Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, agosto 23, 2007

Mercadante, o democrata aprendiz, é desmoralizado por uma maçã

Mercadante, o democrata aprendiz, é desmoralizado por uma maçã

A coisa pode ficar um tanto longa, mas acho que vale a pena. O senador Aloizio Mercadante (PT-SP) — aquele cujo assessor participou da tramóia do dossiê sem que ele, bom petista que é, soubesse de nada... — escreveu hoje um artigo na Folha em que ataca, por que não?, a imprensa, sempre ocupada em acusar o governo. Usa como exemplos de sua tese o acidente com o avião da TAM e a “devolução” dos pugilistas cubanos. Fazendo alusão indireta ao um artigo de Ali Kamel, no Globo (publico a íntegra no post abaixo deste), condena o jornalismo que testa hipóteses.

Huuummm. O governo não confia em Mercadante como economista. Tanto é assim que jamais o nomeou ministro, certo? E, lendo o que escreve, vejo que também não entende nada de lógica científica. Segue seu artigo em vermelho, entremeado por comentários meus, em azul:

ISAAC NEWTON era um cientista tão genial quanto rigoroso. Formulou as teorias que, pela primeira vez, explicaram o mundo do ponto de vista lógico-matemático. Contudo, não conseguiu explicar como a gravidade funciona, como um corpo atua sobre outro à distância.

Indagado exaustivamente sobre o assunto, escreveu, no "Scholium Generale", que não conseguia deduzir a natureza da gravidade a partir dos fenômenos que observava e que não teceria hipóteses. Na sua privacidade, Newton especulou muito sobre o tema e chegou até a criar o conceito do éter espacial para tentar explicar a ação à distância. Porém, fiel ao seu rigor científico, nunca publicou uma página sobre suas especulações. Jornalistas e políticos não têm, entretanto, o rigor científico newtoniano. É natural, são ofícios diferentes, que não requerem o uso de métodos científicos. Mas, independentemente do ofício, todos têm de ter um compromisso mínimo com os fatos. Em primeiro lugar, é questão de bom senso: o desapego aos fatos conduz necessariamente ao erro. Em segundo, é uma questão de espírito público: falta de objetividade e de imparcialidade nos ofícios que formam a opinião pública faz mal à democracia.

Apesar disso, parte da mídia e classe política oposicionistas vem sendo assolada por um febril "modus speculandi" que faria corar a pitonisa de Delfos e o barão de Munchausen. Tornou-se moda testar hipóteses.

Ante qualquer acontecimento, tece-se, de imediato, uma hipótese para explicá-lo. Tudo bem, é normal que se tente explicar os acontecimentos, mesmo quando não se sabe nada sobre eles. Mas não é normal nem desejável que se tente explicar algo sem sequer fazer uma investigação minimamente rigorosa sobre o assunto.

Huuummm. Parece tão inteligente isso tudo, não? Pois é. Mas se trata de um apanhado de bobagens. Mercadante faltou a todas as aulas de epistemologia! Ou de metodologia científica! Tudo o que a ciência faz é construir hipóteses! O senador quer fatos, verdades! Coitado... Ele confundiu tudo. É uma máxima da física que a ciência não se pergunta o porquê das coisas, mas o "como". Sabe-se que a Lei da Gravidade existe, consegue-se descrevê-la, mas não se sabe o porquê de ela existir. Por que dois corpos se atraem na razão inversa das distâncias? Que coisas acontecem para que seja assim? Ninguém sabe nem quer saber. Mercadante nem se dá conta de que a Lei da Gravidade, ela mesma uma hipótese, já foi superada por outra, elaborada por Einstein, que a atribui à curvatura do espaço.

Tudo em física é hipótese. Como os prótons, que têm carga positiva, mantêm-se atraídos, quando deveriam se repelir? Corpos com mesma carga se repelem, certo? A mecânica quântica para explicar por que isso acontece descreve, como hipótese, uma “força forte”. Mas não consegue descrever por que é assim. E Mercadante termina o artigo dizendo que Newton dorme. O pobre parou em Newton. Que perigo um economista desconhecer fatos básicos da metodologia científica! Pelo visto, até o Apedeuta se convenceu de que falta ao senador atualizar a sua agenda econômica e científica. Mas voltemos ao nosso newtoniano.

Também não é normal nem desejável que, ante as múltiplas hipóteses que podem explicar um fenômeno, se escolha só a que serve ao interesse próprio. E absolutamente não é normal nem salutar para a democracia que a hipótese arbitrariamente escolhida seja apresentada como fato. Por último, é no mínimo curioso que as hipóteses escolhidas sejam todas contrárias ao governo federal.

