No livro do Nobel Orhan Pamuk,
a política turca é uma sucessão
de conspirações absurdas
Jerônimo Teixeira
Yoray Liberman/Getty Images |
Orhan Pamuk: entre o Oriente e o Ocidente |
O melancólico Ka é um exilado político que não se interessa por política. Poeta de alguma reputação nos restritos círculos de vanguarda de Istambul, ele teve seus dias de esquerdista na juventude, e por causa disso se viu forçado a fugir para a Alemanha. Depois de doze anos de uma vida solitária em Frankfurt, retorna à Turquia natal. Acaba se envolvendo com militantes islâmicos, militares golpistas, espiões da polícia secreta e até um suposto líder terrorista – quando tudo o que desejava era escrever seus poemas e namorar a bela Ipek. Há um paralelo interessante entre Ka, protagonista de Neve (tradução de Luciano Machado; Companhia das Letras; 488 páginas; 54 reais), romance recém-lançado no Brasil, e seu criador, o romancista turco Orhan Pamuk, de 54 anos, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura deste ano. Pamuk tampouco é um "escritor político" – mas se viu no meio de uma absurda polêmica política ao ser processado por suas declarações sobre o genocídio de armênios promovido pelos otomanos na I Guerra Mundial, episódio que é tabu para os nacionalistas turcos. Mesmo Neve, considerado o mais político de seus livros, está a serviço não da opinião ideológica, mas da imaginação literária. "Neve é, ao mesmo tempo, um romance jornalístico e surrealista. É divertido escrever essas obras que misturam pesquisa e imaginação", disse Pamuk em entrevista a VEJA, por telefone, de Nova York, onde se encontrava na semana passada.
O anúncio de que Pamuk seria o primeiro turco a receber um Nobel gerou sentimentos ambivalentes entre seus compatriotas. Muitos comemoraram – o primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan, de um partido islâmico moderado, conclamou os turcos a "deixar a polêmica de lado" para congratular o escritor. Ultranacionalistas como o advogado Kemal Kerincsiz, que levantou as acusações contra Pamuk e outros escritores turcos, consideraram a premiação como uma espécie de insulto europeu à alma turca. Filho de uma família de classe média de Istambul – cidade onde reside ainda hoje e à qual dedicou um ensaio autobiográfico, a ser lançado no Brasil em 2007 –, o escritor já estudou em universidades americanas e é um grande admirador de autores modernos como o italiano Italo Calvino e o argentino Jorge Luis Borges. Seus livros falam da Turquia (ou do Império Otomano em obras de fundo histórico como Meu Nome É Vermelho e O Castelo Branco), mas os puristas o vêem como um autor "ocidentalizado".
A obra de Pamuk retrata a posição intermediária que a Turquia ocupa, geográfica e culturalmente, entre o Ocidente e o Oriente. Fundada em 1923 pelo general Mustafa Kemal, mais conhecido como Ataturk ("pai dos turcos"), a Turquia moderna nasceu como um Estado laico, no modelo europeu. Ataturk instaurou padrões ocidentais com mão-de-ferro: fechou escolas religiosas e proibiu os turbantes, entre outros itens do vestuário e da cultura do antigo Império Otomano. Essas imposições autoritárias geraram ressentimentos e controvérsias persistentes. O lenço que cobre o cabelo das muçulmanas, proibido em escolas e universidades, tornou-se um símbolo do "Islã político" (tema, aliás, central no enredo de Neve). Embora sempre seja citado como um grande exemplo de democracia muçulmana, o parlamentarismo turco tem passado por alguns percalços, com intervenções e golpes militares (o último foi nos anos 80). Regiões no sudeste do país sofrem com a guerrilha de separatistas curdos (e a resposta do governo não costuma ser gentil).
