Artigo - Roberto DaMatta |
O Globo |
25/10/2006 |
A família celebrava um aniversário de casamento e, a esse momento festivo, quando marido e mulher comemoravam menos o amor que os unia e muito mais o milagre de um tesão que sobrevivia à falta de dinheiro, às crianças, ao cansaço dos dias estafantes e, acima de tudo, ao futuro sempre incerto, promovido pelos governos incompetentes e desonestos, resolveu-se abrilhantar a ocasião, convidando um primo que fora ministro de Estado. Eleito certa feita pelos jornais alguma coisa como o "mais político dos intelectuais" ou o "mais intelectual dos políticos", havia escrito uns livros e era membro de uma dessas academias que eu já não me lembro do nome. Só sei que não era de ginástica porque essas eu freqüento e o sujeito da minha história era um gordinho avesso a qualquer trabalho. A barriguinha proeminente demonstrando o sucesso financeiro construído por uma carreira política tradicional (havia roubado muito, dizíamos com inveja); traço que empatava com a empáfia que lhe dava o direito de projetar aquilo que no Brasil se chama de "figura de prestígio" ou de "sujeito importante". Na hora da comida ficaram de um lado o casal, seus filhos e parentes; do outro, isolado e alvo de todas as atenções, o gordinho poderoso, conhecedor do "é muito pior" que ocorria nos bastidores de Brasília. Estimulado pela divisória construída por sua presença como centro e do resto da família como coadjuvante, ele exercia sem peias aquilo que o caracterizava como pessoa e que, até certo ponto, havia sido um elemento básico do seu sucesso: o uso da opinião direta, a frase curta e grossa ou a palavra dura que desnudava pessoas e situações. Traço que mamãe, de quem recebi esta história, chamava com um tom de reprovação de "franqueza rude". A franqueza do marido que ousa dizer para a esposa submissa que acaba de chegar de uma longa sessão no salão de beleza com o cabelo pintado de burro-quando-foge que o penteado está (apenas) estranho; ou que o vestido novo, feito para aquele jantar em casa dos amigos muito ricos (todo mundo tem um amigo milionário e um outro muito pobre no Brasil), está meio esquisito. Na nossa história, deu-se a franqueza rude quando serviram o pedaço de honra do carneiro assado, prato central tanto quanto o convidado, que ia emitindo biblicamente opiniões francas sobre tudo e todos da cabeceira: fulano é uma besta, a política está um horror, a humanidade chegou ao fim, a crença agora é a descrença, não temos projetos de desenvolvimento? Ao abrir a boca para finalmente comer, debaixo da expectativa de todos e do olhar aflito da dona da casa, disse, mastigando: "Queridos primos, isso mais parece um 'carneiro' de família!" E para ser ainda mais rudemente claro adicionou, certo da ignorância dos convivas: "Vocês sabem, aquelas sepulturas, aqueles 'carneiros' ou urnas onde estão os ossos dos que partiram?" O trocadilho indelicado do convidado promoveu um debate revelador: convencionou-se que, dali em diante, estariam banidas as franquezas rudes. Entre um coletivo falso e hipócrita e uma privatização de risco, a casa ficou com o estatismo coletivo que era "estratégico" e crítico porque dizia respeito ao bem-estar coletivo (ou seja, aos donos da casa) mais do que ao mero interesse individual dos comuns. Ora, essa revelação de realidades ocultas (as tais "verdades-verdadeiras"), numa sociedade que vive de aparências, conduz a esse combate (ou, se quiserem, dialética) entre o esporte nacional do conchavo, do dossiê e da mentira e ao raro, eu já não digo falar, mas ao menos tangenciar a verdade. Essa verdade que significa pôr em foco, como fazem os rituais, a dimensão encoberta por interesse, insinceridade ou simplesmente cerimonia: a meia furada escondida no sapato imaculadamente engraxado, o mau hálito do orador de discurso esplendoroso, o erro crasso do burro-doutor e, já que estamos no auge de um momentoso segundo turno eleitoral, as regras do jogo que, diante dos escândalos de corrupção deste governo que confunde partido com administração pública, interesse ideológico com instituições nacionais forma, sem sombra de dúvida, o ponto capital desta disputa política. Falta ao candidato da oposição a franqueza rude que o faria cobrar de Lula a sua atitude delinqüente relativamente às regras do jogo numa sociedade igualitária. Caberia saber mais e melhor se é valido de um presidente-candidato usar o argumento privatista do "eu não sabia" e, ao mesmo tempo, espalhar o boato que o seu opositor é um anticoletivista. Geraldo deveria exercer a franqueza rude e perguntar por que Lula não reestatizou o que foi privatizado de modo desonesto ou questionável no governo anterior. Ou o que programaticamente ele vai fazer para reintegrar aos braços competentes e honestos do Estado brasileiro o que foi privatizado. Mas, a meu ver, a pergunta mais importante teria a ver com a honestidade diante das regras do jogo e do cargo de presidente da República que, numa democracia, deve ser maior que tudo. Contudo, como diziam os antigos, entrar nessa senda seria exercer a tal franqueza rude. Aquela que era o horror de mamãe, mas sem a qual se perdem as oportunidades históricas de mudança. |
Entrevista:O Estado inteligente
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quarta-feira, outubro 25, 2006
Franqueza rude: o que falta perguntar
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