Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 25, 2007

VEJA Entrevista: João Doria Jr.

Entrevista: João Doria Jr.
"Prefiro cães a ladrões"

Um dos líderes do "Cansei", ironizado por ter organizado
um passeio de "cachorros de madame", diz que é
antidemocrático impedir ricos de se manifestar


Thaís Oyama

Roberto Setton

"Desde quando, para você ter o direito de se expressar, é preciso ter atestado de pobreza?"

O empresário, jornalista e publicitário João Doria Jr. não bebe, não fuma, não fala palavrão e, graças ao apreço que tem pelos detalhes – e ao gel, que usa desde os 9 anos de idade –, jamais foi visto em público com um fio de cabelo fora do lugar. João Doria Jr. é um perfeccionista, um trabalhador obcecado e um dínamo do meio empresarial. Começou a trabalhar aos 13 anos, depois de ver o pai, o deputado federal João Doria, cassado em 1964, perder todo o patrimônio no exílio. Aos 18 anos, já era diretor de uma rede de TV e, aos 38, fundou um grupo de lideranças empresariais, o Lide, que reúne quase metade do PIB brasileiro. Hoje, aos 49 anos, é um dos líderes do Movimento Cívico pelo Direito dos Brasileiros, mais conhecido como "Cansei". Criado a partir do acidente com o Airbus da TAM, inicialmente para protestar contra o caos aéreo e a corrupção, o "Cansei" já foi acusado de golpista, "elitista" e ilegítimo. Nesta entrevista a VEJA, Doria Jr. fala sobre as críticas que ele e seu movimento receberam, afirma que o brasileiro não perdoa quem faz sucesso e diz que os ricos têm, sim, o direito de protestar. "Ou agora é preciso apresentar atestado de pobreza e de filiação partidária para isso?"

Veja – O movimento que o senhor ajudou a criar já foi chamado de "coisa de dondocas enfadadas", "conspiração da elite branca de Campos do Jordão" e "movimento dos cansados de andar de helicóptero". Qual é o motivo dessa reação, na sua opinião?
Doria Jr. – Eu creditaria parte dessa reação à falta do exercício democrático. Nós vivemos um hiato, nestes últimos seis anos, em que não houve nenhum movimento novo na sociedade civil. Esse hiato provocou uma certa letargia no país. Então, quando há um movimento da sociedade civil, algumas pessoas – seja por incompreensão, seja porque não aceitam críticas – procuram desqualificá-lo. Eu entendo que o Brasil continua sendo uma democracia e, nesse contexto, todos os movimentos da sociedade civil, desde que pautados dentro da lei e da ordem, são importantes para a afirmação democrática do país, venham eles de onde vierem.

Veja – E por que, no caso do "Cansei", a origem do movimento tornou-se um ponto tão criticado?
Doria Jr. – Acho que por incompreensão, em primeiro lugar; por intolerância, em segundo lugar; e, em terceiro, um pouco porque o exercício da intelectualidade, muitas vezes, não admite que aqueles que não são intelectuais exerçam o direito ao protesto, ao diálogo, à dúvida. O movimento tem pessoas que, vamos dizer, alcançaram posições elevadas nas suas empresas e, no Brasil, há um certo hábito de criticar quem faz sucesso. Tom Jobim foi o primeiro a observar isso quando disse que, no Brasil, o sucesso é ofensa pessoal. Penso que há um pouco esse comportamento atávico por parte da sociedade brasileira: o de achar que uma pessoa que faz sucesso não merece esse sucesso e tentar explicá-lo por meio de outras razões que não aquelas fundamentadas no trabalho, na dedicação e no esforço. No caso do "Cansei", parece que se é duplamente culpado. A pessoa é culpada por fazer sucesso e culpada porque, além de fazer sucesso, ainda quer se manifestar. Agora, eu pergunto: desde quando, para ter o direito de se expressar, você precisa ter atestado de pobreza? Quer dizer que se você é pobre pode se manifestar, mas se pertence à classe média ou usufrui um padrão alto de vida não tem o direito de se expressar? Isso é um equívoco, é antidemocrático.

Veja – O senhor ficou surpreso com essa reação?
Doria Jr. – Da parte do governo, nós não esperávamos que ela viesse com tanta força, mesmo porque o "Cansei" não foi feito para ser um movimento de oposição ao governo Lula. É um movimento pelo Brasil. Mas essa reação do governo acabou permeando parte da mídia, mesmo aquela formada por jornalistas competentes, ilustres e com DNA democrático – e que, talvez pela falta do exercício da crítica, acabaram também incorporando o movimento como algo golpista: "Ah, vocês são contra o Lula, contra o pobre imigrante que veio para o Sul na carroceria de um caminhão...".