Os recentes processos criminais movidos contra escritores e jornalistas que se atrevem a mencionar o genocídio de armênios em 1915 arranham a imagem democrática do país. A Turquia, a rigor, ainda não existia nessa época. O massacre foi um dos atos finais do Império Otomano, que se esfacelou na I Guerra Mundial. Mesmo assim, esses crimes são uma mancha sobre a identidade nacional turca. Mais de quarenta autores estão sendo processados e ameaçados de prisão por comentar o assassinato de armênios ou por outras supostas ofensas à "identidade turca". Esse atentado oficial contra a liberdade de expressão tem prejudicado o esforço da Turquia para se integrar à União Européia. As negociações para a entrada dos turcos na UE foram oficialmente abertas no fim de 2004, mas vêm andando muito lentamente. Para agravar a situação, a Turquia ainda tem impasses territoriais com a Grécia, Estado-membro da UE, em torno da Ilha de Chipre.
O leitor não precisa estar informado de nenhum desses impasses para se deleitar com Neve, romance que já entrou na lista de mais vendidos de VEJA. A obra é, sim, um retrato irônico do cipoal de facções políticas que dividem a Turquia contemporânea – estão lá os fundamentalistas islâmicos, os nacionalistas radicais, os separatistas curdos. No centro desse drama político um tanto farsesco, porém, está Ka, um solipsista radical – o tipo de artista que os comunistas da velha-guarda costumavam chamar de "alienado". O poeta exilado retorna à Turquia para assistir ao enterro da mãe, em Istambul. Mas decide também viajar para Kars, na condição de repórter, a fim de cobrir as eleições municipais e investigar uma recente "epidemia" de suicídios entre jovens muçulmanas (cujos motivos, especula-se, estão ligados à proibição do lenço nas escolas). Ka não leva muito a sério suas atribuições jornalísticas: no fundo, ele só vai a Kars para reencontrar-se com Ipek, sua paixão da juventude.
Uma nevasca fecha as estradas de acesso à cidade. Aproveitando o isolamento, um delirante ator mambembe chamado Sunay Zaim, apoiado pelos militares, dá uma espécie de golpe municipal, supostamente para impedir que o candidato islâmico vença as eleições para prefeito. Ka torna-se uma peça-chave no meio das intrincadas conspirações que agitam Kars. Não por acaso, o apelido Ka (o nome é Kerim Alakusoglu, mas ninguém o chama assim) evoca os personagens dos pesadelos burocráticos de Franz Kafka. Neve também lembra o universo do americano Thomas Pynchon, com sua aflitiva sucessão de conspirações dentro de conspirações. "Eu gosto desses romances paranóicos, pois a política, na Turquia, é repleta de paranóia. Tudo o que eu preciso fazer para compor meus romances engraçados é copiar a realidade", diz Pamuk.
Cidade que já ocupou uma estratégica posição fronteiriça entre a Rússia e o Império Otomano, Kars parece congelada no tempo. A história transcorre nos anos 90, mas ainda há carroças nas ruas e as casas de chá onde se reúnem patéticos desempregados curdos exibem obsoletos televisores em preto-e-branco. Kars às vezes mostra uma inocente face familiar, com suas crianças brincando de trenó nas ruas – mas também pode assumir uma atmosfera opressiva e fantasmagórica (o genocídio promovido pelos otomanos é lembrado discretamente, na imagem das igrejas e casas armênias abandonadas). É um lugar improvável para quem busca Deus, a poesia, a felicidade. O ansioso Ka, no entanto, deseja todas essas dádivas – e até as encontra, só para perdê-las em seguida. A neve que dá título ao livro é uma metáfora magistral. Com seus flocos brancos e silenciosos, ela pode representar o amor puro que Ka deseja redescobrir ao lado da misteriosa Ipek. Quando a neve derrete, porém, só resta a lama da política.
UM AUTOR DIVIDIDO – MAS SORRIDENTE
Primeiro turco a ganhar o Nobel de Literatura, o escritor Orhan Pamuk falou a VEJA sobre sua obra e seu país.
O SENHOR FOI AMEAÇADO DE PRISÃO POR FALAR DO GENOCÍDIO DE ARMÊNIOS PROMOVIDO PELA TURQUIA OTOMANA NA I GUERRA MUNDIAL. O PROCESSO, PORÉM, FOI INTERROMPIDO NO INÍCIO DO ANO. O SENHOR HOJE SE SENTE LIVRE PARA FALAR SOBRE O TEMA?
Sim, mas não tenho vontade de falar sobre isso. A maior punição que o Estado turco poderia impor a mim seria esta: me obrigar a falar só sobre esse tema nas entrevistas, e não sobre meus livros.
