Um compêndio escrito por um erudito alemão
promete ensinar tudo o que é preciso saber.
Pode até ser útil – mas com um grão de sal
Jerônimo Teixeira
Recém-lançado no Brasil, Cultura Geral (tradução de Beatriz Silke Rose; Eurides Avance de Souza e Inês Antonia Lohbauer; Martins Fontes; 520 páginas; 74,50 reais), do alemão Dietrich Schwanitz, traz na capa um subtítulo ousado: "Tudo o que se deve saber". Há um apelo poderoso nessa promessa de sanar lacunas culturais que, ao menos em tese, tanta angústia causam aos leitores. Não é o primeiro resumão do gênero a aparecer no mercado – outros autores já apresentaram suas condensações da arte, da literatura, da filosofia (veja quadro na página ao lado). Diferentes no estilo, no formato e até na tendência política, esses livros têm em comum um certo catastrofismo. Sua leitura dá sempre a impressão de que a herança cultural do Ocidente arrisca se esvair pelo ralo da "civilização pós-moderna". Mas a própria demanda por esses guias culturais demonstra que as pessoas ainda têm sede do repertório de idéias, livros, imagens acumulado pelos séculos.
O compêndio de divulgação cultural é um gênero bem estabelecido. Em uma crônica impagável – de 1969 –, Nelson Rodrigues debochava de uma personagem chamada Arlete, que teria lido A História da Filosofia, de Will Durant, 100 vezes. De tão tradicional, o gênero já tem suas convenções. A mais importante delas é a lista. Nenhum livro dessa linhagem pode negligenciar os dez maiores filósofos ou os 100 grandes poetas. O crítico Harold Bloom já afirmou deplorar as listas de obras notáveis e se declarou arrependido de incluir uma relação de livros essenciais no fim de O Cânone Ocidental, de 1994 – mas o seu Gênio, de 2002, nada mais é do que uma lista comentada de 100 grandes autores. Por mais longa que seja, a lista é finita, e por isso conforta as ansiedades do leitor: a monstruosa cultura parece, afinal, abarcável. Outra prática comum – na qual, aliás, Bloom é um mestre – é denunciar a decadência cultural. O historiador inglês Paul Johnson considera até a obra de Picasso um sintoma de degeneração da beleza. Schwanitz deplora a influência da televisão na cultura contemporânea.
Morto em 2004, Schwanitz tinha formação em filologia, filosofia e história e foi professor de humanidades da Universidade de Hamburgo. O propósito declarado de seu livro é restituir à cultura a vitalidade que teria sido roubada pelas convenções do ensino (alemão, bem entendido: Schwanitz escreve para seus compatriotas – e o Brasil nem consta de sua obra). Cultura Geral, no entanto, é de uma chatice atroz. Suas pretensões eruditas são minadas por algumas falhas de informação (não, Darwin nunca disse que chimpanzés e gorilas são antepassados do homem) e pelo vício da generalização discutível – segundo Schwanitz, a literatura moderna é "deprimente" (sempre?) e os americanos são "otimistas" (todos eles?). Também há lacunas sérias. O romance, diz Schwanitz, é a única forma de arte que revela a interioridade do homem (outra afirmação para lá de duvidosa) – daí as sugestões de leitura privilegiarem esse gênero. O homem culto, pelo jeito, dispensa poesia. Camões, Quevedo, Baudelaire nem sequer são mencionados.
A seção mais curiosa do livro é aquela que trata da cultura como um jogo social, uma partida de pôquer em que todo mundo blefa. Schwanitz indica até aquelas áreas em que é bom simular ignorância, para não passar por filisteu. O erudito exemplar deve saber das dinastias de Bourbons e Habsburgos – mas discutir os escândalos do príncipe Charles e demais integrantes da atual casa de Windsor será vulgaridade imperdoável. De repertório vital, a cultura se viu então demovida a mero adorno social? Não exatamente. No início do século XX, o sociólogo alemão Max Weber notou que os objetivos da educação européia estavam mudando, por exigência do capitalismo moderno: não se tratava mais de formar, como se fizera até então, homens de cultura, mas sim de treinar especialistas. Goethe, o herói cultural de Schwanitz, escrevia romances, poemas e tratados de física e botânica, com uma versatilidade impraticável no mundo compartimentado de hoje. A bagagem cultural média das pessoas se tornou mais dispersa e fragmentada. Ao mesmo tempo, porém, nunca antes a literatura, a filosofia, a arte estiveram tão disseminadas e acessíveis. As obras de Shakespeare e Darwin, por exemplo, podem ser encontradas em edição de bolso – ou lidas de graça on-line. Em vez de escorrer pelo ralo, a cultura está em toda parte. Por isso, os manuais da cultura são úteis – para quem souber tomá-los com um grão de sal e desconfiança, e como leitura introdutória, é claro.
OS MESTRES-ESCOLAS
Alguns autores que tentam conservar heroicamente o legado cultural da civilização ocidental – ou resumi-lo para o leitor preguiçoso
Will Durant – Autor de uma extensa História da Civilização, o historiador americano, morto em 1981, escreveu livros de divulgação muito populares, como História da Filosofia e As Idéias e Mentes Mais Brilhantes de Todos os Tempos
Harold Bloom – Em O Cânone Ocidental e Gênio, o crítico americano examina os maiores autores da literatura universal, como Dante e Shakespeare – e os defende contra os ataques ideológicos da turma politicamente correta | George Ruhe/The New York Times |
Daniel Boorstin – Ex-diretor da monumental Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, o americano é autor de painéis históricos ambiciosos – em Os Criadores, vai da arte pré-histórica a Picasso e, em Os Investigadores, de Moisés a Einstein | Cynthia Johson/Time Life Pictures/Getty Images |