O conselheiro de Bush diz que
a luta contra o fundamentalismo
islâmico mergulhou o mundo num
período de turbulência global
Gabriela Carelli
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O historiador americano Eliot Cohen, de 50 anos, é um dos mais influentes pensadores da corrente neoconservadora. Isso significa que ele é adepto das duas doutrinas que hoje amparam a política de segurança nacional dos Estados Unidos: a da guerra preventiva e a da supremacia incontestável do país no mundo. Professor de estudos estratégicos na Universidade Johns Hopkins e consultor do Pentágono, Cohen participou da elaboração da estratégia da Força Aérea americana na Guerra do Golfo, em 1991. Hoje, ele é uma das vozes que o presidente George W. Bush costuma ouvir antes de tomar decisões na área militar. Na semana passada, Bush admitiu que está difícil encontrar uma saída para o conflito no Iraque, onde já morreram 2.800 soldados americanos. Cohen, cujo filho voltou recentemente de uma missão de um ano como segundo-tenente em Bagdá, concorda com o presidente. Nesta entrevista a VEJA, ele diz que a guerra contra Saddam Hussein ainda é justificável. Mas que a incompetência e a falta de planejamento na ocupação do país tumultuaram ainda mais o Oriente Médio e aumentaram a instabilidade mundial desencadeada com os atentados de 11 de setembro.
Veja – Logo após os atentados de 11 de setembro, há cinco anos, o senhor escreveu que estávamos a caminho de uma nova guerra mundial. Mantém essa previsão?
Cohen – Já estamos vivendo a IV Guerra Mundial. A Guerra Fria, que considero a III Guerra, é exemplo de que um conflito, para se caracterizar como global, prescinde de enormes movimentações de soldados ou linhas de frente convencionais, como nas duas primeiras grandes guerras. Uma guerra é mundial quando tem raízes ideológicas, envolve ações violentas e não violentas, mobiliza especialistas, vastos recursos e soldados. A guerra que vivemos hoje começou com a intervenção americana no Afeganistão. Aquela ação não foi feita apenas para caçar Bin Laden. O inimigo da nova guerra não são exatamente os terroristas, mas o islamismo militante, uma ideologia cujo formato se assemelha ao nazismo, que provocou a II Guerra, e às teses de Lenin, Stalin e Mao Tsé-tung, que incitaram a chamada III Guerra. A luta hoje é contra um amplo movimento islâmico radical, extremamente hostil não apenas a outras crenças, mas ao progresso e ao mundo secular. Esse movimento está presente na Europa, na Ásia e no Oriente Médio, como fica evidente nos atentados que se sucedem. Esses atentados não resultam do conflito entre palestinos e israelenses, como a maioria das análises leva a crer. Mas o islamismo militante se alimenta dele para justificar suas ações contra o inimigo, a civilização ocidental. É como o nazismo, que encontrava pretextos para justificar sua política de agressão. A invasão do Iraque, a guerra entre Israel e o Líbano e as ameaças do Irã e da Síria são parte desse novo conflito.
Veja – Muitos especialistas argumentam que a guerra no Iraque só fez piorar a situação no Oriente Médio. O que pensa a respeito?
Cohen – Infelizmente, tenho de concordar. Muitas conseqüências da ocupação do Iraque têm sido negativas, não por causa da guerra em si, mas porque ela foi malconduzida. Há quem argumente que os caldeirões do Irã e da Síria foram abertos por causa da invasão ao Iraque. Na verdade, eles estão fervendo há um bom tempo. Estados Unidos e Europa apenas fechavam os olhos para o problema. Mas, como afirma meu colega Fouad Ajami, da Universidade Johns Hopkins, a falta de habilidade dos americanos iniciou uma guerra sem fim. É claro que todas as guerras têm um fim, seja qual for, mas esta está muito longe de terminar. Pessoalmente, estou com muito medo do que pode vir a acontecer. O regime do Irã, em particular, entrou numa fase muito perigosa.
Veja – Quais os maiores erros cometidos pelos Estados Unidos na intervenção no Iraque?
Cohen – Os erros decorreram de incompetência. Os Estados Unidos não se prepararam para a ocupação depois da derrubada de Saddam Hussein. Não havia estratégias sobre como os comandos militares e civis deveriam agir conjuntamente, não havia recursos nem pessoal suficientes para restaurar a economia iraquiana. Como poderia dar certo uma guerra na qual os membros do comando militar tinham de se preocupar com o suprimento de água potável e de eletricidade? Um dos nossos maiores comandantes no Iraque, Peter Chiarelli, disse que o mais importante para assegurar a estabilidade em Bagdá era dar o mínimo de infra-estrutura à população, fazer com que as pessoas tivessem acesso a esgoto, água e luz, pois a precariedade de recursos incitava ainda mais a violência. Com essas providências, os incidentes na área sob seu comando praticamente cessaram. Há muitas razões para o desastre instaurado no Iraque. Algumas são causadas pelos líderes envolvidos. Outras são institucionais.
