O Globo |
31/10/2006 |
Neste início de século XXI eu acreditava que já era impossível que a política provocasse tanta eletricidade. Experimentados por duas décadas de democracia, eu imaginava que todos nós brasileiros já soubéssemos que não existem milagres, não existem milagreiros e também não existem bruxos nem bruxaria. Não há nada a fazer, senão debater idéias: vence sempre aquele que convenceu a maior parte do povo. Uma obviedade. Mas a campanha eleitoral mostrou que a nossa maturidade política vai até o ponto em que uma parte ou outra imagina que esteja próxima de ganhar ou próxima de perder, o que é uma mesma situação. Neste momento, embora os atores políticos permaneçam racionais (ninguém rasga dinheiro), eles tentam pôr a sociedade para girar no compasso da irracionalidade. De lado a lado, estimulam toda sorte de boatos, fazem acusações infundadas, inventam mentiras e constroem teorias conspiratórias as mais estapafúrdias. Põem-se no lugar de milagreiros e os adversários no de bruxos, e vice-versa. E sempre com ares de indignação, revolta, pompa. Prometem milagres e acusam os adversários de lhe fazerem bruxaria, e vice-versa. A internet facilitou isso à exasperação, com a proliferação de blogs cujo compromisso ético com a informação é nenhum. Os cidadãos começam então a receber torrentes de e-mails, cada um travestido como pode de seriedade e compromisso com a verdade. As técnicas são muitas, e os leitores, com certeza, já foram vítimas de algumas delas. Ocorre que isso tem um efeito. É como um rastilho de pólvora que atinge o material explosivo. E, por algumas semanas, o país vira palco dessa sandice. Aqui no Rio, acreditando-se adversárias, duas correligionárias brigaram até que uma arrancou parte do dedo da outra com uma mordida. Passeando pela praia, bastava uma camiseta isolada da campanha adversária cruzar com um grupo grande do outro candidato, com todos os membros também devidamente uniformizados, para que vaias e apupos surgissem, algumas vezes com canções "bem-humoradas" ofendendo o solitário eleitor. Vi um desses solitários reagir da maneira mais condenável: com gestos usando o dedo, mandou todo o grupo para aquele lugar, ou para fazer aquilo, com uma expressão de ódio no rosto que dava medo. Chamado de pitbull, arriscou-se a ser linchado. Não via essa eletricidade assim havia muito tempo. No Rio, certamente desde a eleição de Brizola em 1982 e a de Collor em 1989. Um ambiente ruim. Por que menciono tudo isso? Porque, num ambiente assim, aqueles setores da sociedade que se mantêm, por dever de ofício, à margem dessa eletricidade passam a irritar todos os apaixonados. E viram alvo. Refiro-me à grande imprensa, que, no Brasil, atingiu um alto grau de profissionalismo, podendo se comparar, com vantagens ali e desvantagens acolá, com as melhores imprensas do mundo. De repente, quando os fatos contrariam uma ou outra corrente política, a imprensa, que na sua imensa maioria se mantém dentro dos limites da isenção e da imparcialidade, passa a ser vista como parte e aliada dos adversários. É como se houvesse um desejo ardente nos políticos para que a imprensa fosse, não neutra, como deve ser, mas adesista (não importa o lado). Como ente com influência indireta na disputa, mas sem a contaminação pela cegueira política, a imprensa passa a ser vista, por todos os lados, como parte, porque, ao se limitar a noticiar os fatos, contraria ora esta ora aquela corrente. Alguns políticos agem como se desejassem a seguinte lei: "Se os fatos me prejudicam, fora com os fatos." A grande imprensa, aquela que realmente é sólida em seus princípios, é imune a isso. Pode cometer erros aqui e ali, pode cometer alguns desvios não intencionalmente, mas sempre acaba por corrigi-los. Porque ela vive de sua fidelidade aos fatos, sua credibilidade vem daí. Trair esse compromisso é comprometer o próprio futuro. A grande imprensa sabe disso. Até porque tem um passado. Diante da ira dos políticos, é preciso paciência. Como diz uma velha piada nas redações, "é preciso muita calma nessas horas". Volta e meia, porém, surgem publicações que traem esses compromissos. Aderem a um dos lados e se põem a serviço dele. No início, fazem algum barulho, mas, depois, morrem. Porque, como tudo na vida, as paixões acabam. E, sem elas, os defeitos sobressaem, as traições aparecem e a relação chega ao fim. Muitos leitores, que, como parte do processo eleitoral, não estão imunes a paixões, momentaneamente olham para o seu veículo de imprensa predileto e vêem nele o que os políticos gostariam que vissem. Onde há fatos, vêem conspiração; onde há notícia, vêem distorção; onde há isenção, vêem parcialidade. Mas quando a disputa termina e a serenidade volta, reconhecem que a distorção não estava nos veículos, mas nos próprios olhos. Porque não existem nem milagres nem milagreiros, nem bruxos nem bruxarias. |
Entrevista:O Estado inteligente
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terça-feira, outubro 31, 2006
ALI KAMEL Nem milagres nem bruxarias
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