Acho que sou meio pé-frio em matéria de prever domingos ensolarados e alegres. Geralmente amanhece um dia pesado e cor de chumbo, a umidade tornando os objetos pegajosos, amolecendo os ossos e fazendo a vida parecer ainda mais difícil do que é. Mas insisto, embora baiano e padecendo do mal de acreditar em todas as superstições de que me falam, pois o máximo que pode acontecer é minha fama de pé-frio ganhar mais uma estrela. Hoje é um lindo domingo de sol e acordamos todos de excelente humor, logo reforçado por uma olhada pela janela, na direção do esplendoroso céu anil do nosso Brasil varonil, juvenil, primaveril, gentil, de venturas mil e outras rimas de hino.
Sim, é um lindo domingo de sol neste país abençoado por Deus e bonito por natureza. E, mais ainda, muito importante, importantíssimo, dia de exercermos nosso sagrado direito obrigatório (figura jurídica sem dúvida singular, no que certamente demonstramos mais uma vez a criatividade nacional), o de eleger nosso próximo presidente da República. É a festa da democracia e, sem dúvida alguma, milhões de corações compatriotas palpitam descompassados neste justo instante, em extra-sístoles cívicas e taquicardias cidadãs. É o dia da escolha e as paixões políticas nos avassalam, o suspense desencadeado no momento solene nos faz perguntar se não tremerão as nossas mãos, ao digitar o número que mudará nossas vidas.
Mas não pretendo falar propriamente na eleição, pois não quero ter o mesmo destino do Jabor, que foi censurado. Eu também já fui censurado em incontáveis ocasiões ao longo da vida, mas me regenerei e hoje faço tudo para me comportar e merecer a benevolência de toda e qualquer autoridade. Acredito que criei juízo depois dos 60. Muito feio, isso do Jabor, espero que ele tenha aprendido a doravante perguntar se pode, antes de emitir alguma opinião. Portanto, vou prestar atenção, para não dizer nada que possa ser interpretado como propaganda política, ou violação de lei eleitoral. Deus me livre de ir para a cadeia, como acontece aqui com grande rigor, em relação aos que cometem delitos de qualquer natureza.
Não, não, penso em sair tranqüilamente, para flanar sem pressa em direção à minha seção eleitoral, que fica a poucos quarteirões de onde moro. Vou de bermudas e chinelos mesmo, pensando vagamente em como seria uma boa que o mundo parasse para eu descer. Mas ele, como sabemos, não pára, quem pára somos nós, mais cedo ou mais tarde. Então não adianta fantasiar, o negócio é aceitar, apesar de todas as evidências em contrário, que de fato existe uma realidade e enfrentá-la da forma mais eficaz possível. Levo em conta o que repetia meu finado amigo Cuiúba - pior seria se pior fosse - e vou adiante, procurando alguma coisa da realidade para ocupar a mente.
Lembro então que li no jornal uma novidade que eu já pressentia, mas não falava com ninguém. A situação - perdão, filólogos; alô, turma da informática, do economês e do português moderno - assaltacional no Rio de Janeiro chegou a um ponto interessantíssimo, uma espécie de moto-contínuo. Deu no jornal que um casal foi assaltado na Tijuca e seu carro levado, junto com os donos. Daí a uns 500 metros, outros assaltantes assaltaram os assaltantes do carro assaltado, liberaram o casal e levaram o carro.
O estalo não pôde deixar de me ocorrer: chegamos à assaltância (olhem aí outra palavra nova, novos fenômenos carecem de novos nomes e mal posso esperar o dia em que algum governante usar o verbo “assaltabilizar”, que não sei o que significaria, mas soa moderníssimo) auto-sustentável. Fechou-se o ciclo econômico em torno desse - como direi? - serviço, que agora pode manter-se a si mesmo. O mercado acaba tomando conta de tudo e acertando tudo direitinho. O mercado é danado, principalmente quando está nervoso, ou seja, quase sempre. Então teremos uma rotatividade assaltacional que garantirá o funcionamento ininterrupto desse importante setor da economia, gerando trabalho e riqueza, além, de redistribuir a renda celeremente, se bem que com critérios que ainda falta o governo definir, como falta criar-se o Estatuto do Assaltante, grave lacuna em nossa legislação.
É mesmo, sou cheio de idéias, vejo-me obrigado a reconhecer. E isto me faz ver, com doloroso arrependimento, que eu devia ter me candidatado. De repente eu me elegia e seria um rosário sem fim de boas idéias. Bem, com o progresso da ciência médica e o aumento da longevidade, talvez eu ainda possa tomar essa atitude na próxima eleição. Se me eleger, pode ser que não dê tempo para eu me fazer, mas pelo menos poderei quebrar o galho de meus filhos. É isso que dá negligenciar a vida política, a gente acaba perdendo as melhores bocas por bobeira.
Mas não adianta chorar sobre o leite derramado, voltemos à realidade. É bem possível que algumas pessoas estejam lendo esta coluna já depois de saber do resultado. E o resultado, em que acho que posso falar sem ser censurado porque saiu em pesquisas divulgadas, terá sido a vitória de Nosso Guia, o melhor presidente de todos os tempos, passado, presente e futuro, Deus seja louvado. Pronto, está resolvido. Agora tudo bem, embora eu imagine que a herança maldita continuará a ser invocada, como seria se ele ficasse no poder vitaliciamente, o que, aliás, suspeito eu, é seu sonho secreto, que só aparece num atozinho falho ou outro. Mas agora vai ser uma beleza. Virão o espetáculo do crescimento, a reforma agrária, a política, a fiscal, a administrativa e todas as outras que nos prometem há séculos. Esqueço o passado, miro o porvir. Que, entre as resoluções de ano-novo dele, esteja a de que agora vai trabalhar. Mas não precisa esperar a nova posse, pode começar amanhã mesmo.