Entrevista:O Estado inteligente

domingo, outubro 29, 2006

Daniel Piza

O homem cordial


“Os elementos anárquicos sempre frutificaram aqui facilmente, com a cumplicidade ou a indolência displicente das instituições e costumes.”

“Essa ânsia de prosperidade sem custo, de títulos honoríficos, de posições e riquezas fáceis, (é) notoriamente característica da gente da nossa terra.”

“Se os homens se ajudam uns aos outros, notou um observador setecentista, fazem-no ‘mais animados do espírito da caninha do que do amor ao trabalho’.”

“Sinuosa até na violência, negadora de virtudes sociais, contemporizadora e narcotizante de qualquer energia realmente produtiva, a ‘moral das senzalas’ veio a imperar na administração, na economia e nas crenças religiosas.”

“O patriarcalismo e o personalismo (foram) fixados entre nós por uma tradição de origens seculares. Muitas das grandes iniciativas progressistas puderam ser toleradas (...) enquanto não comprometessem esses padrões venerandos.”

“A mentalidade da casa-grande invadiu assim as cidades e conquistou todas as profissões, sem exclusão das mais humildes.”

“A família colonial fornecia a idéia mais normal do poder (...). O resultado era predominar (...) invasão do público pelo privado, do Estado pela família.”

“Nenhum método, nenhum rigor, nenhuma previdência, sempre esse significativo abandono que exprime a palavra ‘desleixo’.”

“À medida que subiam na escala social, as camadas populares deixavam de ser portadoras de sua primitiva mentalidade de classe para aderirem à dos antigos grupos dominantes.”

“(Existe) certa incapacidade, que se diria congênita, de fazer prevalecer qualquer forma de ordenação impessoal e mecânica sobre as relações de caráter orgânico e comunal, (...) que se fundam no parentesco, na vizinhança e na amizade.”

“No Brasil, onde imperou, desde tempos remotos, o tipo primitivo da família patriarcal, o desenvolvimento da urbanização (...) ia acarretar um desequilíbrio social, cujos efeitos permanecem vivos ainda hoje.”

“A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro. (...) Seria engano supor que possam significar ‘boas maneiras’, civilidade. (...) No ‘homem cordial’, a vida em sociedade é, de certo modo, uma verdadeira libertação do pavor que ele sente em viver consigo mesmo.”

“Esse modo de ser parece refletir-se em nosso pendor acentuado para o emprego dos diminutivos.”

“O desconhecimento de qualquer forma de convívio que não seja ditada por uma ética de fundo emotivo representa um aspecto da vida brasileira que raros estrangeiros chegam a penetrar com facilidade.”

“O Estado brasileiro preserva como relíquias respeitáveis algumas das formas exteriores do sistema tradicional (...): uma periferia sem um centro. A maturidade precoce, o estranho requinte de nosso aparelhamento de Estado, é uma das conseqüências de tal situação.”

“A ideologia impessoal do liberalismo democrático jamais se naturalizou entre nós.”

“A idéia que de preferência formamos para nosso prestígio no estrangeiro é a de um gigante cheio de bonomia superior para com todas as nações do mundo.”

“As constituições feitas para não serem cumpridas, as leis existentes para serem violadas, tudo em proveito de indivíduos e oligarquias, são fenômeno corrente em toda a América do Sul.”

“‘Não há nada mais parecido com um saquarema do que um luzia no poder’: o dito célebre de Holanda Cavalcanti reflete a verdade, de todos sabida, acerca da semelhança fundamental dos dois grandes partidos do tempo da monarquia.”

“Na tão malsinada primazia das conveniências particulares sobre os interesses da ordem coletiva revela-se nitidamente o predomínio do elemento emotivo sobre o racional. (...) A ausência de verdadeiros partidos não é entre nós (...) a causa de nossa inadaptação a um regime legitimamente democrático, mas antes um sintoma dessa inadaptação.”

“É inegável que em nossa vida política o personalismo pode ser em muitos casos uma força positiva. (...) Assegurou-se, por essa forma, uma estabilidade política aparente, mas que de outro modo não seria possível. Todavia (...) com a simples cordialidade não se criam os bons princípios.”