Veja – O senhor reconhece a existência de preconceito contra o presidente Lula pelo fato de ele ser nordestino, iletrado e de origem pobre?
Doria Jr. – Eu não concordo com isso e não desqualifico o presidente Lula por sua origem humilde, assim como não concordo que se desqualifique uma pessoa que, por ter estudado e trabalhado, hoje ocupa uma posição de destaque na sociedade.

Veja – O senhor não só ocupa uma posição de destaque na sociedade como, por causa de sua profissão, de seus hábitos e até de sua maneira de vestir-se, sempre esteve associado a um segmento muito restrito da elite brasileira, que muitas vezes é mostrada de forma caricata. Isso não teria contribuído para estigmatizar o "Cansei"?
Doria Jr. – Talvez, talvez. Mas, mesmo assim, nós temos de vencer essa discriminação. Alguém que é pobre, anda descalço e nasceu no sertão de Pernambuco está, por acaso, desqualificado para liderar algum movimento? A atitude de quem tenta me desqualificar por causa de minha situação socioeconômica é a mesma daqueles que desqualificam o sujeito de pé descalço. Ela é injusta nos dois extremos. Mas isso não me inibe. Isso não me arrefece. Eu sou um brasileiro como qualquer outro. Meu pai foi cassado no golpe de 64, eu fui exilado com ele...

Veja – Mas o que vem à cabeça das pessoas é que o senhor promoveu um desfile de cachorros em Campos do Jordão.
Doria Jr. – Eu prefiro caminhar com cães a caminhar com ladrões.

Veja – De qualquer forma, do ponto de vista publicitário, o uso de sua imagem como líder do "Cansei" não teria sido um marketing equivocado?
Doria Jr. – Não. Primeiro, porque o movimento não é de João Doria Jr. Depois, porque trabalho desde os 13 anos de idade. Não recebi nada de mão beijada. Meu pai, que foi cassado no golpe de 64 porque denunciou na Câmara Federal que o Brasil estava sendo vítima de um golpe, perdeu praticamente tudo no exílio, a começar pelos amigos. Minha mãe, que era dona-de-casa e nunca havia trabalhado antes, teve de começar a trabalhar. E eu comecei a trabalhar não por esporte, mas para ajudá-la, porque via o sofrimento dela. Saí de um colégio particular e fui estudar em uma escola pública – curso noturno, para poder trabalhar de dia em uma agência de publicidade. Deixei de andar com motorista particular para andar de ônibus – tomava seis conduções por dia. Do meu salário, ficava com 20%. Os outros 80% entregava a minha mãe. Comecei do zero. Do zero. E até hoje trabalho dezessete horas por dia – todos os dias. Pergunte a quem você quiser. Até quem não é meu amigo sabe que trabalho dezessete horas por dia.

Veja – O senhor acha que o fato de o "Cansei" ter sido caracterizado como um movimento elitista afastou muita gente dele?
Doria Jr. – Não senti que houve um temor das pessoas em relação ao juízo que outras poderiam fazer. "Será que minha empregada ou meu funcionário me avaliariam mal por isso?" Não, isso não senti. Agora, pelo temor de uma retaliação por parte do governo ou mesmo de uma patrulha por parte da imprensa, isso, sim. Esse temor eu senti. O Paulo Zottolo (presidente da Philips e um dos líderes do "Cansei", que afirmou que, se o estado do Piauí acabasse, "ninguém iria sentir falta"), por exemplo, que é um homem de bem, cometeu um descuido, pediu desculpas, e, mesmo assim, só falta quererem que ele seja imolado em praça pública.

Veja – O Brasil viveu uma série de escândalos de corrupção nos últimos anos e nenhum deles foi suficiente para mobilizar um grupo a ponto de ele criar um movimento organizado de protesto. Por que o senhor acha que isso só ocorreu agora?
Doria Jr. – Esses escândalos podem não ter mobilizado o suficiente, mas mobilizaram, sim. Tanto que o combate à corrupção, com punição aos corruptos e corruptores, é o ponto número 1 da proposta do movimento "Cansei". O segundo é a reforma tributária. O Brasil tem excesso de impostos – e os impostos, ao contrário do que alguns dizem erroneamente, penalizam o trabalhador, o cidadão que tem carteira assinada, paga impostos e não tem retribuição. O caos aéreo pode ter sido o ponto de partida do "Cansei", mas isso só aconteceu porque ele catalisou uma série de insatisfações que vinham crescendo. Dez meses de caos aéreo provocaram uma sensibilização enorme na sociedade – e principalmente na classe média, que se sentiu desassistida e pouco respeitada nos seus direitos. O fato de a classe mais pobre não viajar de avião – ou melhor, mal viajar – não deve ser suficiente para desqualificar o direito de milhares de pessoas que usam o transporte aéreo para trabalhar, para fazer um tratamento de saúde, para estudar ou mesmo para usufruir lazer, que também é um direito legítimo. E a indignação foi ainda maior porque revelou a falta de eficiência do governo na gestão de um problema grave. O governo levou dez meses para trocar um ministro! Eu não contrato pessoas para trabalhar na minha empresa porque são minhas amigas ou porque comungam das minhas opiniões. Contrato porque elas são eficientes para cumprir o seu papel. E, se eu errar, convido a pessoa a deixar a empresa. O Lula levou dez meses para trocar o Waldir Pires, que é um homem de bem. Mas não basta ser um homem de bem para ser ministro.

