A tripulação do Legacy narra a VEJA, através
do advogado, o que ocorreu no vôo fatídico
Rafael Corrêa
Marcos Xavier/AE | Força Aérea Brasileira |
O piloto Joe Lepore (de camiseta branca), o co-piloto Jan Paladino (de boné), do Legacy, e o Boeing acidentado: permissão para voar a 37 000 pés |
Desde que o Boeing da Gol caiu na selva de Mato Grosso, há um mês, depois de se chocar com o Legacy, da companhia americana Excel Air, a tripulação do jatinho se manteve em silêncio. Com seus passaportes confiscados pela Justiça brasileira para que não deixem o país durante as investigações, o piloto Joe Lepore e o co-piloto Jan Paladino evitam até mesmo sair do hotel onde estão hospedados no Rio de Janeiro, temendo sofrer agressões por parte de quem os considera culpados pela morte dos 154 ocupantes do Boeing. Na semana passada, finalmente, Lepore e Paladino resolveram dar sua versão do que aconteceu a bordo do Legacy nas duas horas de vôo até o choque que derrubou o avião da Gol e os obrigou a fazer um pouso forçado numa base da Força Aérea. Em entrevista exclusiva a VEJA, o advogado americano Robert Torricella, falando em nome dos pilotos, procurou esclarecer os fatos.
Afinal, os pilotos do Legacy erraram ao permanecer na altitude de 37.000 pés depois de passar por Brasília, em vez de descer para 36.000 pés, como recomendava o plano de vôo original? Procedem as especulações de que eles teriam desligado o transponder – aparelho que transmite os dados sobre altitude e velocidade para os controles em terra – ou abaixado o volume do rádio? A afirmação mais surpreendente dos pilotos é que, ainda em terra, antes de decolar de São José dos Campos, eles receberam autorização para realizar todo o percurso até Manaus na altitude de 37.000 pés, o que os colocou em rota de colisão com o avião da Gol. Essa autorização foi reforçada pelo menos duas vezes, após a decolagem e pouco antes de o jatinho passar pelo espaço aéreo de Brasília. Às alegações de que teriam feito manobras para testar a agilidade do Legacy, Lepore e Paladino respondem com uma informação: o piloto automático do avião foi acionado no início do vôo, e assim permaneceu até a trombada com o Boeing. O avião, portanto, não teria saído da rota e teria permanecido na mesma altitude durante todo o percurso.
Quanto ao não-cumprimento do plano de vôo original, o advogado dos pilotos afirma que seguir fielmente esse documento não é, como quer o ministro da Defesa, Waldir Pires, "uma obrigação a ser cumprida". Diz Torricella: "Segundo as regras da aviação, o plano de vôo pode ser inteiramente modificado em qualquer etapa da viagem. Basta que o piloto da aeronave tenha recebido autorização do controle em terra para modificá-lo". O major-brigadeiro e consultor de aviação Renato Cláudio Costa Pereira concorda. "O plano de vôo é apenas uma proposta. Qualquer um de seus itens pode ser alterado", diz Pereira.
Os relatos dos pilotos do Legacy a seu advogado confirmam o que já se suspeitava: no espaço aéreo entre Brasília e Manaus, existem problemas de comunicação dos aviões com o controle do Cindacta 1. Fontes da Aeronáutica dizem que o Cindacta 1 tentou por cinco vezes falar com o Legacy antes do acidente. Lepore e Paladino descartam com veemência a hipótese de terem abaixado o volume do rádio em alguma ocasião. Os pilotos dizem que a única vez em que conseguiram captar alguma coisa no rádio, nesse trecho, foi pouco antes do acidente, quando receberam instruções para trocar de freqüência. Mesmo assim, não conseguiram entender os algarismos da freqüência que lhes era recomendada porque o sinal caiu. Em momento algum, alegam, receberam instruções para mudar a altitude do vôo ou fazer uma manobra de desvio. Os pilotos dizem que também tentaram estabelecer contato com o Cindacta 1 por diversas vezes antes do acidente, sem sucesso. O transponder, eles sustentam, não foi desligado em todo o trajeto até o acidente. Eles dizem que, se o aparelho falhou, não tomaram conhecimento do problema e muito menos foram avisados sobre ele pelo controle de terra. "O transponder e o rádio são essenciais para voar com segurança. Por que dois pilotos experientes abririam mão deles, colocando em risco sua vida e a dos passageiros?", questiona o advogado Torricella.