Há fatos inquietantes. O incêndio ainda consumia o avião da TAM quando os jornais televisivos afirmaram, em uníssono, que a aeronave havia "derrapado" na pista escorregadia. Assim, foi testada a hipótese de que o acidente fora provocado pela falta de ranhuras em Congonhas.

Os mais exaltados chegaram a testar a hipótese de que o governo Lula tinha assassinado 199 pessoas. Uma conhecida agência entrevistou um "consultor de aviação" que acusou peremptoriamente a Infraero de "assassinato coletivo". Perdeu-se toda a cautela e a compostura, e surgiram as manchetes falando da "tragédia anunciada". Na onda de histeria especulativa, até mesmo psicoanalistas, aparentemente com grandes conhecimentos técnicos sobre aeronáutica, se permitiram aderir à hipótese do assassinato coletivo.

Em jornalismo, o que fazemos é descrever hipóteses também. A pauta, por definição, é uma hipótese que só se confirma em campo. Pauta: caiu um avião. É uma hipótese. Ao menos até que se vejam os destroços fumegantes! Está havendo um tiroteio na Rocinha: uma pauta — ao menos até que se constate a troca de tiros. Pauta: o tiroteio se deu em decorrência de briga de quadrilhas, uma hipótese que tem de ser verificada, ouvindo testemunhas, policiais etc. Mercadante escreve que as televisões se apressaram a dizer que o avião derrapou (nos primeiros flashes). Não foram as televisões, mas os relatos de funcionários da Infraero e testemunhas, hipótese esta reforçada porque, no dia anterior, dois aviões haviam derrapado na pista! Mercadante quer um jornalismo que se atenha aos fatos! O mundo ideal para ele é este: caiu um avião e ponto. Causas? Esperemos dez meses, calados!

Este é o mundo pelo qual ele anseia agora. Quando era oposição, é evidente, nunca deu àqueles a quem acusava — com ou sem fatos — o benefício da dúvida. Começo a entender agora qual é a imprensa que o PT deseja. Voltemos ao caso de Mercadante. Um de seus assessores foi pego com a boca na botija no caso do dossiê. Veja que coisa criminosa fez a imprensa: especulou-se que ele, Mercadante, poderia saber de tudo. Que injustiça, não é mesmo? Realmente, é de deixar Newton enrubescido! Eu sempre imaginei, e estava errado, que alguém que se acha capaz de governar o Estado de São Paulo consiga ao menos controlar o seu assessor direto. É, com efeito, a PF não encontrou nenhum ato de ofício do senador: "Vá lá, aloprado, leva a grana pra comprar o dossiê contra Serra". E ele saiu limpo do episódio. Essa mídia...

Porém, com a revelação de que o avião operava sem um dos reversos e que os manetes não estavam na posição correta no momento do pouso, tal como acontecera em dois outros bem conhecidos acidentes com o mesmo tipo de aeronave, subitamente minguaram as especulações e se passou a exigir, tardiamente e com o grande estrago já feito, o aguardo dos resultados do inquérito e a proibição dos julgamentos precipitados. Talvez frustrado pelo malogro, esse jornalismo isento voltou à ira imparcial para o teste de outras hipóteses.
Mercadante, que nada entende de ciência (Lula acha que ele também entende pouco de economia), demonstra que também ignora o que seja jornalismo. Este parágrafo o prova de maneira cabal.

Quem apurou que um dos reversos estava desligado? A mídia. foi o Jornal Nacional.
Quem apurou que um dos manetes estava em posição incorreta? A mídia. Foi a VEJA.
Pior: para má sorte da esquerdopatia, são justamente os dois veículos que mais são acusados de antigovernismo — o que é bobagem. Aliás, a informação de que dois outros acidentes aconteceram em circunstâncias idênticas também é da VEJA. Ora, como pode haver complô contra o governo se a VEJA e o JN não participam? Convenham: conspiração sem esses fois está condenada ao insucesso, não é mesmo?

Mecadante só se esquece de dizer que, na mesma VEJA em que ele leu a informação então inédita de que um dos manetes estava em posição errada, noticia-se que, nos dois outros acidentes, morreram apenas três pessoas. Em Congonhas, 199. Porque outras eram as condições de segurança. Pelas quais responde o governo.

Omite também que uma diretora da Anac mentiu para a Justiça. Se os documentos usados para liberar a pista de Congonhas estivessem em vigência, aquele acidente não teria acontecido daquela maneira, com ou sem erro do piloto, porque aquela aterrissagem em Congonhas não teria acontecido.

