Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, outubro 30, 2006

Lula e mais Lula JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI



Artigo -
Folha de S. Paulo
30/10/2006

Não há dúvida de que a vitória se deve a um programa de inclusão social. Mas temo que as eleições, em vez de resolver a crise política, apenas a tenha aprofundado

Antes de tudo, gostaria de louvar o caráter democrático dessas eleições. Não ignoro as enormes deformações pelas quais passou o processo eleitoral: o predomínio do marketing político a evitar uma discussão mais rente dos desafios que nossa sociedade enfrenta; a manipulação dos dados; a dificuldade de se chegar a fundo dos inúmeros casos de escandalosa corrupção; o uso indevido de serviços estatais e assim por diante.
No entanto, seja com for, as instituições funcionaram normalmente, o processo eleitoral foi limpo, correto e admiravelmente eficaz e não me parece que a vitória de Lula e do lulismo não exprima a vontade da maioria da população.
Não é por isso, entretanto, que (usando do direito da minoria) vou deixar de exprimir minha profunda decepção com esse resultado, meu temor de que as eleições, em vez de resolver a crise política, apenas a tenha aprofundado. O funcionamento da democracia política mais encobriu do que revelou os desafios a serem enfrentados para que o Brasil seja uma nação moderna e mais justa. Não há dúvida de que a vitória de Lula se deve ao sucesso de um programa de inclusão social, que, se na verdade integra e aumenta projetos do governo anterior, não deixa de ser muito alvissareiro, na medida em que continua, de maneira considerável, a aumentar o poder de compra das classes mais desfavorecidas. Mas o desafio é mantê-lo e aumentá-lo.
Como isso se tornará possível com a medíocre taxa de crescimento obtida nas últimas décadas? Ora, não vejo como se possa trilhar o caminho do desenvolvimento sustentável sem que se encontre nova figura para o Estado brasileiro. É quase consenso de que esse Estado não corresponde às nossas necessidades, de que de alguma maneira ele precisa se tornar mais eficaz e menos perdulário. Ora, se o lulismo não enfrentar esse desafio, não vejo como sairemos do impasse em que nos metemos.
Mas, no final das contas, o que é esse lulismo? De um lado, um movimento que tem o mérito de trazer para o palco político as camadas mais desfavorecidas da população. E como, a meu ver, elas chegaram para ficar, a tarefa é descobrir novas formas de representação social compatíveis com a democracia formal. Desde o século 19 se sabe que a democracia patina em terrenos de extrema desigualdade.
Como aprofundar a democracia, não cair nos encantos do populismo e não perder de vista a importância de um governo que se faça sob o estrito comando da lei?
Na campanha eleitoral do segundo turno, dois temas foram privilegiados. Desde o início, a oposição colocou em pauta a necessidade de um governo obediente às normas morais, levando-se em conta, obviamente, a necessidade de flexibilizar padrões normativos nos momentos de crise do Estado. Mas, rapidamente, o discurso governista se recuperou na base de dois argumentos.
Primeiro, a política é corrupta por sua própria natureza, mas na história do Brasil nunca esse tumor foi lancetado com tanta profundidade. A oposição simplesmente não conseguiu mostrar que há diversas formas de corrupção -a corrupção romana não sendo a mesma coisa do que a nossa corrupção colonial- , de sorte que a tarefa consiste agora em desmascarar o conúbio dos fundos públicos com os fundos partidários, numa fusão que somente tem sentido no autoritarismo dos governos implementados pelo socialismo real.
E, sob esse aspecto foi muito curioso, observar a transformação da vergonha petista diante dos primeiros escândalos no desprezo por aqueles que caíram nos vícios de um udenismo retumbante (vale dizer, no bumbo petista de cinco anos atrás).
Segundo, a ideologia lulista se mostrou ferozmente contrária à venda do patrimônio nacional, contra as privatizações corruptas e inteiramente favorável ao estatismo purificador. Por certo o lulismo aceita privatizar serviços futuros, como propõe a PPP, mas o que é do Estado é do povo e ninguém deve meter a mão nesse tesouro, a não ser alguns, ungidos pelos evangelhos partidários.
A oposição se esborrachou tentando convencer que não pretendia privatizar empresas estratégicas, como a Petrobrás, e quase se desculpou pelas privatizações já feitas. Mas a Vale do Rio Doce, como tantas outras empresas estatais, antes de ser patrimônio, é capital, que somente perdura enquanto crescer e se tornar competitiva no plano internacional. Não é à toa que até mesmo a Petrobrás tem ações na bolsa. A oposição foi incapaz de explicar que a oposição contemporânea entre o público e o privado vai além da questão da propriedade, pois um bem público, em determinadas circunstâncias, pode virar pó a partir do momento em que se insere no movimento do capital internacional. E deixando de elucidar esse ponto elementar da teoria social democrática -de que certas empresas mesmo públicas funcionam como capital-, ficou acuada e não soube nem mesmo esclarecer que a privatização, isto é, a capitalização, somente pode ser admitida se agências reguladoras vierem contrabalançar os efeitos perversos do capital.
Deixou assim, à margem, o problema crucial de uma política social universalizanate: deixar a riqueza social crescer em termos capitalistas e armar um sistema público de regulação que contrapese os efeitos perversos da globalização capitalista. O lulismo ainda acredita que essa última tarefa possa ser cumprida por um único partido ou pelo gênio inovador de um líder, que é ao mesmo tempo proletário e rentista do partido ou do Estado.

JOSÉ ARTHUR GIANOTTI é professor emérito da USP e membro fundador do Cebrap

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