.


Álbum de família
O estudante de medicina Átila Antônio Assad Rezende, de 24 anos, planejava chegar à cidade de Rubiataba, em Goiás, para marcar a data de casamento na igreja que freqüentava desde criança. Ele e a noiva, Flávia Máximo, se casariam em dezembro. "Antes de embarcar, ele pediu para eu rezar muito porque seria um mês difícil", diz Flávia (na foto com Átila). "Tive uma sensação ruim e insisti para que não embarcasse"

No jato Legacy, além do piloto e do co-piloto, estavam dois funcionários da área comercial da Embraer, a fabricante do avião, dois sócios da empresa de táxi aéreo que adquiriu o aparelho e um colunista do jornal The New York Times, Joe Sharkey, especializado em aviação e negócios. Como as investigações sobre o acidente correm sob sigilo na Aeronáutica, o repórter americano tornou-se a única testemunha da colisão a expor publicamente sua versão dos acontecimentos. Ao voltar a Nova York, Sharkey publicou um artigo no qual descreve o vôo do Legacy, o momento do choque e os dramáticos 25 minutos que transcorreram até a aeronave localizar um campo de pouso e aterrissar. O jornalista aplaude o trabalho do piloto e do co-piloto durante a situação de emergência e os classifica de heróis. Para a Justiça brasileira, os heróis podem ser, na verdade, vilões. Na semana passada, a Polícia Federal apreendeu os passaportes de Joe Lepore e Jan Paladino para evitar que eles deixem o país até que as circunstâncias do acidente sejam esclarecidas. Caso fique provado que eles desligaram o transponder do Legacy – impedindo que o TCAS do Boeing da Gol detectasse sua presença na mesma rota – e que se recusaram a receber instruções pelo rádio, serão acusados de homicídio culposo por causar o choque que derrubou o avião da Gol. Nas próximas semanas, a seqüência de erros que provocou o desastre com o vôo 1907 da Gol será esclarecida. Acidentes sempre ocorrerão, mas espera-se que da elucidação das causas da tragédia surjam dados e ensinamentos que tornem as viagens aéreas ainda mais seguras.

Com reportagem de Érica Chaves, Leoleli Camargo e Leonardo Coutinho

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