O PROCESSO DIZ RESPEITO A UM PROBLEMA QUE AFLIGE TODOS OS ESCRITORES: A LIBERDADE DE EXPRESSÃO.
Sim. A Turquia tem problemas com a liberdade de expressão. O país está enredado no artigo penal 301, que perseguiu não só a mim, mas muitos outros autores (o artigo permite caracterizar como crime contra a nacionalidade qualquer referência ao genocídio armênio). A maioria desses casos não resulta em prisão, mas a lei é utilizada por políticos fascistas, da ultradireita nacionalista, na tentativa de intimidar as pessoas.
A CRÍTICA VEM DIZENDO QUE NEVE É SEU LIVRO MAIS POLÍTICO. O SENHOR CONCORDA?
No limite, tudo é político, e portanto todos os meus livros são políticos, ainda que de uma forma sutil. Neve é o único dos meus romances em que essa dimensão é mais explícita. Mas ele também trata do sentido da vida, da arte, da poesia, das escolhas que fazemos no campo da moral e do amor.
O PERSONAGEM PRINCIPAL DO LIVRO, KA, É UM POETA QUE ACABA SE ENVOLVENDO EM POLÊMICAS CONTRA A VONTADE. É UM ALTER EGO SEU?
Não diria que ele é um alter ego, mas me identifico, sim, com Ka – e passei a me identificar ainda mais depois do processo contra mim. Ele é um homem dilacerado, dividido, um artista que se torna uma espécie de mediador entre as várias facções políticas turcas, mas ao mesmo tempo vive sob a cobrança de não ser turco o suficiente, de não ser religioso o bastante, de não ser "um de nós". São cobranças que me fazem também. Sou Ka em certo sentido. Mas sou mais feliz, mais bem-sucedido – e mais sorridente.
KA PARECE UMA ESPÉCIE DE ATEU DESCONTENTE, QUE GOSTARIA DE ACREDITAR EM DEUS. O SENHOR TAMBÉM É ASSIM?
Ka precisa de religião, mas não está contente com a religião que lhe é oferecida. Já senti isso também. Ele não simpatiza com as obrigações sociais que acompanham a vida religiosa nem com as idéias islâmicas sobre, por exemplo, o lugar da mulher na sociedade. A religião na Turquia, hoje, é algo comunitário, a ser desfrutado sempre com um grupo de pessoas. O Islã é uma religião social. Ka está mais próximo do intelectual ocidental moderno: uma pessoa solitária que, em seu quarto, isolada, julga os livros que lê e escreve seus próprios poemas.
OUTRO PERSONAGEM FASCINANTE DO LIVRO É AZUL, O LIDER ISLÂMICO QUE ADORA A FAMA. OS FUNDAMENTALISTAS TURCOS GOSTAM MESMO DE APARECER?
Sim. Fundamentalismo é política, e todo político adora a mídia. Os fundamentalistas turcos usam e abusam da mídia. Há uma certa diferença entre o fundamentalismo de um Bin Laden e aquele que encontramos na Turquia. Bin Laden limita-se a jogar bombas e matar pessoas. Os fundamentalistas turcos atuam mais no campo político real, na busca de eleitores. Nesse sentido, são mais modernos.
A SECULARIZAÇÃO NA TURQUIA FOI UM PROCESSO BEM-SUCEDIDO?
O Estado laico da Turquia foi inspirado pela França. Mas, quando os franceses decidiram que o Estado deveria ser laico, não-religioso, estavam tentando corrigir uma longa história de conflitos religiosos. A secularização turca, porém, não surgiu de um desejo da população do país. Isso já foi um problema maior. Hoje, o Estado laico já é parte da identidade nacional da Turquia. Alguns turcos se sentem incomodados com isso, mas a maioria assume o Estado secular e gosta disso. Não acredito que exista realmente o perigo de algum movimento anti-secular ganhar espaço na Turquia.
A POLÊMICA PROIBIÇÃO DE SÍMBOLOS ISLÂMICOS COMO O MANTO SOBRE A CABEÇA EM ESCOLAS E UNIVERSIDADES TURCAS DEVERIA SER SUSPENSA?