Veja – O senhor disse que o "Cansei" agora deverá passar para uma segunda fase, propositiva. No que consistirá essa fase?
Doria Jr. – O movimento tem cinco propostas, que são: combate à corrupção, com punição aos corruptos e corruptores, reforma tributária, prioridade à educação, melhoria da eficiência da gestão pública e a da segurança pública. Nós vamos apresentar propostas que possam melhorar esses cinco pontos – que estão longe de ser as únicas deficiências do país ou dos estados e municípios, mas são ao menos as mais urgentes, na nossa visão. No que diz respeito ao combate à corrupção, por exemplo, trataremos dos leilões eletrônicos, algo que o governo Mario Covas começou a fazer com resultados fantásticos. A economia que o sistema proporciona e a capacidade de ele neutralizar a corrupção são quase absolutas.

Veja – O senhor disse que trabalha dezessete horas por dia. Quantas horas dorme por noite?
Doria Jr. – Muito pouco: quatro horas. Se você tem paz de espírito, pode dormir pouco porque descansa bem. Eu descanso muito bem e não tomo barbitúricos para dormir, nunca tomei. Assim como nunca bebi e nunca fumei. E olha que vou para a cama tarde. Saio do escritório, todos os dias, à 1 e meia da manhã. Até esse horário, pode ligar aqui que você me encontra. Mesmo quando tenho um compromisso à noite, vou cedo, fico o suficiente para que a pessoa perceba a minha presença como um gesto positivo, simpático, e volto para cá.

Veja – Não sobra muito tempo para a família, então?
Doria Jr. – Eu levo meus filhos à escola todos os dias, exceto nas terças e quintas, quando faço fisioterapia. Amo meus filhos, amo minha mulher, amo minha família. Tenho três filhos, uma esposa e um único casamento – há catorze anos. E amo todos, inclusive porque eles compreendem meu ritmo de vida. Mas eu convivo com meus filhos, converso com eles. Tenho o hábito de estabelecer um tema por dia para conversar com eles a caminho da escola, o tema do diálogo que teremos.

Veja – Qual foi o tema de hoje?
Doria Jr. – "Respeito aos mais velhos". Expliquei por que eles têm de respeitar, ouvir e obedecer às pessoas que têm mais idade – sejam elas seus pais, seus tios, seus amigos ou seus professores. Uso a linguagem deles, evidentemente. Cada dia escolho um tópico e às vezes repito um que já usei, porque isso, você sabe, é dinâmica de ensino. Vou marcando os teminhas num caderno para retomar um pouco mais adiante.

Veja – É verdade que o senhor usa gel desde os 9 anos de idade?
Doria Jr. – É que papai usava. Eu o via usar – era Gumex que se chamava naquela época – e comecei a usar também. Uso até hoje.

Veja – Tendo começado a trabalhar tão cedo e passado por dificuldades como as que o senhor relatou, o fato de ter sua imagem associada à de um mauricinho deve incomodá-lo, não?
Doria Jr. – Eu sou uma pessoa muito tolerante. Tenho um bom espírito. Eu não brigo, eu não xingo, eu não falo palavrão nunca. E não falo mal nem de quem merece. Acho apenas que tenho uma trajetória que deve ser respeitada. Eu não recebi um pacote de Deus. Deus não me abençoou e disse: "Olha, tá aqui o escritório, a gravata, o carro, o paletó". Então, acho que ninguém tem o direito de desqualificar aqueles que já não estão no estado de pobreza, que evoluíram e progrediram na vida, aqueles que geram riqueza, oportunidades de emprego e que pagam seus impostos. Assim como ninguém deveria tolher o direito de pessoas com um bom padrão de vida de se manifestar. Não vejo por que você precisa de autorização para realizar seu protesto e não vejo por que, para obter essa autorização, você tem de anexar à solicitação um atestado de pobreza ou de filiação partidária. Aliás, é muito mais fácil para o rico não fazer nada. Mas eu aprendi há muito tempo que não existe atitude pior do que a omissão.

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