Sergio Fausto
Saltam aos olhos as feridas abertas ou agravadas ao longo de uma campanha que começou morna e terminará quente, embora tenha sido vazia de conteúdo do início ao fim. Não bastasse a animosidade crescente entre as principais lideranças políticas (em grau desconhecido para os que não viveram os anos anteriores a 1964), vê-se também o acirramento dos ânimos, na sociedade, entre os partidários das duas principais candidaturas. Para completar, acumulam-se, contra o provável vencedor, questionamentos judiciais que podem vir a pôr em xeque a legalidade de seu eventual segundo mandato (hipótese improvável, mas que compõe o delicado quadro político pós-eleitoral).
Não cabe tapar o sol com peneira: as feridas são profundas e indicam os riscos de uma contaminação mais ampla da convivência democrática. É só lembrar do episódio recente, ocorrido num bar do Leblon, no Rio de Janeiro, quando uma moça vestindo uma camiseta de apoio ao presidente-candidato teve a ponta de um dos dedos da mão arrancada por uma mordida, após ser hostilizada por outros clientes. Basta passar os olhos pela internet e pelas comunidades do Orkut, onde proliferam mensagens de ódio e preconceito de parte a parte, para saber que o episódio do Leblon, longe de ser um fato isolado, é a expressão chocante de uma atmosfera política que se difunde um pouco por toda parte.
O encerramento da disputa eleitoral não será remédio suficiente para cicatrizar as feridas que foram abertas. Tampouco um compromisso em nome da “governabilidade” cumprirá esse propósito. Isso porque elas são sintomas de processos orgânicos e, por isso, não se prestam a tratamentos ou curativos superficiais.
Não resta dúvida de que parte dessas feridas se explica pelo preconceito social historicamente alimentado contra movimentos, partidos ou lideranças originadas fora dos círculos da elite. Essa explicação, porém, além de parcial, serve antes para encobrir do que para elucidar a causa mais direta e potente do atual estado de coisas na política brasileira. A verdade é que, há muito, Lula e o PT se tornaram parte da elite e absorveram, inovando, mas não necessariamente para melhor, velhas práticas oligárquicas de apropriação do Estado e de recursos públicos para fins privados. A inovação fundamental consiste na organização sistemática da corrupção e na adoção de expedientes que ficam na fronteira do banditismo político, quando não a ultrapassam. O resultado é que o presidente-candidato e o seu partido abalaram a fundo o respeito pelas instituições e pelas autoridades políticas maiores do País.
Como pretender que o Brasil avance nos próximos quatro anos, sem restabelecer uma precondição tão essencial para compromissos democráticos em torno de uma agenda de políticas públicas que realmente interesse ao País (e não apenas aos propósitos do presidente-candidato e de seu partido)? A campanha que agora se encerra, limitada no mais das vezes a generalidades, não ajudou na definição mais clara do conteúdo e das prioridades dessa agenda. Pior, comprometeu as já difíceis condições políticas para um eventual entendimento em torno dela. Se, quanto à primeira falha, a responsabilidade pode ser igualmente atribuível aos dois candidatos, quanto à segunda ela recai exclusivamente sobre o presidente-candidato.
No único momento em que se viram ameaçados pelo espectro da derrota, Lula e os seus mandaram definitivamente às favas quaisquer escrúpulos nos ataques ao adversário. Fizeram assim uma opção perigosa. Deixo entre parênteses as suspeitas de politização das investigações da Polícia Federal sobre o caso do dossiê falso, porque por ora são ainda suspeitas não confirmadas, embora muito graves. Melhor ficar no campo das evidências. Quem há de negar o teor protofascista de um arsenal retórico que incluiu desde boatos infundados, da privatização da Petrobrás e do Banco do Brasil à internacionalização da Amazônia, até a deliberada instigação do preconceito contra o candidato da oposição e seu partido, estigmatizados como “inimigos do povo, do Nordeste e da Amazônia”?
Da boataria e da estigmatização tomaram parte ativa não apenas ministros e assessores diretos, senão que o próprio presidente-candidato. Com isso, minaram as já precárias bases de um possível diálogo futuro e, mais grave ainda, mobilizaram, com falsos estereótipos, sentimentos que exacerbam o antagonismo irracional entre regiões e grupos sociais e, nessa medida, representam séria ameaça à convivência democrática num país de tantas diferenças e desigualdades.
Ao enveredar por esse caminho, Lula deveria ter meditado melhor sobre as conseqüências da opção que fazia. Provavelmente acertou do ponto de vista estritamente eleitoral, a julgar pelo que revelam as últimas pesquisas de intenção de voto. Possivelmente errou da perspectiva de um candidato-presidente que tem a pretensão de conquistar um segundo mandato e deveria cuidar das condições efetivas para governar na eventualidade de sair-se vitorioso. Certamente agiu, como de resto vem agindo na maioria das vezes desde a sua posse, como um político que não parece sequer compreender a importância prática e moral dos valores, regras e padrões de conduta que se exigem de um presidente da República sob regime democrático.
Se vier a ser reeleito, pesa-lhe sobre os ombros a responsabilidade de sanar as feridas causadas por esta que é a mais maldita herança de seu primeiro mandato.
Sergio Fausto, cientista
político, ex-assessor do Ministério da Fazenda, é coordenador de Eventos e Projetos do
Instituto Fernando Henrique Cardoso. E-mail:
sfausto40@hotmail.com
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