A eleição presidencial de hoje - a sétima desde o fim do regime militar, incluídos os segundos turnos - é mais um alicerce sobre o qual se amplia o edifício da democracia brasileira. Apesar de tudo o que há para ser melhorado nessa edificação - a começar da questão pantanosa do financiamento das campanhas, sobretudo no que toca à escolha do chamado supremo mandatário -, não temos do que nos envergonhar diante de nenhum outro país do mundo: a eleição é fiscalizada por um tribunal íntegro e independente, transgressões das regras da propaganda são punidas, o acesso às urnas é universal e desimpedido, as apurações são corretas e os resultados, inquestionáveis. Não é pouca coisa para um país cujo último ciclo ditatorial durou o mesmo tempo que o atual período de pleno funcionamento das instituições democráticas.
Mas a sucessão que hoje se decide contém ao mesmo tempo duas características peculiares, das quais não se pode dizer que contribuíram para a purificação do voto popular - definido como o ato de decidir entre os candidatos a partir de critérios objetivos, baseados, por sua vez, em um conhecimento minimamente suficiente de suas propostas para resolver os problemas que desafiarão o vencedor. A primeira característica deste confronto é que, a rigor, confronto foi o que menos se viu nesses meses. É verdade que a reeleição é, sempre e antes de mais nada, um plebiscito sobre o desempenho do incumbente: a escolha posta ao eleitor é entre mais do mesmo ou um novo rumo. Ainda assim, não se esperava que esse padrão se impusesse como se impôs.
Já no primeiro turno, com quatro nomes em princípio competitivos e quatro figurantes, se tanto, tudo girou em torno de um só candidato - o presidente Lula. Pode-se afirmar com segurança que a grande maioria dos cerca de 105 milhões de eleitores do 1º de outubro saiu de casa para votar em Lula ou contra ele - e uma parcela substancial dos sufrágios dados a Heloísa Helena e a Cristovam Buarque visava simplesmente a adiar por um mês a decisão, levando-a para o tira-teima de hoje. Agora, é ocioso especular como teria transcorrido a campanha se o candidato de oposição fosse José Serra, mas não é de todo improvável que ela se assemelhasse mais ao segundo turno de 2002, quando o atual componente plebiscitário foi muito menos marcante (embora também naquela eleição a tática petista fosse transformar a eleição em um julgamento do governo Fernando Henrique).
Desta vez, Lula partiu para a reeleição tendo três trunfos na mão: a sua personalidade, as suas realizações e os erros dos adversários. Personalidade, no caso, significa mais do que carisma e talento incomum para se comunicar com o povo no comprimento certo de onda. Significa também associar de forma inextricável, na percepção do eleitor, atributos pessoais e biografia. Comício após comício, era como se dissesse: eu sou o que sou porque vim de onde vim. São dezenas de milhões os eleitores que se espelham na sua origem e, ao ouvi-lo, refazem mentalmente a própria trajetória. Com esse formidável patrimônio e plena disposição para pôr a história de ponta-cabeça, Lula levou legiões de brasileiros a crer que as suas realizações econômicas e sociais resultaram da rejeição do que fazia “o governo das elites” - e não da adesão à política fiscal que derrubou a inflação, beneficiando os mais pobres em primeiro lugar.
Em eleições, vale o que parece - e, para a maioria do eleitorado, ficou parecendo que a oposição nada tinha a lhe oferecer além do “samba de uma nota só” da moralidade política. O terrorismo de rotular o tucano Geraldo Alckmin como privatista e a sua incapacidade de sair da defensiva fizeram o resto. Complementa o aspecto negativo da sucessão a sua segunda característica, referida no segundo parágrafo deste texto. Os candidatos tiveram todas as oportunidades - entre elas, uma oferta sem precedentes de entrevistas e debates na reta final da campanha - para falar do que mais interessa: os entraves ao crescimento e as decisões impopulares que precisam ser tomadas para removê-los. Lula, por falsear a amarga realidade das finanças do setor público, e Alckmin, por se esquivar do assunto, como que se uniram para produzir a grande fraude da temporada - a interdição, na campanha, do tema do qual tudo mais depende.
Em conseqüência, a grande maioria dos eleitores vota hoje sabendo nada ou quase nada do que está para atingi-la amanhã ou depois.