Entrevista:O Estado inteligente

domingo, outubro 22, 2006

DANIEL PIZA


Ficções políticas

Daniel Piza

O Clube dos Polianas dizia que o segundo turno seria importante para que houvesse debate de propostas. Não houve. E o que é mais curioso na guerra de números e acusações entre os candidatos Lula e Alckmin é a sensação de que eles falam de outro país. Nos seus discursos, o Brasil só precisa de um ou outro ajuste, ampliar uma ou outra tendência vigente (queda dos juros, aumento da Bolsa Família) e - shazam! - o Primeiro Mundo será aqui. Nem parece que a educação fica na lanterna de todos os exames, que a renda média é menor do que era há 12 anos, que metade da população não tem rede de esgoto nem emprego formal, que ladrões e corruptos seguem impunes.

Fico pensando em Koizumi, primeiro-ministro do Japão até há pouco. Dizem no Brasil que em quatro anos um governo não pode fazer muita coisa. Koizumi privatizou os Correios, enfrentando a poderosa máfia estatal, cortou gastos improdutivos e tirou o país da paralisia econômica que durava mais de dez anos. Também lançou questões como a reforma da educação, excelente nas estatísticas, desatualizada no conteúdo, e adotou medidas para estimular uma mentalidade mais inovadora, que brilhe no software como brilha no hardware. No Brasil, teria menos votos que Cristovam Buarque. Por aqui não existem estadistas porque eles não sabem, como dizia De Gaulle, que às vezes é preciso escolher a nação em vez do eleitorado.

É melhor rir do que chorar quando se ouve dos representantes do atual governo que não é preciso fazer nada para combater o déficit público porque o crescimento de 5% a partir dos próximos anos será suficiente para cobri-lo. Segundo tais luminares, como Guido Mantega e Tarso Genro, 'as condições estão dadas' para esse ritmo de crescimento, em referência à inflação baixa (em grande parte por causa do câmbio valorizado e da economia desaquecida) e à redução dos juros (cuja taxa real, de cerca de 10%, ainda é a maior do mundo). Eles simplesmente ignoram o que fazer para aumentar a taxa de investimentos ora em 20% do PIB - e com queda no ingresso estrangeiro - e fingem que isso nada tem a ver com as contas públicas. É a mesma desconversa monetarista sobre 'fundamentos' que o governo FHC usava.

É preciso tirar o chapéu para a turma de Duda Mendonça que faz a campanha de Lula. Botaram Alckmin de volta à defensiva ao ressuscitar a crítica às privatizações. Enquanto isso, Lula se gaba das exportações em seu mandato, nas quais dão show ex-estatais como Embraer e Vale e o setor de telefonia celular. E ele ainda se compara com Juscelino Kubitschek, que, se vivo fosse, faria de tudo para abrir a economia brasileira ao dinamismo da era digital.

Tucanos mandam mensagens agressivas porque disse que Lula só perderia para ele mesmo - tanto que o dossiê Vedoin foi o que levou ao segundo turno - e que Alckmin não havia tirado voto nenhum no debate. Mas desde o ano passado está claro que a aprovação popular de Lula resiste aos escândalos de toda espécie. Um dos motivos é o que aquele assessor de Bill Clinton diria de forma adaptada: 'É a comida, estúpido' Lula, em tantas coisas uma repetição de FHC, usufrui de uma situação muito parecida com a do tucano em 1998, quando reeleito em primeiro turno: inflação baixa, redução da extrema pobreza, aceitação dos mercados interno e externo. Assim como para o banqueiro Olavo Setúbal, para o mais desnutrido dos brasileiros não existe muita diferença concreta entre Lula e Alckmin. Logo, Lula tem direito a mais quatro anos. Não se trata de um embate entre puros e impuros.

Também é de gargalhar a tese de que a grande mídia foi 'vencida' pela vontade popular. No primeiro ano de mandato, quando Lula flutuava em uma aprovação de quase 90%, só me lembro de três ou quatro articulistas que alertavam para o despreparo e a cobiça dele e de sua trupe. Quando se anunciou o PIB de quase 5% em 2004, quase ninguém se deu ao trabalho de notar o efeito estatístico (os três anos medíocres que vieram antes) e a insustentabilidade do ritmo (dada a incompetência da gestão, a falta de infra-estrutura, etc.). Depois dos casos Waldomiro e mensalão, aí sim ele passou a ser a mais criticado, mas exclusivamente no tom moralista. E isso não impede que muitos jornalistas e intelectuais ainda declarem que, se ACMs e Sarneys fizeram todas essas coisas feias, Lula não pode ser acusado de não ser diferente deles, embora tenham nos jurado o contrário por mais de 20 anos. Ou digam que ele aproxima ricos e pobres, mesmo que todo dia fale mal de uma elite à qual julga não pertencer.