Tanto a informação de VEJA como a do Jornal Nacional foram conseguidas TESTANDO HIPÓTESES, sim, senhor. A ciência de Mercadante é mais ou menos aquela de Jorge, o frei obscurantista de O Nome da Rosa. Ele quer evitar a procura com medo do que se possa encontrar. Fosse por ele, sem a prova provada de que a terra gira em torno do sol, nada feito. Mercadante também mandaria Giordano Bruno para a fogueira. Mercadante também mostraria a Galileu os instrumentos da tortura. Mercadante quer levar a imprensa à abjuração coletiva.


Quando dois pugilistas cubanos que haviam fugido de sua delegação procuraram a polícia e pediram para voltar ao seu país, testou-se, de imediato, a hipótese de que o governo Lula, "amigo do governo Fidel Castro", negou-lhes insensivelmente o refúgio de que precisavam. No Senado, chegou-se mesmo a testar a hipótese de que o episódio dos pugilistas era igual ao de Olga Benário, entregue por Getúlio aos seus carrascos nazistas.

Ante a revelação de que eles recusaram as reiteradas ofertas de asilo, fato testemunhado pela OAB-RJ, e que outros dois atletas cubanos que pediram refúgio foram acolhidos pelas autoridades brasileiras, testa-se, agora, a hipótese de que os pugilistas foram "ameaçados por Havana" e que o governo brasileiro deveria ter feito alguma coisa. Sabe-se lá o quê.
Mau dia para os seus volteios retóricos. Uma autoridade cubana deixou claro que houve contatos entre os dois governos. Depois recuou. O paralelo com Olga Benário não é “hipótese”. É uma referência histórica. Quem a empregou primeiro fui eu. Mas com a devida ressalva: ela era uma criminosa (o que não justifica a estupidez getulista). Os pugilistas são homens comuns. O nosso professor de jornalismo esquece de dizer que:
- os dois lutadores foram presos, o que era ilegal;
- os documentos usados para a deportação eram irregulares, o que o governo admite;
- os dois, ao arrepio da lei, foram proibidos de falar com a imprensa.
- o Ministério Público havia determinado que ficassem no Brasil até que se soubesse o que, de fato, havia acontecido. Foram despachados no dia seguinte.

Exemplos como esses se avolumam na história recente do Brasil. São tantos que já dá até para aventar uma hipótese: parte da mídia oposicionista não se preocupa muito com a investigação isenta dos fatos e atua de forma parcial e tendenciosa, maculando a enorme contribuição que a imprensa livre deu à consolidação da nossa democracia. Tudo bem, não se exaltem, estamos apenas exercendo o péssimo costume de testar hipóteses no campo da política e do jornalismo. Newton dorme.
Mercadante nunca foi bom de ironia. Falta-lhe humor. E, vê-se agora, também cultivo intelectual. Não é fácil ser engraçado. Se, ao longo do texto, ele censura que se testem hipóteses, não pode assumir que faz o mesmo sem que se desautorize. Com uma diferença: a imprensa que ele censura quer revelar fatos. Ele, flagrantemente, os esconde.

Ocorre que ele não está testando nada. Faz apenas o que faz todo petista. Acusa para se defender. Pouco está se importando com os mortos do acidente ou com os cubanos. Dedica-se a acusar parte do jornalismo de ser responsável pelos crimes cometidos por seu partido. Mensalão? Invenção da mídia. Dossiê? Invenção da mídia. Apagão aéreo? Invenção da mídia.

Mas o homem reconhece a “contribuição da imprensa livre à democracia”. Quando? Ora, quando o PT estava na oposição e pautava esta mesma imprensa com pesada munição contra seus adversários. Mercadante tentou emprestar algum apuro intelectual (e quebrou a cara) a uma coisa bem simples: para ele, a boa imprensa é a que fala mal de seus inimigos.

Sobre o caso Mercadante (acima)

O artigo que segue foi publicado por Ali Kamel no jornal O Globo. Por que ele está aí? A explicação está no post seguinte. Sugiro que você leia primeiro o que está loco acima e, então, volte aqui:

A grande imprensa

A grande imprensa está sob ataque. Não do público, que continua considerando o jornalismo que aqui se produz como algo de extrema confiabilidade, conforme atestam pesquisas de opinião recentes. Os ataques vêm de setores autoritários e antidemocráticos, que, diante do noticiário, sentem-se ameaçados. Esses setores consideram que só é notícia aquilo que, em nenhuma hipótese, atrapalha os seus planos de poder. Não importa que alguns acontecimentos lhes sejam embaraçosos; importa que ou não sejam noticiados ou sejam levados ao público de tal forma que o efeito, para eles, seja positivo ou neutro. Já disse uma vez: isso não seria jornalismo, mas propaganda.

