Entrevista:O Estado inteligente

sábado, outubro 28, 2006

Os dois Brasis que chegam às urnas

O desafio dos dois Brasis


Diego Escosteguy


Ilustração Jairo Birman
O rosto de Alckmin e o de Lula aqui e na capa de VEJA foram feitos com as imagens (repetidas para garantir uma boa resolução) de seus respectivos eleitores. Alguns depoimentos estão nas páginas seguintes

O Brasil encerra sua quinta campanha presidencial consecutiva com duas novidades. A primeira é que nunca houve tanto debate televisivo entre dois candidatos ao Palácio do Planalto: o petista Luiz Inácio Lula da Silva e o tucano Geraldo Alckmin encontraram-se em quatro ocasiões, somando mais de sete horas de confronto direto. A segunda é que, lamentavelmente, apesar da sucessão inédita de debates, nunca uma campanha presidencial passou tão ao largo das grandes questões nacionais, rendendo-se de forma inapelável ao marketing. Ainda que a história eleitoral do país mostre ser excesso de otimismo esperar que uma campanha revolva as raízes mais fundas da pátria, a atual disputa poderia ter jogado ao menos um tênue facho de luz sobre o que se espera de um governo – mas não fez nem isso. Lula e Alckmin, cada um a seu modo, limitaram-se a declamar o que suas assessorias diziam ser o que o eleitor de cada um gostaria de ouvir.

Assim, o país caminhou para as urnas exibindo uma divisão cristalina de preferências por um ou outro candidato, mas não propriamente por uma ou outra receita de país. A prevalência do marketing criou adesões emocionais aos candidatos, e isso gerou uma rispidez que havia muito não era vista em campanhas presidenciais no Brasil. O presidente eleito terá o desafio imediato de unir os dois Brasis revelados na campanha. Mas para fazer o país voltar a funcionar será preciso, mais do que unir, encontrar pontos de consenso que diminuam o atrito entre as diferentes visões de mundo. Países que deram certo são justamente aqueles em que as forças políticas mais díspares se distinguem uma da outra apenas por detalhes de condução da política e da economia. Um caso clássico na América Latina é o do Chile. Esquerda e direita no Brasil deveriam votar juntas a pauta comum de reformas que fará o país andar para a frente no ritmo necessário. Depois disso, sintam-se à vontade para discutir se o alemão Bertolt Brecht adormecia as platéias ou acordava as massas.

No primeiro turno, Lula obteve uma votação consagradora no Norte e no Nordeste, mas também teve excelente desempenho no norte de Minas Gerais, no Espírito Santo e no norte do Rio de Janeiro – justamente as áreas mais pobres da Região Sudeste. Alckmin concentrou sua votação nas regiões Sul, Centro-Oeste e Sudeste. Em Minas Gerais, foi o mais votado no sul e no Triângulo Mineiro – justamente as áreas mais ricas do estado. A divisão tão claramente desenhada entre ricos e pobres é resultado de uma análise feita pelo professor Cesar Romero Jacob, da PUC do Rio de Janeiro, que coordenou um estudo sobre a geografia do voto nas eleições presidenciais (veja a reportagem seguinte). No segundo turno, a se levar em conta o resultado das últimas pesquisas eleitorais, essa divisão antes tão clara tornou-se um pouco menos aguda, com Lula crescendo nas áreas e camadas mais ricas do país.

Beto Barata/AE
O Congresso, onde devem se produzir grandes consensos: silêncio sobre os mais candentes problemas nacionais

O desafio, no entanto, permanece inalterado: como fazer para unir o Brasil? Ou, mais exatamente: como construir no Brasil uma democracia de massas com uma sociedade tão desigual? Nas campanhas de Lula ou Alckmin, essa questão fundamental não foi sequer mencionada. Lula consumiu o tempo esquivando-se de dar explicações sobre os escândalos no governo e no PT e desfilou todas as comparações imagináveis – as corretas e as falsas – com os oito anos do governo de Fernando Henrique para tentar mostrar a superioridade de sua gestão. Alckmin, por sua vez, vacilou sobre os assuntos que a campanha trouxe. Não soube defender as privatizações, nem mesmo na semana em que a Companhia Vale do Rio Doce, evidenciando o sucesso de sua privatização em 1997, virou a segunda maior mineradora do mundo. Alckmin fez a denúncia sistemática da podridão do governo Lula, mas falhou miseravelmente ao não conseguir estabelecer a diferença essencial entre a corrupção que acontece por falhas do sistema (e que pode aparecer em qualquer governo de qualquer país) e a corrupção endêmica (que virou marca registrada do governo petista).

As pesquisas mais recentes mostram que o presidente Lula chega ao dia da eleição com uma confortável vantagem em torno de 22 pontos porcentuais sobre seu adversário. Isso representa uma montanha de mais de 20 milhões de votos, muito semelhante à dianteira que estabeleceu sobre o tucano José Serra na campanha presidencial passada, que ficou em 19 milhões de votos. E, no entanto, são brutais as diferenças entre o Lula de 2002 e o Lula de agora, sobretudo no que se refere à espetacular erosão de seu patrimônio ético. Geraldo Alckmin fez a trajetória inversa. Com 39 milhões de votos, saiu do primeiro turno fortalecido e parecia que daria muito trabalho ao seu adversário – mas a impressão não durou mais do que dez dias, quando saíram as primeiras pesquisas apontando sua queda. No último levantamento do Datafolha, em torno de 4 milhões dos eleitores de Alckmin estavam decididos a votar em Lula. Se as últimas pesquisas estiverem corretas, o tucano terá agora cerca de 36 milhões de votos, uma votação inferior à que teve no primeiro turno.

A campanha, os discursos e a geografia do voto – nada disso ajuda a unir os dois Brasis que a eleição trouxe à tona. Com seu Bolsa Família tão bem-sucedido eleitoralmente, Lula acabou trazendo para o centro da cena política as classes menos favorecidas – e isso é um ótimo sinal. O desafio, até agora silenciado, seja na campanha eleitoral, seja no Congresso Nacional, onde deveriam ser produzidos os consensos nacionais, é como manter esses novos atores no palco e agregá-los ao país, tarefa que, naturalmente, não se cumpre com assistencialismo. "É preciso conjugar crescimento econômico com distribuição da riqueza", receita o filósofo José Arthur Giannotti, professor aposentado da Universidade de São Paulo. Para tanto, o país precisa trabalhar em duas direções. Primeiro, tem de derrubar as barreiras contra o capitalismo, o único regime conhecido capaz de gerar riqueza – coisa que até a China já percebeu. Em segundo lugar, como o capitalismo também produz desigualdade, o país precisa empenhar-se em distribuir a riqueza de modo a reduzir a desigualdade ao máximo. "O problema é que a eleição está mostrando que a maioria da população quer crescer sem capitalismo. A maioria está querendo crescer à sombra do Estado, na base do jeitinho", diz Giannotti, descrevendo em seguida outra divisão que permeia o país: "Estamos divididos entre os 'modernizadores', que estão dispostos a pagar um preço pelo capitalismo, e os 'conservadores pintados de vermelho', que querem estradas perfeitas mas sem pedágio, educação de bom nível mas sem controle da qualidade, e por aí vai". A chave da prosperidade brasileira não é outra senão encontrar uma pauta comum entre os modernizadores e a esquerda conservadora.

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