Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, outubro 27, 2006

Luiz Garcia - Para nossa vergonha



O Globo
27/10/2006

São duas mulheres contra o crime. Mas só se assemelham na intensidade de sua indignação contra a prosperidade do banditismo no Rio.

Primeiro conhecemos Dona Vitória (nome falso), que concordou em contar sua história em agosto do ano passado. Moradora da Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana, cansara-se de ver da janela o tráfico de drogas prosperando, sob bem remunerada miopia de alguns policiais. E começou a filmar a infame festa. Todo dia, toda hora.

Depois que o trabalho de Dona Vitória foi revelado - foram dois anos de uma câmara na mão e muito civismo na cabeça - bandidos e policiais já foram condenados em dois processos. Outros esperam sua vez. A ladeira passou a viver sob relativa calma.

O povo carioca manifestou sua gratidão à heroína. O Estado, um pouco mas não muito: elogiou da boca para fora, mas, até agora, conseguiu bloquear o avanço de um processo por perdas e danos movido por uma mulher solitária, condenada ao anonimato unicamente porque reagira civicamente à incompetência oficial debaixo de sua janela. Certamente ninguém imagina que seja confortável para uma senhora idosa viver dentro das limitações dos nossos rudimentares programas de proteção de testemunhas.

A outra mulher responde à violência urbana de outra maneira: adota-a, e prega que outros cidadãos imitem seu exemplo. É a enfermeira aposentada Maria Dora Arbex. Há poucos dias, disparando uma arma que não tinha sequer o direito de levar na bolsa, feriu na mão um morador de rua que aparentemente (digamos, provavelmente) se preparava para assaltá-la.

Não é fácil condenar um gesto de autodefesa. Mas não há motivo para recomendar a todos os cariocas ações obviamente imprudentes - e possivelmente improcedentes. Nem se justifica a tentativa de fazer da enfermeira a musa de um movimento em defesa da paz urbana a qualquer custo - mesmo que seja a paz dos cemitérios.

Dona Maria Dora ganhou, na Câmara dos Vereadores, um prêmio da bancada do "bandido bom é bandido morto", e deitou falação sobre as políticas sociais que pessoas de sua mentalidade defendem. Propôs, por exemplo, que a população de rua, na falta de albergues, fosse levada mar afora para qualquer lugar suficientemente distante. (No dia seguinte,teve a precaução de explicar que essa sugestão não visava ao extermínio dos mendigos.)

Uma das propostas que não desmentiu mostra com precisão as raízes do ideário de d. Maria Dora e de seu fã-clube político: é a proposta de proibir a população de rua de ter filhos.

A enfermeira boa no gatilho conclamou, na exortação final: "Está na hora de limpar as calçadas. Dos mendigos, das fezes e da urina que deixam."

Não faltaram palmas na Câmara para a musa desse tipo de faxina urbana.

Para nossa vergonha. E nosso medo, também.

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