Autorizar ou não o lenço cobrindo o cabelo é irrelevante. O fato é que isso nunca deveria ter se convertido em um problema político. Sou crítico da intolerância do Estado turco no que concerne aos lenços, mas também critico o uso político abusivo que os fundamentalistas islâmicos fazem do assunto. É o que mostro em Neve: enquanto os homens fazem política, são as mulheres que sofrem.
A TURQUIA TEM UM LUGAR NA UNIÃO EUROPÉIA?
A questão é saber se a Europa deve ser identificada pelo cristianismo ou por igualdade, fraternidade, liberdade – os grandes ideais da Revolução Francesa. Se você acredita nesses ideais, então a Turquia tem, sim, seu lugar na Europa. Se o cristianismo é o que define o europeu, então a União Européia terá limites mais paroquiais – e a Turquia ficará de fora. Eu acredito que a Europa se revelou atraente para todo o mundo não por causa da religião, mas da modernidade. A modernidade é baseada na liberdade de expressão, na democracia. Uma União Européia que abrigasse um país de maioria islâmica poderia desenvolver uma grande sociedade, com maior tolerância e entendimento entre seus diferentes povos. Seria um grande exemplo para o mundo. Mostraríamos que não existe um choque de civilizações entre Oriente e Ocidente, que, com respeito aos direitos humanos, as civilizações podem se combinar de forma harmoniosa.
Leia trecho do livro Neve,
de Orhan Pamuk
1. O silêncio da neve
A viagem para Kars
O silêncio da neve, pensou o homem que estava sentado logo atrás do motorista do ônibus. Se aquilo fosse o começo de um poema, poderia chamar o que sentia em seu íntimo de o silêncio da neve.
Pegara o ônibus de Erzurum para Kars, com apenas alguns segundos de folga. Mal chegara à estação rodoviária num ônibus vindo de Istambul - depois de dois dias de viagem, sob tempestade e neve - e começara a andar para cima e para baixo nos corredores úmidos e sujos arrastando a mala e procurando a sua conexão, quando alguém lhe disse que o ônibus para Kars partiria imediatamente.
Ele conseguiu encontrar o ônibus, um velho Magirus, mas o motorista acabara de fechar o bagageiro e, como estava "com pressa", recusou-se a abri-lo novamente. Assim, nosso viajante foi obrigado a entrar no ônibus com a bagagem. A grande mala vermelho-escura Bally estava agora enfiada entre suas pernas. Ele estava sentado perto da janela e trajava um grosso casaco cor de carvão que comprara na Kaufhof, em Frankfurt, cinco anos antes. É bom deixar claro, desde já, que aquele casaco macio e delicado seria motivo de vergonha e inquietação para ele nos dias que passaria em Kars, ao mesmo tempo que lhe proporcionaria uma sensação de segurança.
Assim que o ônibus partiu, nosso viajante grudou os olhos na janela; esperando talvez ver alguma coisa nova, esquadrinhava as lojinhas, as padarias ordinárias e os cafés arruinados que se alinhavam nas ruas dos subúrbios de Erzurum. E, enquanto isso, começou a nevar. Era uma neve mais densa e pesada que a que vira cair entre Istambul e Erzurum. Se não estivesse tão cansado e tivesse prestado atenção aos flocos de neve que revoluteavam no céu como plumas, teria percebido que avançava diretamente para uma nevasca; teria visto desde o começo que estava embarcando numa viagem que iria mudar sua vida para sempre e teria voltado atrás.
Mas esse pensamento nem sequer lhe passou pela cabeça. Quando caiu a noite, ele se abandonou à luz que tardava no alto do céu; nos flocos de neve que redemoinhavam ao vento ainda com mais fúria, ele não via o anúncio de uma nevasca iminente mas antes uma promessa, um sinal indicando o caminho de volta à felicidade e à pureza que conhecera em criança. Nosso viajante passara os anos de felicidade e infância em Istambul; voltara uma semana antes, pela primeira vez em doze anos, para os funerais de sua mãe e, tendo lá permanecido durante quatro dias, resolvera fazer essa viagem a Kars. Anos mais tarde ele ainda haveria de rememorar a extraordinária beleza da neve naquela noite; a felicidade que ela lhe proporcionou fora, de longe, muito maior que qualquer outra que experimentara em Istambul. Era um poeta e, como ele próprio escrevera - num de seus primeiros poemas, ainda desconhecido dos turcos -, neva apenas uma vez em nossos sonhos.
