Ultimamente tenho ouvido e lido muito sobre golpismo.
Ainda não consegui chegar a um denominador comum entre as várias manifestações de golpismo, mas parece que a tendência do governo e de seus partidários é considerar golpismo qualquer crítica ou manifestação contrária ao governo ou aos governantes. Deve-se, claro, excetuar liminarmente essa irresponsabilidade de “Fora, Lula”. Se bem que, há alguns anos, muitos lulistas tivessem gritado “Fora, FHC”, isso não justifica absolutamente o “Fora, Lula”. “Fora Lula”, sim, é golpismo. Ele, assim como o dr. Fernando Henrique antes, é o presidente constitucionalmente eleito e legítimo, não tem nada desse atraso burro de considerar uma boa idéia tirá-lo da presidência na marra.
Mas, na verdade, eu acho que, se alguém gostaria mesmo de tirá-lo do poder na marra, é uma minoria microscópica.
E quem fala mais nisso não é nem essa minoria, é o governo. Está virando ladainha. Não só existem esquemas golpistas e armações florentinas na grande imprensa (fico sempre chateado porque nunca me dão ousadia de me incluir nessas armações, é uma vergonha, acho que já me dão por favas contadas, inocente útil da pior categoria), como a Zelite abomina o presidente e está agora querendo se livrar dele.
Há uma certa confusão nesse negócio todo, e talvez o presidente precise situar as coisas numa perspectiva mais clara. Sob quase todos os aspectos, ele mesmo já pertence à Zelite faz muito tempo. Na Zelite política, ocupa o topo do Poder Executivo, que o povo brasileiro se acostumou a ver como o mandachuva geral. Na Zelite econômica e social, de acordo com os padrões do governo, ganha e vive como milionário, num mar de mordomias. Freqüenta a melhor sociedade, entre outros presidentes, reis, rainhas e celebridades. Somente a Zelite pode manter filhos estudando no exterior, como ele. A Zelite dirigente, notadamente na área econômica, não quer saber de outro presidente.
Isto tudo me parece fora de questão.
Creio que a confusão se dá porque o presidente sente que, apesar de estar na Zelite, há uma área em que será sempre forasteiro, há preconceitos que sempre enfrentará. Com certeza é verdade.
O presidente, em São Paulo, convive bem com a Zelite e, de certa forma, pertence a ela. Mas aristocrata, paulista quatrocentão, claro que ele nunca vai ser — nem ele, nem eu, aliás, nem a maioria de nós. Entrar mesmo, ele não entra — nem eu etc. etc. Situação talvez chata para a mente um tantinho megalômana do maior presidente que este país já viu. Povo ele decididamente não é mais, há muito tempo. E grã-fino, grãfino no duro mesmo, nunca vai ser, o alpinismo social é traiçoeiro.
Acresça-se a isso a vaidade do presidente.
Ninguém é bobo e, apesar dos esforços que ele fez para aparentar tirar de letra as vaias, todo mundo notou que ficou bastante mordido e pensa muito no assunto. Para quem se tem em altíssima conta e, ao mesmo tempo, parece padecer de fragilidades emocionais, carências e recalques, além de acreditar nas próprias patranhas, é uma situação muito dura. Piorada agora porque, depois que ele passou recibo das vaias, deverá ser vaiado em qualquer lugar em que aparecer. Multidão se comporta de maneiras radicais, e a tentação perversa de puxar uma vaia, quando ela vai com certeza afetar o equilíbrio do vaiado, é irresistível para muita gente. É mais ou menos como apelido: se o sujeito não liga, o apelido pode não colar; mas, se se aborrece, reclama ou xinga, aí é que pega mesmo.
E, aí, como reage ele? Reage quase infantilmente, quase na base do “ah é, ah é, é guerra, é?” Quer saber quem bota mais gente na rua do que ele. O que é isso? É para promover um confronto? A presidência irá convocar seus partidários para embates com a — meu Deus de céu — Zelite, nas avenidas e praças públicas? Além disso, essa é uma manobra bastante arriscada, que já levou muita gente boa a desenganos, em nossa história republicana. Melhor esquecer a malcriadez e se acostumar a que, apesar de ele ser o Maior do Mundo, há gente que não gosta ou discorda dele.
Discordar, aliás, nunca foi golpismo.
Também já está enchendo o saco de quem quer ter suas opiniões e pensar como acha que deve pensar a noção de que, mesmo se discordando do governo ou do presidente, deve-se calar a boca.
Falar contra ele seria se aliar a tudo de ruim que existe contra ele. O que é isso, outra vez? E tudo de ruim que está com ele? E tudo de ruim com que ele está? Quem bradava contra o pensamento único na época de FHC agora é a favor? É ame-o ou deixe-o? É “Lula certo ou errado”? Por que se é obrigado a silenciar diante de um governante que rompeu tão radicalmente com seu passado, e, em última análise, serviu-se do ex-grande partido que criou — e ainda se servirá, se precisar, embora já tenha sido flagrado dando a impressão de que considerava o PT um estorvo às vezes bem chatinho? E por que nós nos devemos omitir, para não sermos reacionários? Primeiro, ser reacionário é um direito. E, mesmo que não fosse, esse governo é que é reacionário, a começar pela sua “política social” assistencialista, legado monstruoso que perdurará por gerações, com conseqüências imprevisíveis.
Não há o que mostrar nesse governo que não possa ser considerado reacionário ou conservador, das práticas políticas à condução das grandes questões nacionais.
Não tem golpismo. Tem é o exercício do direito de crítica, que não foi dado por governo algum, nem é generosidade de ninguém, é direito inalienável do cidadão, e quem quer cerceá-lo de uma forma ou de outra, até mesmo por mera pressão social, é que é golpista ou pior.
Sem ninguém para falar contra atos seus, que seria o presidente senão um ditador? Chamar os críticos de golpistas dá direito a perguntar: é ditadura o que Lula e os lulistas querem?
Entrevista:O Estado inteligente
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