Evidentemente, em seus ataques eles não deixam transparecer essa verdade. Tão logo surge um evento que eles consideram desvantajoso, começam a gritar, dizendo que não é o evento que lhes faz mal, mas a cobertura da grande imprensa. Costumam seguir o seguinte padrão: mentem, atribuem à grande imprensa coisas que ela não fez e denunciam conspirações que não existem. Sempre num tom indignado, dourando a grita com defesas “apaixonadas” da liberdade de expressão e do que chamam de democratização da mídia. Um disfarce. Às vezes, publicam livros, financiados por partidos, com estudos pseudocientíficos como os que tentam demonstrar que, em 2006, os jornais penderam pesadamente a favor de Alckmin e contra Lula, no noticiário eleitoral. Tais estudos se esquecem apenas de contar que todo o noticiário sobre o mensalão e outros escândalos foi considerado prova de desequilíbrio contra Lula. Ora, se é assim, qual seria a alternativa para que o estudo apontasse equilíbrio? Não noticiar os escândalos? Mas isso sim seria perder o equilíbrio e a isenção.

É uma tautologia, mas, na atual conjuntura, vale dizer: o jornalismo só é livre e independente quando não depende de nenhuma fonte exclusiva de financiamento. Quanto mais variadas forem as fontes de recursos que sustentam um jornal, uma revista, um portal de internet ou uma emissora de rádio e televisão, mais livres e independentes serão estes veículos. O leitor pode fazer o teste. Veja os anunciantes da grande imprensa e verifique: a variedade é tanta que o veículo não depende, nem de longe, de ninguém isoladamente para sobreviver. E por isso é livre. E por isso é independente. O leitor poderá fazer outro teste. Procure algum veículo que se diga livre e independente e ao mesmo tempo se dedique costumeiramente a atacar a grande imprensa e a defender este ou qualquer governo. Veja os anunciantes. Eles serão poucos e a concentração, grande. Quase sempre, será propaganda governamental. Se o veículo for um portal de internet, verifique quem são os controladores: fundos de pensão de órgãos do governo.

Portanto, livre mesmo, só a grande imprensa. Só ela tem os meios para investir em recursos humanos e tecnológicos capazes de torná-la apta a noticiar os fatos com rapidez, correção, isenção e pluralismo, sem jamais se preocupar se o que é noticiado vai ser bom ou ruim para este ou aquele cliente, para este ou aquele governo. A grande imprensa sabe que o seu compromisso é com o público, que lhe dá a audiência que lhe traz publicidade. A grande imprensa sabe que o público exige informação de qualidade e que não pode ser enganado. O grande público é o que faz as suas escolhas cotidianas de acordo com o que é melhor para si, é o mesmo que tem discernimento para votar, para eleger seus governantes. Consumidores exigentes, grande público e cidadãos conscientes não são três entidades distintas, mas uma única realidade.

Na cobertura da tragédia da TAM, a grande imprensa se portou como devia. Como não é pitonisa, como não é adivinha, desde o primeiro instante foi, honestamente, testando hipóteses, montando um quebra-cabeças que está longe do fim. A nação viveu um descalabro aéreo nos últimos dez meses? Então é necessário testar qual o impacto dessa desordem no acidente (e, hoje, ouve-se o ministro da Defesa dizer que a prioridade não é mais o conforto ou a ausência de filas, mas a segurança, uma admissão cabal de que, antes, não era assim). A pista de Congonhas estava escorregadia (a ponto de no dia anterior ao desastre, uma aeronave deslizar até um canteiro e outra quase se espatifar no fim da pista)? Então é preciso verificar se a pista foi fundamental no desastre. Chegam informações de que a manutenção da TAM é falha? Então é preciso saber como estava o avião acidentado (e descobrir que ele voava com o reverso pinado). A análise da caixa preta ficou pronta? Então é preciso tentar revelar o seu conteúdo e mostrar que uma falha do piloto pode ter sido a causa do acidente. É a grande imprensa que noticia tudo isso, passo a passo, tendo apenas em mente informar o grande público, sem pensar no impacto negativo ou positivo que isso terá para o governo ou para a companhia aérea.

É assim aqui, é assim em todas as democracias. Quando do furacão Katrina, a imprensa americana, num continuum, testou muitas hipóteses: noticiou que aquela era uma tragédia anunciada, mostrou que houve cortes federais para obras urgentes nos diques que se romperam, denunciou a inépcia do governo no socorro imediato às vítimas. E a única coisa que o governo fez foi se defender, com dados e argumentos. O público pôde julgar quem estava com a razão. Ninguém ouviu de aliados de Bush que a mídia queria derrubá-lo, provocar o seu impeachment, desestabilizar o seu governo.

Já aqui, temos de conviver com essas bazófias. Porque aqui, ao contrário de lá, há quem queira que a informação esteja a reboque de projetos de poder.

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