Enquanto olhava a neve cair do lado de fora da janela, lenta e silenciosamente como num sonho, o viajante mergulhou num devaneio havia muito esperado e desejado; purificado pelas lembranças inocentes da infância, ele se rendeu ao otimismo e ousou acreditar estar à vontade neste mundo. Logo depois ele sentiu mais uma coisa que não sentia fazia muito tempo e adormeceu em seu banco.
Vamos aproveitar essa calmaria para sussurrar alguns dados biográficos. Embora tivesse passado os últimos doze anos em exílio político na Alemanha, nosso viajante nunca se envolvera muito com política. Sua verdadeira paixão, seu único pensamento, era a poesia. Tinha quarenta e dois anos, era solteiro, nunca tinha se casado. Ele era alto para um turco, embora não fosse fácil perceber isso vendo-o encolhido em seu banco; tinha cabelos castanhos e um rosto pálido, que ficara ainda mais pálido durante a viagem. Era tímido e gostava de ficar sozinho. Se pudesse imaginar o que iria acontecer tão logo adormecesse - com o balanço do ônibus sua cabeça iria descair primeiro sobre o ombro do homem ao seu lado, depois em seu peito -, ele se sentiria muito envergonhado. Pois o viajante que estamos vendo recostado no passageiro ao seu lado é um homem honesto e bem-intencionado, cheio de melancolia, como aqueles personagens de Tchekhov tão cheios de virtudes, que não conseguem nada na vida. Teremos muito a dizer sobre melancolia mais adiante. Mas como, ao que parece, ele não vai ficar dormindo por muito mais tempo nessa posição incômoda, por agora basta dizer que o nome do viajante é Kerim Alakusoglu, que ele não gosta desse nome e prefere ser chamado de Ka (suas iniciais) e que assim eu farei neste livro. Ainda nos tempos de escola, nosso herói insistia em se assinar como Ka em suas tarefas e provas; ele assinou Ka nos formulários de inscrição da universidade e aproveitava todas as oportunidades para defender seu direito de continuar a fazê-lo, ainda que isso implicasse conflito com professores e funcionários públicos. Sua mãe, sua família e seus amigos o chamavam de Ka e, tendo também publicado uma coletânea de poesias sob esse nome, gozava de uma pequena fama enigmática como Ka, tanto na Turquia como nos círculos turcos da Alemanha.
Isso é tudo o que posso adiantar por enquanto. Como o motorista do ônibus desejou aos passageiros uma boa viagem quando partimos da estação rodoviária de Erzurum, permitam-me acrescentar apenas estas palavras: "Que sua estrada esteja aberta, meu caro Ka". Mas não quero enganá-los. Sou um velho amigo de Ka e começo esta história sabendo tudo o que vai acontecer com ele em Kars.
Depois de deixar Horasan, o ônibus rumou para o norte, indo diretamente para Kars. Enquanto subia pela pista tortuosa, o motorista teve de pisar com força no freio para evitar chocar-se contra um cavalo que surgira do nada, puxando uma carroça, numa das curvas fechadas, e Ka acordou. O medo já havia criado um forte sentimento de solidariedade entre os passageiros, e não demorou muito para Ka sentir-se um deles. Embora estivesse sentado logo atrás do motorista, Ka logo estava agindo exatamente como os passageiros atrás dele: toda vez que o ônibus diminuía a velocidade para fazer uma curva ou evitar cair num precipício, ele se levantava para ver melhor; quando o passageiro diligente que se dispusera a ajudar o motorista limpando a condensação do pára-brisa deixava de limpar uma área do vidro, Ka a apontava com o indicador (colaboração que passava despercebida), e quando a nevasca ficou tão forte que os limpadores já não conseguiam impedir que a neve se acumulasse sobre o pára-brisa, Ka juntou-se ao motorista para tentar adivinhar o caminho.
