A Bolívia deu um ultimato ao Brasil: até o dia 28 de outubro a Petrobrás deveria assinar novos contratos com a estatal Yacimientos Petroliferos Fiscales Bolivianos (YPFB), transferindo para ela o controle e a gestão de suas usinas na Bolívia, ou deixar o país, sem garantias de receber a devida indenização. O caso da Bolívia, embora um dos mais ilustrativos dos reveses da diplomacia brasileira na região, não é o único.
Na semana passada, os presidentes Néstor Kirchner e Evo Morales concluíram novo acordo para o fornecimento de gás à Argentina, num volume de quase 30 milhões de metros cúbicos por dia, equivalente ao comprometido com o Brasil. A Bolívia não tem capacidade para honrar este contrato, a menos que realize vultosos investimentos, da ordem de US$ 3 bilhões, ou deixe de exportar para o Brasil. A cerimônia transcorreu em meio a declarações hostis de Kirchner às empresas “pícaras” de gás e petróleo que não investem na Bolívia. Esta não foi, aliás, a primeira vez que Kirchner fez alusões inamistosas em relação ao Brasil.
Enquanto isso, o presidente Hugo Chávez, outro de nossos “aliados estratégicos”, continua fabricando o “eixo bolivariano” no continente, por meio de uma generosa utilização de seus petrodólares. A Venezuela já adquiriu bônus argentinos no valor de US$ 3 bilhões e se dispôs a realizar uma emissão conjunta com a Argentina, o Bonosur, de US$ 5 bilhões. E vem apoiando decisivamente a nacionalização do gás na Bolívia, com recursos humanos e financeiros. Morales, por sua vez, segue rigorosamente passos já dados por Chávez. A aliança estreita entre os dois países ilustra a ingenuidade do governo brasileiro ao buscar em Chávez um mediador para o entendimento com Morales.
Se é para comparar governos, a diplomacia é certamente um bom exemplo da diferença. No governo Fernando Henrique Cardoso, Brasil e Argentina se empenharam no que chamaram de “limpar a mesa”, ou seja, remover as restrições ao intercâmbio bilateral. Hoje, ao contrário, assistimos à recolocação das barreiras a mais de duas dezenas de produtos brasileiros. Sem mencionar a criação de um mecanismo de salvaguardas, que o Brasil sempre havia rejeitado, e a modéstia dos acordos comerciais concluídos pelo Mercosul.
No governo anterior podem ter ocorrido contenciosos comerciais localizados, como foi o caso do setor automotivo. Mas em nenhum momento a unidade do bloco foi posta em questão. Hoje o Mercosul vive uma polarização entre os que, como o Uruguai e o Paraguai, desejam um acordo de livre-comércio com os Estados Unidos e, de outro lado, os que, como a Venezuela, o rejeitam liminarmente, pondo em risco a sobrevivência da união aduaneira.
No período FHC, o Brasil exerceu, como é sua tradição, um papel moderador na região. Esta postura lhe granjeou uma liderança natural, ao ser chamado para facilitar entendimentos, como no conflito entre Peru e Equador, por exemplo. No presente governo, ao contrário, a pretensão de uma liderança que nossos vizinhos não desejam está estimulando uma fragmentação da América do Sul.
Por fim, a iniciativa de FHC de promover a integração da infra-estrutura física (IIRSA) tinha por objetivo forjar uma solidariedade de interesses indispensável a qualquer processo de integração. Hoje a região está jogando na lata do lixo o seu projeto mais promissor, que é a integração no setor de energia. Se a expropriação dos investimentos estrangeiros na exploração do gás na Bolívia vier a ocorrer sem a devida indenização, haverá duas conseqüências graves para o País, assim como, em certa medida, para seus vizinhos: a primeira é o congelamento dos investimentos estrangeiros em infra-estrutura, no momento em que os países sul-americanos, inclusive o Brasil, buscam novos recursos sob a forma de Parcerias Público-Privadas (PPPs); a segunda é o risco de fracasso da integração energética.
A natureza criou uma complementaridade entre países sul-americanos em matéria de energia. Venezuela, Bolívia e Equador são exportadores. Argentina, Colômbia e Chile são importadores. O Brasil, não obstante caminhar para a auto-suficiência, via com interesse projetos de interligação energética com alguns de seus vizinhos, como Venezuela, Bolívia e Argentina. A forma como está sendo conduzida a nacionalização na Bolívia pode gerar uma retração dos investimentos e uma incerteza quanto aos fornecimentos. O Chile, surpreendido com a suspensão das exportações de gás por parte da Argentina, decidiu recorrer a fontes de suprimento fora da região. O Brasil buscará a auto-suficiência em gás, para não mais depender da Bolívia.
Se lançarmos os olhos ao norte, veremos que o México consolida os laços econômicos com os países centro-americanos e caribenhos. Apesar de, como o Brasil, ter crescido pouco nos últimos anos, seu Produto Interno Bruto (PIB) ultrapassou o brasileiro. Como sua população é menor, a renda per capita é o dobro da nossa. O país já negociou mais de 30 acordos comerciais. Em 2002, Brasil e México assinaram um acordo de preferências, que teve forte impacto na elevação do saldo comercial em nosso favor. O prosseguimento das negociações com vista a um acordo de livre-comércio, embora previsto, não ocorreu, em face da relutância do lado brasileiro. Tal acordo seria um passo decisivo para a integração latino-americana, na medida em que os dois países, juntos, representam dois terços da economia da região.
É difícil entender as preferências da política brasileira na América Latina. Ela está recheada de boas intenções e de uma retórica exuberante. Seus resultados, no entanto, têm saído ao revés e conduzido a um isolamento do Brasil talvez sem precedentes em nossa história diplomática.