Veja – Os Estados Unidos justificaram a invasão do Iraque com dois argumentos principais: localizar armas de destruição em massa e propagar a democracia no Oriente Médio. Os dois objetivos fracassaram. O senhor ainda justifica a invasão?
Cohen – Continuo a justificar a guerra, sim. Havia outros motivos para promovê-la. Um deles era a retirada das tropas americanas da Arábia Saudita. Os militares americanos estavam naquele país exatamente para conter Saddam Hussein. Conseguimos sair de lá. Além disso, o Iraque apoiava o terrorismo em todo o Oriente Médio. Baseado no que sabíamos naquela ocasião, não me arrependo da minha opinião. O problema não são as justificativas para a ocupação do Iraque, mas a incompetência em sua execução. Eu nunca poderia imaginar, por exemplo, que o alto-comando civil e militar trataria a "fase 4", o período pós-combate, no qual morreram mais americanos do que na guerra propriamente dita, como algo de importância secundária.
Veja – A invasão foi um capricho do presidente George W. Bush?
Cohen – Nem democratas nem republicanos querem admitir que a guerra no Iraque resultou de uma continuação da política do presidente Bill Clinton. Em 1998, o governo Clinton dizia que Saddam Hussein estava em busca de armas de destruição em massa, que seria uma catástrofe se ele as conseguisse e que devíamos nos livrar dele. Depois do impacto emocional do 11 de Setembro na população americana, o governo de Bush resolveu agir. Era preciso agir naquela hora.
Veja – Em seu livro Supreme Command, o senhor mostra como quatro grandes líderes mundiais – Winston Churchill, David Ben-Gurion, Georges Clemenceau e Abraham Lincoln – enfrentaram e venceram guerras. Qual sua avaliação de George W. Bush como um líder em tempo de guerra?
Cohen – Esses líderes do passado são figuras históricas. A comparação com Bush não é justa. Além disso, vejo Bush como um homem modesto. Acho que ele nem sequer cogita fazer parte dessa lista. De qualquer maneira, podem-se fazer algumas analogias. Assim como os quatro líderes que estudei, Bush é muito determinado. Churchill, Ben-Gurion, Clemenceau e Lincoln também tiveram muitos momentos ruins enquanto estavam no poder. Os quatro eram, de certa forma, pessoas melancólicas que persistiram muito para alcançar os objetivos em que acreditavam. Bush vem sendo testado desde os ataques de 11 de setembro e também persiste, apesar da oposição interna. Acredito que a característica mais autêntica de Bush é sua confiança, e isso tem uma influência profunda em sua forma de governar. A determinação de Bush ao conduzir suas intervenções armadas no Oriente Médio também decorre do contexto histórico. Para os presidentes que levaram os Estados Unidos a lutar no Sudeste Asiático, a Guerra do Vietnã corria paralela a outra de maior relevância, a Guerra Fria. Para o presidente Bush, a guerra será a maior marca de seu mandato, e ele sabe disso. Quaisquer que sejam suas falhas, a falta de determinação não é uma delas. Numa guerra, caráter – e acima de tudo persistência – conta muito.
Veja – Quais as qualidades de Churchill, Ben-Gurion, Clemenceau e Lincoln que os levaram a superar as dificuldades?
Cohen – Os quatro eram capazes de ouvir e absorver idéias novas e tinham uma autocrítica aguda. Eram donos de uma profunda autoconfiança, o que lhes permitia agir sem parecer arrogantes. Estudaram muito, trabalhavam pesado e sempre dominavam todos os detalhes de cada assunto. Os quatro eram também exímios oradores. Entendiam a importância dos discursos em tempo de guerra. Se há uma coisa em falta hoje são líderes capazes de sacudir as multidões com seus discursos semana após semana, mês após mês. Tony Blair é uma exceção.
Veja – Qual o peso que esses líderes deram à diplomacia em período de guerra?
Cohen – A forma como Churchill conduzia a diplomacia da guerra revela uma extraordinária capacidade de aproximação com outros líderes. Quando observamos como funcionavam as relações internacionais na I Guerra Mundial, a coesão dos aliados na II Guerra sobressai como um feito extraordinário. Churchill administrou pessoalmente todas essas relações. Escrevia cartas e freqüentemente viajava para o exterior, tanto para encontros privados com líderes como para grandes conferências. Isso solidificou a estratégia da guerra e contou muito para o sucesso dos aliados.
Veja – O senhor disse que os Estados Unidos são um "guerreiro relutante" nas questões internacionais, principalmente depois da Guerra Fria e dos atentados de 11 de setembro. Por quê?