Era impossível ler as placas rodoviárias, que estavam cobertas de neve. Quando a tempestade de neve começou a mostrar sua fúria, o motorista desligou o farol alto e diminuiu as luzes dentro do ônibus, na esperança de fazer a estrada surgir da penumbra. Os passageiros caíram num silêncio apreensivo, olhos fitos na cena lá fora: a neve cobrindo as ruas das aldeias pobres, as casas periclitantes de um só pavimento, parcamente iluminadas, as estradas para aldeias mais distantes, já fechadas, e as ravinas que mal se podiam ver para além das luzes dos postes. Quando falavam, era num murmúrio.
Assim, foi quase cochichando que o passageiro ao lado de Ka, o homem em cujo ombro Ka adormecera pouco antes, perguntou-lhe por que estava indo para Kars. Era fácil perceber que Ka não era do lugar.
"Sou jornalista", respondeu Ka baixinho. O que era mentira. "Estou interessado nas eleições municipais - e também nas jovens que se suicidaram." Isso era verdade.
"Quando o prefeito de Kars foi assassinado, todos os jornais de Istambul deram a notícia", respondeu o vizinho de Ka. "E tem sido a mesma coisa com as mulheres que estão se matando." Ka não saberia dizer se o tom de voz do homem deixava transparecer orgulho ou vergonha. Três dias depois, parado na neve que cobria a avenida Halitpas¸a, com lágrimas nos olhos, Ka veria novamente aquele aldeão delgado.
Durante a conversa sem rumo certo que se seguiu pelo resto da viagem de ônibus, Ka ficou sabendo que o homem acabara de levar a mãe para Erzurum porque o hospital de Kars não era muito bom, que revendia animais de granja nas aldeias próximas de Kars, que enfrentara muitas dificuldades mas não se tornara um rebelde, e que - por motivos misteriosos que não revelou a Ka - lamentava não a própria sorte mas a de seu país e estava feliz em ver que um homem culto, um cavalheiro como Ka se dera ao trabalho de viajar de Istambul para se inteirar dos problemas da cidade. Havia uma tal nobreza na simplicidade de sua fala e no orgulho que exibia, que Ka sentiu respeito por ele.
A própria presença dele inspirava calma. Nem uma vez nos doze anos de Alemanha, Ka sentira tanta paz interior; fazia muito tempo que tivera o prazer fugaz de experimentar empatia com alguém mais fraco que ele. Ele se lembrou de ter tentado ver o mundo pelos olhos de um homem capaz de sentir amor, simpatia e ternura. Ao fazer a mesma coisa naquele momento, já não sentia tanto medo da nevasca incessante. Sabia que não estavam destinados a cair num abismo. O ônibus iria se atrasar, mas chegaria ao destino.
Quando, às dez horas da noite, três horas depois do previsto, o ônibus começou a avançar lentamente pelas ruas cobertas de neve de Kars, Ka não reconheceu a cidade de modo algum. Ele nem ao menos viu a estação ferroviária, aonde ele chegara vinte anos antes numa maria-fumaça, nem tampouco qualquer sinal do hotel para o qual o motorista o levara naquele dia (depois de percorrer toda a cidade): o Hotel República, "um telefone em cada quarto". Era como se tudo tivesse sido apagado, estivesse perdido sob a neve. Ele teve um vislumbre dos velhos tempos nas charretes ali e acolá, esperando em garagens, mas a cidade parecia muito mais pobre e mais triste que aquela de que ele se lembrava. Pelas janelas geladas do ônibus, Ka viu os mesmos prédios de apartamentos de concreto que tinham se multiplicado por toda a Turquia nos últimos dez anos, os mesmos painéis de Plexiglas; viu também faixas com slogans da campanha eleitoral penduradas em todas as ruas.
Ele desceu do ônibus. Quando seu pé afundou no macio tapete de neve, uma lufada de ar frio cortante entrou-lhe pelas pernas da calça. Ele reservara um quarto no Hotel Palácio de Neve. Quando procurou o motorista para lhe perguntar onde ficava o hotel, viu duas ou três fisionomias que lhe pareceram familiares entre os passageiros que esperavam a bagagem, mas, com a neve caindo tão densa e rapidamente, ele não conseguiu descobrir quem eram.
