O Globo |
26/10/2006 |
O debate sobre as privatizações, que numa economia globalizada e competitiva como aquela em que estamos inseridos parecia extemporâneo, calou fundo no eleitorado brasileiro, e mostrou-se uma estratégia vitoriosa da campanha de Lula, não apenas para pôr seu adversário na defensiva, como para atrair um eleitorado que havia "desistido" de apoiá-lo. A guinada à esquerda que a campanha do presidente Lula deu no segundo turno, levando a discussão da privatização para o lado ideológico, como se o patrimônio público nacional tivesse sido violado no governo Fernando Henrique, é mais uma face da regressão que o quadro político brasileiro vem sofrendo sob o governo Lula, que se reflete, por exemplo, no antiamericanismo da política externa. Um nacionalismo canhestro, que se orgulha, como disse o presidente Lula em um dos debates, de não baixar a cabeça para os Estados Unidos, mas assume, em nome de uma suposta união sul-americana, papel submisso diante da decisão revolucionária do governo da Bolívia de expropriar a Petrobras. Mas é provavelmente esse nacionalismo fora de esquadro que fez com que Lula conseguisse arrebanhar 12% dos eleitores de Alckmin no primeiro turno, e melhorou sua votação em setores nacionalistas da classe média, mesmo que não tenha nenhum apoio na realidade a tese de que as privatizações fizeram o país perder patrimônio. O presidente Lula, que é mestre intuitivo em manipulações simbólicas, não fez mais do que ludibriar esses eleitores que ainda se apegam a um modelo de Estado que não tem mais razão de ser no mundo atual. E foi por isso que o mesmo governo Lula aprovou a exploração privada do maior símbolo do nacionalismo brasileiro, a selva amazônica, como mostrou recentemente Míriam Leitão em sua coluna. O modelo de concessão para exploração da floresta amazônica, em fase de regulamentação, é exatamente o mesmo das concessões das empresas privatizadas na era FH, e, como sempre, tem grupos a favor e contra, o que não quer dizer que o governo Lula esteja entregando um tesouro nacional aos estrangeiros, ou às empresas privadas. Da mesma maneira que na telefonia, ou nos casos bem-sucedidos da Embraer e da Vale do Rio Doce, o governo brasileiro não tinha condições de manter os investimentos nas empresas, ou garantir serviços públicos eficientes, num ambiente internacional crescentemente competitivo. Assim como acontece hoje nos órgãos estatais, as empresas que foram privatizadas eram usadas politicamente pelos governos estaduais - no caso dos bancos - e federal. O que se chama de "aparelhamento" do estado é exatamente o uso dos órgãos oficiais para abrigar os partidários do governo de ocasião. Não é à toa que, em cada escândalo do governo Lula, havia sempre um funcionário de estatal envolvido, ou uma estatal sendo manipulada com objetivos políticos. O que aconteceu nesse debate sobre privatização foi o uso hipócrita pelo governo de suposta defesa dos interesses nacionais e uma incompetência política formidável da oposição, que se constrangeu em defender o programa de desestatização do primeiro governo tucano. Mas a guinada à esquerda da campanha de Lula tem também uma razão estratégica de mais longo prazo, e vai além da provável vitória na eleição. Ao se colocar como o protetor dos pobres e se opor retoricamente às elites brasileiras, o presidente se protege preventivamente de uma eventual decisão contrária da Justiça Eleitoral no processo sobre a compra do dossiê. Como todos os envolvidos no caso são membros do comitê de reeleição do presidente Lula, e a nova legislação atribui ao candidato a responsabilidade sobre qualquer irregularidade na campanha, o R$1,7 milhão sem origem definida e já caracterizado como dinheiro criminoso, passa a ser um problema pessoal e político do candidato Lula. A não ser que uma outra campanha, a do senador Aloizio Mercadante ao governo de São Paulo, seja responsabilizada. Mas o único envolvido fora da campanha nacional, o assessor de Mercadante Hamilton Lacerda, declarou que a ação fazia parte de um plano nacional de poder. A tentativa de passar para o PT nacional a culpa pela operação de compra do dossiê seria a melhor saída para livrar de culpa tanto Lula quanto Mercadante, e aumentar o passivo do PT, já envolvido no uso de caixa dois e de corrupção no mensalão. Certamente será um processo de difícil apuração, e o TSE não pode tomar uma decisão tão grave quanto impugnar a candidatura de um presidente a ser eleito por quase 60 milhões de votos, como indicam as pesquisas, sem que existam provas irrefutáveis. O que estará em jogo nesse processo é a aplicação da lei no estado de direito, e não tem sentido a politização da questão, nem contra o presidente (o tal terceiro turno) nem a blindagem de Lula com atos políticos, como a ameaça implícita na exacerbação da divisão entre ricos e pobres que o presidente tem estimulado nos últimos dias de campanha. Por isso não faz o menor sentido, nos parâmetros democráticos, a declaração do ministro das Relações Institucionais, Tarso Genro, que descarta liminarmente o nexo jurídico entre o processo em curso e o provável segundo mandato de Lula. Genro garante "politicamente e juridicamente" que a legitimidade do segundo mandato "estará assegurada pela vitória, e não será afetada pelo resultado das investigações, seja ele qual for". É uma declaração tão grave, com respeito à democracia, como seria uma pressão política da oposição sobre o TSE para condenar o presidente com base só em indícios. |
Entrevista:O Estado inteligente
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