Cohen – Os Estados Unidos não estão interessados em dominar o mundo. O problema é que somos um país extraordinariamente grande e poderoso. Não há nem houve outro país, desde o Império Romano, que detivesse poder em tantas e tão variadas frentes como os Estados Unidos. O país tem não só a maior economia como também o maior poderio militar. Como toda grande potência, nós nos vemos envolvidos nos mais variados conflitos ao redor do mundo, queiramos ou não. Muito do debate sobre a posição dos Estados Unidos no mundo não faz sentido. Esse debate supõe que os americanos ou seus líderes políticos têm um enorme controle sobre os países e regiões onde estão envolvidos. O fato é que nossa liberdade de escolha sobre nos envolvermos ou não nos conflitos é bem menor do que as pessoas pensam. Somos o país mais preocupado do planeta com os problemas alheios, o que não nos ajuda em nenhum aspecto. Somos também o símbolo da modernidade, o que ao mesmo tempo seduz e afasta as pessoas. É por isso que tantos nos odeiam – e ao mesmo tempo alinham-se em filas por vistos nos nossos consulados.
Veja – Como o senhor avalia o aumento do antiamericanismo causado pela participação do país em conflitos no exterior?
Cohen – O problema é que, se os Estados Unidos não agem, ninguém age. O governo de Bush tem sido criticado, às vezes de forma justa, outras vezes de forma injusta, por agir de maneira unilateral. Os Estados Unidos também enfrentam o mesmo problema em intervenções humanitárias ou quando intercedem em confrontos longos, como o conflito árabe-israelense. Não há outro país capaz de alterar o cenário no Oriente Médio. Até os analistas que mais criticam as intervenções americanas insistem que os Estados Unidos precisam agir em relação às questões internacionais. É difícil para o país se adequar a esse paradoxo. Mesmo quando outros países lideram uma intervenção, os Estados Unidos têm de participar dela. Um exemplo é o do Timor Leste, onde os australianos intervieram e fizeram um bom trabalho, mas precisaram ter os americanos na retaguarda para que o processo não naufragasse. A necessidade de intervir é um fardo para os Estados Unidos, mas me parece impossível não carregá-lo.
Veja – Que mudanças acontecerão no cenário mundial devido aos conflitos desencadeados pelos ataques de 11 de setembro?
Cohen – Apesar da incompetência americana na ocupação do Iraque, os Estados Unidos continuarão como força dominante no mundo. Por outro lado, estamos indo na direção de um mundo muito turbulento. Os sintomas disso são a proliferação nuclear, a ascensão de forças hostis aos Estados Unidos, a emergência de novos centros de poder, o colapso do Estado em países como a Somália e a instabilidade em lugares como o Paquistão. Um dos maiores perigos que vejo atualmente é que, com todas as críticas dirigidas aos Estados Unidos, cidadãos que acreditam na civilização estão ignorando as ameaças reais e sérias que ela sofre. Isso ocorrerá até esses cidadãos assistirem a uma explosão à sua frente – e não há metáforas nisso.
Veja – Muitos analistas acham que Israel perdeu a recente guerra para o Hezbollah no Líbano. Que conseqüências essa derrota pode ter no futuro?
Cohen – Não acredito que os israelenses, em qualquer momento, tenham pensado em destruir o Hezbollah. Sua ação militar tinha outros objetivos. Em primeiro lugar, Israel sente necessidade de restabelecer a reputação do país na região. Os israelenses acham que retrocederam demais. Saíram do Líbano em 2000, depois deixaram a Faixa de Gaza e estavam preparando a retirada da Cisjordânia. O preço disso foi o ataque do Hezbollah a partir do Líbano, o lançamento de centenas de mísseis da Faixa de Gaza contra o território israelense (a maioria não relatada pela imprensa) e a retórica da eliminação de Israel anunciada pelo Irã e disseminada por grupos como o próprio Hezbollah e o Hamas. O governo israelense entendeu que projetava uma imagem de fraqueza que precisava ser apagada. Os israelenses queriam mostrar ao mundo que são capazes de se defender ferozmente e que haverá punição severa para quem atacá-los.
Cohen – Não. O Hezbollah seqüestrou soldados israelenses, lançou mísseis e bombardeou locais cheios de civis inocentes. O ataque de Israel foi um ato de defesa. Além disso, se quiser sobreviver como país, Israel não tem escolha senão radicalizar. O islamismo chegou para preencher o espaço ocupado pelo nacionalismo dos tempos do presidente egípcio Gamal Abdel Nasser, uma ideologia fundamentada na falsa promessa de um Oriente Médio sem Israel. A saída de Israel do Líbano e de Gaza, não importam seus méritos, apenas alimentou a doutrina islâmica do sacrifício e da vitória. Os islâmicos pensam o mundo baseados na leitura parcial da realidade. Essa leitura precisa ser derrotada. A guerra de 1967 foi necessária para demolir a política nacionalista árabe de Nasser. Israel não tem escolha a não ser impor-se e enfrentar o fundamentalismo islâmico.