"CORRAM ATRÁS DO DINHEIRO"
Ana Araujo |
Especializado em conseguir indenizações resultantes de desastres aéreos, o advogado americano Arthur Ballen foi contratado por seis famílias que há um mês perderam parentes na queda do Boeing da Gol. Ele pretende levar os processos aos tribunais de Nova York, onde, segundo diz, a vitória está assegurada e as indenizações serão mais polpudas. Na semana passada, ele falou à repórter Daniela Pinheiro.
QUAL A DIFERENÇA DE UM PROCESSO POR INDENIZAÇÃO NOS ESTADOS UNIDOS E NO BRASIL?
A diferença é o montante de dinheiro destinado às famílias das vítimas e a agilidade da Justiça. No Brasil há advogados demais, juízes de menos e trabalho em excesso. Os trâmites são infinitamente mais lentos. Uma apelação pode levar cinco anos. Nos Estados Unidos, leva no máximo dezoito meses. O caso da Gol pode correr lá porque a empresa dona do Legacy, a Excel Air, é de Nova York. É preciso aproveitar essa oportunidade. Quando defendi 62 famílias de vítimas do vôo da TAM que caiu perto do Aeroporto de Congonhas, há dez anos, consegui uma média de 600 000 dólares para cada uma nos Estados Unidos. Quem optou pelo processo no Brasil levou apenas os 125 000 dólares oferecidos pela companhia aérea.
QUAL A SAÍDA?
É brigar para conseguir a maior compensação financeira possível. Infelizmente, seu parente morreu e não vai ser trazido de volta. Então, pare de chorar e corra atrás do que é viável. Pode parecer frio, mas é assim que funciona. A verdade é que cada pessoa tem um valor monetário. Um sujeito de 35 anos, casado, com dois filhos e boas perspectivas de ascensão profissional vale no mínimo 1,5 milhão de dólares. Uma mulher nas mesmas condições vale ainda mais. Em cada caso, o valor é determinado pela forma como a morte afeta a vida de outras pessoas.
NO CASO DO VÔO DA TAM, POR QUE ALGUMAS FAMÍLIAS SE RECUSARAM A LEVAR O CASO PARA A CORTE AMERICANA?
Elas tinham medo de ficar sem nada. Não queriam trocar a certeza da indenização no Brasil pela possibilidade de um pagamento maior no exterior. Escolheram errado. Nos Estados Unidos, esse tipo de processo já nasce vitorioso, geralmente por meio de acordos com a companhia aérea e com as seguradoras. Quem decide os acordos é um júri. Em Nova York, devido à grande diversidade étnica da população, esse júri costuma incluir muitos filhos de imigrantes. Há descendentes de irlandeses, brasileiros, guatemaltecos... Aposto que, no caso da Gol, um terço do júri será hispânico. Vai julgar uma ação contra uma empresa americana a favor de brasileiros. Nessa situação, tornam-se os jurados mais generosos do mundo. Afinal, o dinheiro não é deles.
O SENHOR APOSTA NA VITÓRIA DO PROCESSO DAS VÍTIMAS DA GOL CONTRA A EXCEL AIR MESMO QUE AS INVESTIGAÇÕES CONCLUAM QUE OS PILOTOS DO LEGACY NÃO TIVERAM CULPA?
A questão é a seguinte: está claro que o Legacy bateu no avião da Gol. Não interessa se os pilotos do jatinho tiveram culpa ou não. Existe um seguro da Excel Air, dona do Legacy, no valor de 100 milhões de dólares. É uma apólice única e limitada. Nesse montante está incluído o valor do avião da Gol, que deve ser uns 40 milhões de dólares. As famílias das vítimas precisam saber que quem chegar primeiro garantirá o seu quinhão. Quem demorar a pedir a indenização vai ficar sem ela porque o dinheiro da apólice terá terminado. Ao que tudo indica, a Gol também é vítima. Isso faz com que ela tenha o mesmo direito ao seguro que a mulher que perdeu o marido. Então, é uma questão de quem entra na fila primeiro. A Gol já está preparada para reclamar sua parte e contratou um excelente escritório de advocacia de Londres.