Artigo - Demétrio Magnoli |
O Estado de S. Paulo |
19/10/2006 |
Lula corteja José Sarney e, no Maranhão, faz dobradinha com Roseana. Lula beija a mão de Jader Barbalho. Lula projeta um mandato “excepcional” para Fernando Collor e recebe, do presidente caído, apoio à sua reeleição. Lula acusa a “elite que governa este país há 500 anos” e, ato contínuo, se apresenta como a reencarnação combinada de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek. Na barafunda pós-moderna da política lulista, aparentemente não há nada de singular na confraternização do presidente com o deputado Delfim Netto, o czar econômico da ditadura militar entre 1967 e 1974. Mas não é tudo igual. Sob a ótica de Lula, as figuras políticas valem pela serventia que podem ter para o seu projeto político pessoal. Sarney é uma peça crucial no arranjo parlamentar lulista. Barbalho controla uma máquina política significativa. Collor tem votos, apesar de tudo. Vargas e JK são monumentos de uma certa memória cujo culto interessa ao salvacionismo lulista. Delfim, por outro lado, nem sequer conseguiu um novo mandato. Ele não mais possui valor tangível. Por que Lula o ressuscitou politicamente e o converteu em estrela de sua campanha? “Quero dizer da minha alegria de estar aqui com Delfim, uma das pessoas de quem a gente mais divergia na década de 70. Eu, como dirigente sindical, fazia todas as críticas numa época em que a gente tinha no Brasil uma contradição muito forte. Ao mesmo tempo tinha o auge do autoritarismo militar, tinha o auge do crescimento econômico.” São palavras menos convencionais do que parecem: Lula, no fim das contas, tem uma ideologia. Na consciência política de uma parte da esquerda agrupada no PT, o vazio deixado pela dissolução do socialismo foi preenchido por um nacionalismo tosco que é também amargura e desejo de restauração. Esses órfãos do Muro de Berlim interpretam quase todo o período aberto pelo fim do regime militar como uma queda contínua, um ciclo desastroso que sintetizam por meio do termo “neoliberalismo”. Eles nunca admiraram as virtudes da democracia, essa “invenção burguesa”, e sua combinação com as privatizações e a liberalização comercial pareceu-lhes demonstrar a natureza monstruosa daquilo que veio depois dos generais-presidentes. Ofuscados pelo brilho falso dessa narrativa da nossa história recente, nem sequer enxergam o fato estatístico de que um recuo sustentado da pobreza começou em 1992 e seguiu adiante, governo após governo. Lula não é de esquerda, mas compartilha essa narrativa da queda. O lulismo, como ideologia política, é um salvacionismo conservador: “O Lula não é o Lula; o Lula é uma parte do povo desse país que adquiriu consciência política. É por isso que eu não caio. Porque eu não sou sozinho. A hora que eles tirarem as minhas pernas, eu vou andar pelas pernas de vocês; a hora que eles tirarem os meus braços, eu vou gesticular pelos braços de vocês; a hora que eles tirarem o meu coração, eu vou amar pelo coração de vocês. E a hora que eles tirarem a minha cabeça, eu vou pensar pela cabeça de vocês.” Esse trecho de um comício eleitoral recente sintetiza o salvacionismo lulista. No diapasão do discurso do salvador da pátria não há lugar para a trama de mediações institucionais da democracia. Lula e o povo, tornados uma entidade única, preenchem todo o palco e fazem a história inteira. Mas para salvar a pátria o líder que é o povo precisa de um Estado forte, capaz de dar e tirar, proteger e ameaçar, patrocinar e subornar, incorporar e subordinar. A vontade de restaurar um Estado assim é o traço de união entre Lula e a esquerda stalinista. Na campanha eleitoral de 2001, antes da aliança que acabou por estabelecer com Delfim, Lula fez o elogio da “capacidade de planejamento estratégico” da ditadura militar. A frase passou batida, como tantas outras na babel conceitual lulista. Mas ela se desdobrou no campo plástico da política externa, na qual o discurso é quase tudo, sob a forma de uma restauração da estratégia do Brasil-potência. As proclamações arrogantes da “liderança natural” brasileira na América do Sul e a perseguição obtusa da cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU evidenciaram a força dessas perigosas nostalgias. Felizmente, poucos notaram, mas emergiu das sombras até mesmo uma proposta irresponsável, assinada pelo secretário-geral do Itamaraty, de engajamento do País num programa nuclear com fins militares. Na saudação a Delfim Netto, Lula elaborou uma interpretação dicotômica da ditadura militar, assentada nos pólos complementares do autoritarismo político e do crescimento econômico. É um recorte histórico arbitrário, que oculta a estagnação da fase derradeira do regime, justamente o momento em que emergiu o sindicalismo do ABC e nasceu o PT. Mas o recorte tem um sentido político, pois se destina a contrastar virtudes econômicas imaginárias do autoritarismo com uma suposta incapacidade da democracia “neoliberal” de promover crescimento e bem-estar. A vitória eleitoral de Lula, quatro anos atrás, foi saudada como um sinal inequívoco da vitalidade da democracia brasileira. Isso era verdade, mas não toda a verdade. O desenvolvimento do lulismo como um salvacionismo, isto é, como um sistema de poder em atrito com as instituições democráticas, assinala o encerramento de um ciclo histórico na vida nacional. No ciclo que agora se inicia, as regras do jogo são outras. Lula e Delfim, que simbolizaram vontades e desejos opostos, já podem caminhar lado a lado, como aliados ideológicos genuínos. Lula já pode, como o fez, atribuir o fracasso eleitoral de Delfim à “vingança de um conjunto de elitistas”. As pessoas, acostumadas com as regras antigas, se confundirão por algum tempo. Mas a novidade veio para ficar. |
Entrevista:O Estado inteligente
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quinta-feira, outubro 19, 2006
O lugar de Delfim por Demétrio Magnoli
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