Ka os viu novamente no Café Campos Verdejantes, para onde foi depois de deixar a bagagem no hotel: um homem cansado e preocupado, mas ainda bonito e atraente, com uma mulher gorda porém vivaz que parecia ser sua companheira de toda a vida. Ka os vira representar em Istambul na década de 70, quando eles eram os expoentes do teatro revolucionário. O nome do homem era Sunay Zaim. Enquanto contemplava o casal, deixou a cabeça divagar e finalmente chegou à conclusão de que a mulher lhe lembrava uma colega do primário. Havia outros homens na mesa deles, todos com aquela palidez mortal que revela uma vida passada no palco; o que uma pequena companhia de teatro estaria fazendo naquela cidade esquecida, ele se perguntou, numa nevoenta noite de fevereiro? Antes de sair do restaurante, que vinte anos antes estivera cheio de funcionários públicos de alto escalão, em paletó e gravata, Ka pensou ter visto um dos heróis da esquerda militante sentado a outra mesa. Mas era como se um manto de neve tivesse recoberto suas lembranças daquele homem, do mesmo modo como fizera com o restaurante e com a própria cidade combalida e ofegante.
As ruas estavam vazias por causa da neve, ou aquelas calçadas geladas viviam sempre desertas? Enquanto andava, ia observando atentamente os anúncios que se viam nas paredes - cartazes da campanha eleitoral, anúncios de escolas e restaurantes e os novos cartazes com que as autoridades municipais esperavam conter a onda de suicídios: OS SERES HUMANOS SÃO OBRAS-PRIMAS DE DEUS, E O SUICÍDIO É UMA BLASFÊMIA. Pelas vidraças cobertas de gelo de uma casa de chá meio vazia, Ka avistou um grupo de homens amontoados ao redor de um aparelho de tevê. Ele se alegrou um pouco ao ver ainda de pé aquelas velhas casas de pedra em estilo russo, que tinham feito de Kars um lugar tão especial em sua lembrança.
O Hotel Palácio de Neve era um desses elegantes edifícios em estilo báltico. Tinha dois andares, com janelas compridas e estreitas, que davam para um pátio, e uma arcada voltada para a rua. A arcada tinha cento e dez anos e era alta o bastante para dar passagem, com facilidade, a charretes puxadas por cavalos; Ka sentiu um arrepio de excitação ao passar por baixo dela, mas estava cansado demais para se perguntar por quê. Digamos apenas que tinha algo a ver com uma das razões que o levaram a Kars.
Três dias antes, Ka visitara a redação do Republicano em Istambul, para ver um amigo de juventude. E aquele amigo, Taner, lhe falara das eleições municipais que se aproximavam e também do extraordinário número de jovens mulheres que - como na cidade de Batman - sucumbira à onda de suicídios. Taner chegou a dizer que se Ka quisesse escrever sobre esse assunto e ver qual era realmente a situação da Turquia depois de sua ausência de doze anos, devia pensar em ir a Kars; como não havia ninguém disponível para essa tarefa, ele podia lhe conseguir uma credencial de jornalista; e além do mais, disse ele, Ka poderia estar interessado em saber que sua ex-colega de escola Ipek residia agora em Kars. Embora separada do marido, Muhtar, ela continuava na cidade e estava morando com o pai e a irmã no Hotel Palácio de Neve. Enquanto ouvia as palavras de Taner, que escrevia comentários políticos para o Republicano, Ka se lembrava de quanto I.pek era bonita.
Cavit, o recepcionista, estava no saguão do hotel com pé-direito muito alto, assistindo à televisão. Ele entregou a chave a Ka, que subiu ao segundo andar, encaminhando-se para o quarto 203; tendo fechado a porta atrás de si, sentiu-se mais calmo. Depois de cuidadosa análise, concluiu que, apesar dos temores que o assaltaram durante a viagem, nem seu coração nem sua cabeça estavam perturbados ante a possibilidade de Ipek se encontrar no hotel. Depois de uma vida em que toda experiência amorosa trazia a marca da vergonha e do sofrimento, a perspectiva de apaixonar-se deixava Ka tomado de um medo intenso, quase instintivo.
No meio da noite, antes de ir dormir, Ka atravessou o quarto de pijama, abriu as cortinas e observou os flocos grossos e pesados de neve que caíam sem cessar.