Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, agosto 22, 2007

Devolver atletas ao Grande Ditador é inacreditável em um governo com tantos ex-exilados

ROBERTO DaMATTA

Dois temas surgiram com força nesses dias de crise dos transportes aéreos, de descoberta da ausência de planos para uma infra-estrutura que, republicamente, dissolve-se diante de nossos olhos, de intolerável inércia dos que decidiram “cuidar” politicamente do povo em vez de gerenciar e administrar eficientemente a coisa pública e, last but not least, de amoral devolução dos atletas cubanos ao Grande Ditador. Eis um gesto inacreditável num governo que congrega tantos que viveram a terrível experiência do exílio.

Dentro da crise ou justamente por causa dela, surgiram as vaias e, com elas, as lições de anatomia humana. Para um presidente que nada sabe dos escândalos do seu governo, foi surpreendente descobrir que ele tudo sabe sobre como o corpo deve lidar com a vaia. Não é preciso ler Freud para compreender que, ao dizer que Deus especializou as orelhas para vaias ou aplausos, o presidente estava de fato acusando o bom “puxão de orelha” que tomou do povo. O fiau trouxe de volta a punição brasileira clássica: a do “puxão de orelhas”. Gesto que lembra ao faltoso que ouvir bem é sinal de obediência e, no caso, da necessidade de um altruísmo que força abandonar interesses companheiros e partidários. Claro que isso foi muito melhor do que o vulgar e insultante “relaxe e goze” diretamente ligado às funções genitais da ministra do Turismo.

O mais curioso, porém, foi ouvir, em seguida, o operoso ministro da Defesa tomar suas próprias pernas como uma das medidas da crise aérea. O que me levou a imaginar que, se um ministro baixinho estivesse no cargo, ele poderia propor a diminuição das distâncias entre as poltronas, e um outro s u g e r i r p i n t a r o s aviões da cor favorita de sua esposa, a grande responsável por sua aceitação do Ministério.

Seriam essas referências anatômicas mais uma miragem do personalismo brasileiro que eu tanto tenho apontado na minha obra? Do fato de que tudo, entre nós, é sempre medido (e vivido) pelo nosso ponto de vista físico, numa atitude reveladora da nossa mais profunda alergia a tudo o que é impessoal e escapa — como as leis — desse corpo? Ora, diria o leitor, tudo isso é bobagem do antropólogo metido a cronista. Concordo. Mas é também mais uma aparição no nosso personalismo — essa perspectiva fundada nas circunstâncias pessoais, inteiramente casuística, mas assumida como “natural” ou “lógica”, porque a sua referência sai do corpo de uma autoridade suprema que, mesmo (e sobretudo) nesses tempos de democracia, tudo p o d e .

Aliás, a partir da vaia que recebeu na abertura dos Jogos Pan-Americanos e, em seguida, em Aracaju e em Campos, Lula deve estar repensando o mundo com as duas orelhas, pois tem experimentado aquilo que ele e seus companheiros sempre fizeram com os outros. Mas, diferentemente dos outros, sua reação tem sido mais pessoal e anatômica do que política ou sociológica.

Afinal de contas, as pessoas não vaiam a pessoa do Luis Inácio, mas o Luis Inácio no cargo de presidente e o modo pelo qual ele o desempenha.

Numa democracia liberal, a vaia gaiata e carnavalesca e a palma cívica e séria não desaparecem — alternam-se. Elas são os dois lados de uma mesma moeda. A menos que a moeda seja cunhada sem o seu outro lado, como ocorre nas ditaduras.

Pois a cabeça, como ensinou biblicamente o Lula, tem sempre duas orelhas. Se cortamos a das vaias ficamos com uma anatomia deformada como mostrou, um tanto a contragosto, o próprio presidente.

Só o atraso do político teoriza a vaia como desrespeito. Só o primitivismo que acredita em posições axiomaticamente certas e erradas imagina que se pode governar um mundo fundado na igualdade de todos perante as leis, sem aplausos bem comportados e risos carnavalescos.

Todo rei tem dois corpos. Um deles representa a totalidade do reino que ele deve governar com justiça e equanimidade; o outro, diz respeito à sua finitude, ao seu lado inevitavelmente humano. Daí decorre que um pequeno gesto pode macular aquele que ocupa um papel tão grandioso e impossível de ser perfeitamente encarnado como são essas instituições ocupadas por uma só pessoa, como a de rei, papa ou presidente.

O presidente Lula não precisa de um curso para confirmar o que o seu coração de homem do povo é capaz de intuir. Socializado, entretanto, por um radicalismo que exclui a crítica e situa o adversário como inimigo, as vaias sinalizam apenas rejeição. É como não ser recebido numa festa, como ele mesmo disse. Mas, quem foi que disse que a presidência é uma festa? Ele e o PT sempre foram mestres em transformar festas em abominações.

Vaiar é um direito e um antigo costume. É um antiaplauso necessário a quem pretende governar e aprender isso que ainda é um nome feio no Brasil: a democracia liberal.

A vaia é sempre a outra orelha, como ensinou Lula. Só que, entre elas, há uma esquecida cabeça que, representando o sujeito, tem consciência desses dois lados e com eles dialoga com serenidade. O segredo de uma democracia está em concordar em discordar. Só isso legitima a vaia, mas, em compensação, faz com que a palma do adversário seja recebida sem a sombra do interesse rasteiro.

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