Outro sinal é a falta de protestos contra a proibição de que comentaristas em rádio e TV - como Arnaldo Jabor na CBN e o pessoal do Manhattan Connection no GNT - não possam emitir sua opinião. Cadê as entidades de classe, cadê os defensores da liberdade de expressão? Estão discutindo se a imprensa deveria ou não ter publicado a foto do dinheiro do dossiê, flagrado nas mãos de petistas (ou alguém botou lá à força?) e escondida pela cúpula da PF? Nesse quesito estamos anos-luz atrás de países desenvolvidos, onde todos os jornais declaram seu voto em editorial e todos os opinadores criticam livremente. Imagine David Letterman fazendo com Lula o que faz com Bush toda noite em seu talk show... Certamente iam querer extraditá-lo.

Fico também pensando no que não soubemos desta campanha do futuro vencedor das eleições. O que envolve o acordo entre Lula e o PMDB de Sarney, Quércia e Renan? Quantos cargos terão nos ministérios, no BNDES, nas estatais como Petrobrás, Banco do Brasil, Correios e Caixa, que por sinal sustentam a indústria cultural nacional? Onde está José Alencar? O que faz José Dirceu? Lula parece herói de western: todo mundo que o acompanhava foi derrubado e ele continua em pé, como se premiado pelo destino. Mas os coadjuvantes apenas se fingem de mortos, e o roteiro prevê vida longa a todos eles.

RODAPÉ

A intenção da nova revista Piauí é contar boas histórias de fatos corriqueiros ou personagens excêntricos e isso ela faz muito bem, principalmente nos textos curtos da seção 'Esquina' (como o de Roberto Jefferson e seu pai e o do provador de café). Esse tom menor é o que o título quer sugerir. João Moreira Salles, criador do projeto, é fã de Joseph Mitchell, o grande repórter da New Yorker dos anos 40 a 60. A paginação lembra um pouco a revista americana, mas infelizmente a Piauí não tem duas de suas principais características: o requinte gráfico e - apesar do ensaio de Pompeu de Toledo sobre o papagaio como símbolo nacional - o jornalismo cultural, nem mesmo na forma de perfis. Tampouco tem a reportagem 'at large', sobre um grande tema, mesmo que parta de um episódio cotidiano; a matéria mais ambiciosa, sobre a teatralização de Fidel Castro em entrevista para jornalista do New York Times, é tradução. As fotos dos políticos por Orlando Brito e o relato do Rio por Ivan Lessa são destaques. Falta 'punch', mas não falta o que ler.

UMA LÁGRIMA

Atrasada para Fernando Gasparian, o fundador do semanário Opinião, da editora Paz e Terra e da livraria Argumento. Ele publicou muito do pensamento de esquerda dos anos 60 e 70 e ajudou intelectuais como Fernando Henrique Cardoso e Paulo Francis. Outra lágrima para Gilles Pontecorvo, diretor de A Batalha de Argel e Queimada!, que também refletiu a visão esquerdista da época. Os dois filmes sobrevivem pela força narrativa, com o estilo documental no primeiro caso e com as atuações como a de Marlon Brando no segundo.

VINTE LISTAS

Quero lembrar alguns nomes que não citei e gostaria de ter citado, entre outros, nas listas da semana passada: o compositor americano John Adams, um dos melhores vivos, de quem Roberto Minczuk já regeu A Transfiguração das Almas; o cineasta Woody Allen, que, apesar de seu melhor filme ser de 1989, Crimes e Pecados, vem nos divertindo muito desde então; e o arquiteto Isay Weinfeld, que faz belas casas e lojas em São Paulo.

POR QUE NÃO ME UFANO

Só mesmo num país onde 'burguês' continua a ser usado como adjetivo pejorativo para obras culturais, e onde expressões como 'inclusão social' são repetidas como mantra pela chamada intelligentsia, uma Bienal como a corrente poderia se dar. A politização tomou conta dos três andares do pavilhão. O discurso é mais importante que a linguagem, e a sensação é a de que os participantes foram escolhidos pelos temas, isto é, pela ideologia que vendem. Pobres arranjos cênicos se justificam pelo engajamento em questões como imigração, ecologia, sexualidade, etc. Não pela qualidade estética. É claro que há uma ou outra coisa para ver, como os desenhos de Simon Evans, mas o que predomina é o realismo social - vídeos sobre travestis, manequins da Daspu, ambientação da Floresta Amazônica, fotos, fotos e quase nenhuma pintura.

Aforismos sem juízo
Se houvesse perfeição, não haveria movimento.

E-mail: daniel.piza@grupoestado.com.br Site: www.danielpiza.com.br

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