RODAPÉ (1)
As frases acima são de Raízes do Brasil, o clássico de Sérgio Buarque de Holanda que acaba de receber edição comemorativa de 70 anos. Quaisquer semelhanças não são meras coincidências.

Curiosamente, Sérgio Buarque achava que o homem cordial - emotivo, avesso ao mérito e ao método, à disciplina e à solidão, incapaz de lidar regradamente com o lucro e a concorrência - estava fadado a desaparecer com a urbanização do Brasil. Isso se deve à sua visão historicista, à noção de que a democracia capitalista só seria possível em culturas de disciplina rígida. (Como Gilberto Freyre, seu antípoda nas opções políticas, ele parecia acreditar que esse regime era incompatível com nossos traços afetivos.) Em alguns aspectos, de fato, o brasileiro mudou em relação ao que ele descreve: não é mais tão fatalista e anárquico; um pouco da mentalidade moderna se incutiu em seus atos. Mas o personalismo, que Sérgio Buarque enxerga pioneiramente como maior força conservadora do Brasil, segue no centro do poder e da cultura.

RODAPÉ (2)
Quem sonhava em fazer um texto só de citações, valorizadas pelo contexto em que fossem montadas, era o pensador alemão Walter Benjamin, de quem a UFMG e a Imprensa Oficial acabam de lançar uma extraordinária edição das Passagens. É um volume de nada menos que 1.167 páginas, organizado por Willi Bolle e traduzido por Irene Aron, entre outros. (Os capítulos sobre Paris, Baudelaire e o “flâneur”são conhecidos de parte do público brasileiro; foram editados pela Brasiliense nos anos 80. Mas somam metade do livro.) Nessa obra sintomaticamente inacabada, Benjamin comenta a relação entre a estrutura econômica e a expressão cultural. Como ficaram a arte e o conhecimento diante da industrialização? Revisando a teoria marxista (“ora presunçosa, ora escolástica”), ele procura nexos mais complexos entre classes e valores. Daí seu método de imersão, fragmentário, que tenta fugir do esquemático.

Ele deixa claro que não é contra a era moderna e que para ele não existem períodos “decadentes”. Não consegue, porém, disfarçar sua ilusão de totalidade, como se na montagem de idéias pudesse abarcar todos os movimentos da história cultural (“até que todo o passado seja recolhido no presente”); há uma crença excessiva na dialética, que ele mesmo reconhece embebida em teologia. Mas o mundo que descreve das grandes cidades - com suas modas e propagandas, com sua confusão entre arte e status, com sua rejeição ou idealização da natureza, com seu gosto por grandiloqüência e melodrama - está presente de muitos modos. Em suas notas perspicazes, ele mostra, por exemplo, como o cidadão projeta no consumo seu próprio valor pessoal e como a tecnologia faz uma apologia da novidade que não é real na maioria dos casos.

A ARTE DE EXPOR
Bom descarrego para o armazém politizado da Bienal seria visitar ao lado, no MAM, a exposição dos 50 anos do concretismo. Mas as obras do movimento, que fez no Brasil o que neoplasticistas e abstratos geométricos fizeram na Europa três décadas antes, também pecam pelo programático. Os poemas, por isso mesmo, foram os que mais envelheceram (como o de Augusto de Campos em que se lê em primeiro plano “Cuba sim/ Ianque não”). Já as esculturas sobreviveram em melhor forma, especialmente as de Frans Weissmann e Amílcar de Castro. É na OCA, onde se vê no momento o acervo do MAM (pouco exibido por falta de espaço, apesar do pavilhão adjacente), que o prazer visual aumenta - com pinturas de Volpi e do Paulo Pasta dos anos 90, peças de Sergio Camargo e Regina Silveira, gravuras de Goeldi, fotos de Thomas Farkas e Miguel Rio Branco.

POR QUE NÃO ME UFANO
Como é que aqueles que diziam que o Brasil estava dividido em duas metades vão explicar agora que Lula tenha 2/3 dos votos? E que tenha ganhado proporcionalmente mais votos entre os mais ricos e instruídos? Talvez luzias e saquaremas continuem mais parecidas do que admitem ser...

Aforismo sem juízo - Todo gesto de grandeza é ao mesmo tempo modesto e vaidoso.

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